O retorno do vinil: colecionadores mantêm vivo o encanto dos discos

Na era dos streamings e da música digital, o vinil resiste e conquista novos apreciadores. Para os colecionadores, porém, ele nunca saiu de cena. O comerciante José Maurício, cliente da American Music, uma loja de discos em Goiânia, é um exemplo dessa paixão duradoura pelo formato analógico.

“Na realidade, primeiro você busca o estilo. O que você gosta de ouvir, isso é o principal”, explica José Maurício ao Jornal Opção sobre sua experiência ao adquirir um novo disco de vinil. Mais do que apenas o som, o formato físico também tem um papel fundamental.

“Além da capa, de encaixe, você pega aquilo de forma física. Eu já até uso muita coisa em streaming, mas não dá pra abandonar o vinil. Não tem como, isso é impossível”, disse. Diferente de muitos que resgataram o vinil por nostalgia, José Maurício nunca deixou o formato.

“Eu vivo a história da música e do vinil há muito tempo. Eu sou da época que tinha uma loja aqui em Goiânia que chamava Opus, que era a primeira que vendia disco importado. Desde lá, sempre gostei de vinil. Não deu tempo de ter saudade porque eu nunca abandonei”, conta.

José Maurício na loja American Music, em Goiânia | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O colecionador também reflete sobre a ascensão do CD e o impacto no mercado de vinis, principalmente no Brasil. “A história de que o vinil acabou não é verdade. Ele teve um auge muito grande com a chegada do CD, e isso aconteceu porque os aparelhos nacionais eram de péssima qualidade. A produção do vinil no Brasil era ruim. Então, quando chegou o CD, houve uma euforia: ‘Isso é muito melhor, isso é muito melhor’. Mas muita gente depois voltou ao vinil e percebeu o que estava perdendo.”

Ele aponta que, no exterior, o vinil nunca deixou de ser produzido com qualidade. “Os aparelhos de som, os tocadiscos, as cápsulas, tudo continuou evoluindo. Hoje mesmo existe uma cápsula que vem com um pré-amplificador embutido e não usa agulha: ela faz a leitura do vinil com um sensor óptico. A tecnologia avançou, mas aqui no Brasil, a produção ficou para trás.”

Apesar dos desafios, os vinis seguem cativando tanto colecionadores veteranos quanto novos ouvintes. E, como defende José Maurício, sua sonoridade única e a experiência sensorial fazem do formato uma escolha insubstituível. “A coisa evoluiu. Só aqui que parou mesmo.”

(Alguns dos discos de vinil que podem ser encontrados na American Music | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Resistência ao tempo

Goiânia abriga um dos mais emblemáticos refúgios para amantes do vinil: a American Music. Sob o comando de Jamilson Barros, a loja não apenas sobreviveu à ascensão das plataformas digitais, mas prosperou em meio ao crescente interesse pelo formato físico.

Em entrevista ao Jornal Opção, ele compartilhou sua trajetória e o impacto duradouro do vinil na experiência musical. A história de Jamilson com os discos começou cedo.

“Desde os 11 anos eu coleciono discos. Essa paixão nunca acabou e tenho certeza que vai me acompanhar até o último dia da minha vida”, relata. A decisão de abrir a loja surgiu após um período morando nos Estados Unidos. “Na minha volta, eu não sabia o que fazer. Pensei: vou montar uma loja de discos. E assim virou meu negócio, meu sustento”, conta.

Jamilson Barros é proprietário da loja American Music, em Goiânia | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O mercado de vinil tem crescido mundialmente e desmente a ideia de que é algo ultrapassado. “Isso é um mito. O vinil hoje está em alta, tem muita gente nova comprando discos de Lana Del Rey, Adele. O público só aumenta”, afirma Jamilson.

Ele explica que, além da venda para consumidores diretos, abastece lojas em todo o Brasil, incluindo reedições de discos raros. “Eu pago os direitos autorais para as bandas e lanço cópias de discos icônicos, vendendo para o país inteiro.”

A precificação dos discos segue critérios específicos. “O disco raro depende da quantidade de cópias lançadas e da demanda. Tem disco que vale R$ 50 mil, R$ 60 mil. Japoneses costumam ser mais caros e desejados”, explica.

Apesar dos valores elevados de alguns exemplares, a loja atrai um público diversificado. “Tenho clientes de 15 a 80 anos, de juízes a jovens que estão começando. Me lembro de quando eu não tinha grana para comprar discos”, relembra.

“A média de disco importado é R$ 300, tem de 400, de 200, mas eu tenho disco de R$ 50. Um garoto chega aqui, e às vezes não tem a grana, eu falo ‘leva para ver se gosta e às vezes volta’. Eu lembro de mim, que era difícil para gente comprar o disco, uma situação difícil. Eu sou filho de pintor de parede, a gente não tinha grana”, completou.

Para Jamilson, o vinil oferece uma experiência sensorial única. “Hoje o mundo está acelerado, e o vinil te desacelera. Você senta para ouvir, acompanha faixa por faixa. É uma forma de viver a música de maneira mais profunda”, reflete.

Diferente de muitas lojas, a American Music não possui redes sociais. “Sou analógico. O dia que eu perder a conversa aqui na loja, perde o sentido. Eu me alimento desse bate-papo, dessas histórias.”

Com uma paixão inabalável pela música, Jamilson reforça a importância do vinil na cultura musical. “A música é a arte mais forte que existe. Você pode assistir a um filme ou ler um livro uma vez só, mas uma música você ouve mil vezes e se emociona de formas diferentes. O vinil perpetua essa magia.”

(Disco original do Tim Maia vale dez vezes mais que a cópia do mesmo disco | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Resgate da experiência musical

De acordo com Jamilson, esse movimento representa mais do que apenas uma tendência: é um resgate da experiência musical completa. “Eu vivi as etapas do vinil quando ele estava em alta, na década de 80, que todo mundo colecionava. Vivi a queda do vinil e agora estou vivendo a volta. Isso me deixa muito feliz”, afirma.

O que diferencia o vinil do streaming, segundo ele, é a qualidade sonora e a experiência sensorial que proporciona. “O vinil leva 550 informações a mais do que o CD. Agora imagina o que o streaming precisa compactar para caber no arquivo. A diferença é perceptível: se eu coloco um CD e um vinil para tocar, você consegue perceber um contrabaixo que, às vezes, não se ouve no CD, uma bateria que se perde”, explica.

Ele cita ainda as remasterizações que têm sido feitas em álbuns clássicos, como o caso de “Animals”, do Pink Floyd. “O original tinha o teclado e a bateria meio abafados. Em 2018, eles remasterizaram e jogaram esses sons para frente. Parece outra música, é uma experiência completamente diferente”.

Mais do que um produto, o vinil representa um estilo de vida e uma comunidade apaixonada. Na loja de Jamilson, os clientes passam horas conversando, trocando histórias e discutindo detalhes das músicas.

“O saudosismo sempre fala mais alto. Eu costumo dizer que a gente vira um Forrest Gump, um contador de histórias. Eu coleciono desde os 11 anos, já vivi muitas situações. Em 2019, por exemplo, o Barão Vermelho assinou um disco para mim. Conheço muita gente do rock no Brasil, e isso enriquece as conversas”, conta.

(Discos de Ozzy Osbourne e Iron Maiden na American Music | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

A ficha técnica dos discos é um atrativo à parte. Para Jamilson, apenas o vinil permite ao ouvinte mergulhar nos detalhes de uma gravação. “Os roqueiros são muito ligados nisso. Eles sabem o ano de lançamento, quem tocou no disco, o nome do baterista, do baixista. No vinil, você puxa a ficha técnica e encontra tudo isso: quem produziu, quem fez os arranjos. Isso é parte da experiência”, destaca.

As histórias por trás das músicas também são um ponto de interesse para os clientes. “Por exemplo, o Raul Seixas tem um disco chamado ‘Por Quem os Sinos Dobram’, baseado em um livro de Ernest Hemingway sobre a Guerra Civil Espanhola. Ou ‘Fluctuat Nec Mergitur’, que é um texto do filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon. Muita gente nem imagina a profundidade dessas canções”.

A relação entre cliente e lojista é também um diferencial. Quem entra na loja de Jamilson não está apenas comprando um disco: está ali para uma experiência, que pode durar horas. “O atendimento é diferente. O pessoal chega aqui e fica comigo por duas, três horas, às vezes o dia todo. E é isso que eu quero, é isso que eu busco”, afirma.

Para ele, a volta do vinil é um fenômeno mundial que surpreende até os colecionadores mais antigos. “Estamos vendo um boom no mundo inteiro. Estou indo agora para os Estados Unidos e o mercado lá está uma coisa de louco. Nunca imaginamos que o vinil voltaria com tanta força. Para a gente, que vive isso, é algo fantástico”, celebra.

(Jamilson afirma também ter milhares de discos em seu depósito | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Paixão atemporal

A reportagem também ouviu Leonardo Ribeiro, mais conhecido como Léo Bigode, outro apaixonado pelo vinil. Dono da Monstro Discos, ele compartilhou sua história com o formato e sua visão sobre o crescimento do mercado.

“Desde o início da minha adolescência, eu comecei a colecionar. Nos anos 80, o vinil ainda estava no auge. Quando o mercado migrou para o CD, muita gente trocou seus discos, mas eu continuei fiel ao vinil”, conta Léo. “Para mim, desde sempre, música tem que ser nesse formato. Agora, com esse retorno, a conexão ficou ainda mais forte”.

Léo não se limitou apenas a colecionar. Criou um selo musical, uma loja e também um festival, o Goiânia Noise, que já tem 30 anos de história. “O selo tem 28 anos, a loja é mais recente, tem três anos. Mas a paixão pela música vem muito antes de qualquer negócio”, explica.

Perguntado sobre como abastece a loja, Léo diz que faz um trabalho misto entre aquisição de lotes e garimpo. “Tenho fornecedores em algumas cidades que compram e repassam para mim. Mas eu viajo muito e, onde vou, estou sempre pesquisando. Antiquários, sebos, brechós, até rádios, que vendem lotes de discos”, detalha.

“A gente também recebe ofertas de pessoas que querem se desfazer de coleções ou heranças”. Com a ascensão dos vinis nos últimos anos, o mercado está em expansão, mas também enfrenta desafios.

“O volume de lançamentos hoje é muito grande, talvez até maior do que o público consegue consumir. E tem muita gente comprando equipamento agora, porque antes só colecionava, mas não tinha como tocar os discos”, analisa.

Para Léo, ouvir vinil é uma experiência distinta. “Não é igual ouvir streaming no celular enquanto caminha ou malha. O vinil exige um ritual: sentar, colocar o disco, prestar atenção. A pegada é outra, o sentimento é outro”.

(Léo Bigode em entrevista ao Jornal Opção | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Preço e raridade

A precificação dos discos depende de diversos fatores, como tiragem, lançamento e demanda. “Tem discos que já nascem raros. A Anitta, por exemplo, lançou um vinil que só saiu fora do Brasil, então ele já chegou aqui caro”, exemplifica.

Outro critério é a edição original, muito valorizada pelos colecionadores. “Primeira edição sempre vale mais. Um disco do Milton Nascimento do começo da carreira é muito mais valioso do que um atual”, compara Léo.

Os clientes da Monstro Discos variam entre colecionadores experientes e novatos. “O público da loja compra discos na faixa de R$ 50 a R$ 150, geralmente clássicos como Pink Floyd, Mutantes e Legião Urbana. Tem gente que busca raridades, mas é uma minoria”.

Nos últimos anos, a loja tem atraído um público mais jovem. “Tem muita gente de 18 a 20 anos começando a colecionar. Pegam discos dos pais, dos tios, ou vêm por influência da internet. Um garoto veio aqui comprar um disco solo do George Harrison e eu brinquei: ‘Esse é o melhor dos Beatles’”, lembra Léo.

(Vitrola da loja Monstro Discos, em Goiânia | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Streaming x Vinil

Para Léo, o streaming e o vinil não são concorrentes diretos. “Acho que um complementa o outro. O streaming é acessível e rápido, mas não tem o mesmo valor emocional de colocar um disco para tocar. O vinil é sobre experiência, sobre colecionismo. Quem compra vinil está buscando algo que vai além da música”.

Com a ascensão do mercado e a crescente base de novos colecionadores, parece que os discos de vinil estão longe de sair de cena. “Sempre foi caro, sempre foi um desafio ter um disco. Mas a paixão pela música em formato físico continua e, pelo que vejo, ainda tem muito chão pela frente”, conclui Léo Bigode.

(Fachada da Monstro Discos, no Centro de Goiânia | Foto; Guilherme Alves/Jornal Opção)

Nostalgia e a experiência sensorial

O Jornal Opção também procurou explicar, do ponto de vista psicológico, essa retomada em plena era digital. Para a psicóloga Cleide Neves, a resposta está na nostalgia, na memória afetiva e na busca por experiências sensoriais mais profundas.

“A gente assimila isso à nostalgia mesmo, à memória afetiva, que está totalmente relacionada ao instantâneo. Hoje, as pessoas vivem de modo automático, sempre em busca de respostas imediatas. O vinil, por outro lado, envolve a visão, o tato, a audição. Há toda uma experiência sensorial no ato de selecionar uma música, pegar no disco, colocar a agulha com delicadeza. Isso remete à conexão com lembranças da juventude e com pessoas queridas”, explica Cleide.

(Psicóloga Cleide Neves | Foto: Arquivo pessoal)

O ritual de manusear um vinil é um dos fatores que diferenciam essa experiência do consumo de música em plataformas de streaming. Segundo a psicóloga, estudos apontam que esse tipo de interação proporciona um prazer sensorial e um sentimento de permanência que contrastam com a efemeridade do mundo digital.

“O vinil é mais duradouro, mais concreto. A resistência ao digital não significa rejeição, mas uma busca por algo mais profundo e menos imediato”, avalia. Se a nostalgia explica parte desse fenômeno, há também questões sociais envolvidas.

Cleide observa que o saudosismo musical pode ser um reflexo da pressão contemporânea por produtividade e competitividade. “As escolhas musicais também são influenciadas pelo que a sociedade cobra. O streaming oferece praticidade e rapidez, mas o vinil proporciona uma pausa, um momento de imersão que vai na contramão dessa pressa constante”.

(Reportagem do Jornal Opção conferiu de perto a reprodução de um disco da banda The Smiths no American Music | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção)

Mas e os jovens que não viveram a era do vinil? Como explicar o crescente interesse por esse formato? Para Cleide, isso está relacionado ao bem-estar emocional e à identidade.

“A nostalgia não está limitada a quem viveu determinada época. O bem-estar proporcionado por uma música, a identificação com um estilo, tudo isso transcende a idade. Muitas vezes, um adolescente se depara com um disco de vinil, tem contato com essa forma de ouvir música e sente que aquilo faz parte de quem ele é. Isso acontece porque a identidade musical é também uma construção social e afetiva”.

Apesar do crescimento das vendas de vinis, Cleide Neves não vê esse retorno como uma ameaça ao streaming. Pelo contrário, ela acredita que os formatos podem coexistir e se complementar.

“Não vejo o vinil como um contraponto ao digital, mas como uma forma de resgate de memórias e conexões. Assim como existem colecionadores de carros antigos, há os que se encantam com o vinil. Isso não impede o avanço do digital, apenas oferece uma experiência diferente para quem busca algo mais tangível e significativo”, conclui.

A volta do vinil reforça a ideia de que a música é mais do que um som em um fone de ouvido: é também um ritual, uma experiência tátil, uma ponte entre o passado e o presente. E, ao que tudo indica, essa conexão continua viva para muitas gerações.

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