George Foreman era grande mas ficou pequeno ante a inteligência de Muhammad Ali

Há um ótimo livro sobre boxe circulando no Brasil: nas livrarias e sebos. Trata-se de “A Luta” (Companhia das Letras, 232 páginas, tradução de Claudio Weber Abramo), de Norman Mailer.

“A Luta” começa bem pelo título. O artigo “a” diz tudo. Trata-se de “a” luta, e não de “uma” mera luta.

A batalha do Zaire, ocorrida em 1974, foi uma espécie de Primeira Guerra Mundial do Boxe. Até meninos de 8 anos apostavam que George Foreman (1,92m), então com 25 anos, venceria, com relativa facilidade, Muhammad Ali (1,91m), de 32 anos.

George Foreman era realmente muito mais forte. Sua pegada — a pegada de um deus — era “felomenal”. Ninguém a suportava por mais de 15 minutos. Caía ou pedia arrego.

Mas havia uma pedra e um língua falastrona no caminho. A pedra e a língua eram Muhammad Ali.

Dotado de uma língua viperina, tão forte quanto sua inteligência, e de músculos tão “enérgicos” quanto os de George Foreman, Muhammad Ali sabia, por assim dizer, “enfraquecer” os adversários antes das lutas.

Muhammad Ali dizia que iria destruí-los, que iria massacrá-los. Os coitados, mesmo os grandes, chegavam ao ringue quase destruídos. Porque até o público parecia acreditar que o boxeador que “picava” como abelha, fugia como uma borboleta e, às vezes, socava com um elefante, ganhara a luta mesmo antes da luta.

Os adversários de Muhammad Ali caíam não no primeiro round, e sim antes da luta. Por causa da língua ferina do boxeador, uma figura tão emblemática que gregos e troianos não hesitariam em colocá-lo lado a lado com Aquiles, Heitor, Ulisses, Eneias e Eder Joffre.

George Foreman e Muhammad: a queda imprevista de um boxeador até então invicto | Foto: Reprodução

A língua de Muhammad Ali era sua terceira mão. Por vezes, batia mais com ela do que com as outras duas mãos, as que são grudadas nos braços. Quando a técnica da língua, de vencer antes de lutar, não funcionava, apanhava muito. Joe Frazier e Ken Norton, por não se importarem tanto com a língua-músculo, bateram duramente no adversário. Mas também foram golpeados de maneira implacável.

Muhammad Ali era um sábio do boxe: apanhava muito… para ganhar.

As lutas de Joe Frazier e Ken Norton contra Muhammad Ali foram épicas e, até, melhores do que a batalha contra George Foreman. Por sinal, George Foreman venceu os dois por nocaute, no segundo round.

Norman Mailer, escritor que falava demais e era chegado a uma violência — chegou a esfaquear uma de suas mulheres —, percebeu, de cara, a tática do glamuroso Muhammad Ali para derrotar o circunspecto George Foreman.

Muhammad Ali chegou ao Zaire, falou como Lúcifer tentando convencer um cauto de Deus e conquistou o povão do país. Em dois dias, havia se tornado, se não um deus, ao menos um rei. O rei da Terra.

George Foreman no chão: nocauteado por Muhammad Ali | Foto: Reprodução

Sobretudo, Muhammad Ali falava, com uma metralhadora na boca, como se George Foreman já houvesse perdido a luta.

Parece que, ao contrário do que se pensava inicialmente, o mundo inteiro — inclusive George Foreman — passou a acreditar que Muhammad Ali já havia vencido. Mesmo antes da luta.

Em 1974, eu estava com 13 anos, e, ao saber das notícias do Zaire, por intermédio de um jornal, passei a acreditar que, mesmo antes da luta, Muhammad Ali já havia vencido.

Muhammad Ali falava tanto, e era tão convincente, que a gente pensava: “É, George Foreman não tem a mínima chance”.

Pois, ao entrar no ringue, George Foreman não parecia um vencedor, e sim derrotado. Aplicou alguns golpes, mas praticamente não encontrava o bailarino. Parecia até que não queria achá-lo. Fica-se com a impressão de que estava embevecido com o belo e acelerado bailado do adversário. Era o varão de Plutarco contra o varão de Marlboro (George Foreman era texano).

Enquanto George Foreman assistia Muhammad Ali picá-lo, sempre em fuga das mãos letais do rival, o público comemorava sua derrota iminente. Porque todos sabiam, pelo instinto do animal, que, no ringue, havia um atacante e uma presa. A presa era o mais forte, George Foreman, um sujeito simpático e tão forte quanto Hércules, dotado, quem sabe, da maior pegada do boxe de todos os tempos.

Então, deu-lhe o veredicto: a inteligência, no singular, venceu os músculos, no plural. Ao articular uma pré-luta, no qual vencera, Muhammad Ali derrotou George Foreman na luta.

Muhammad Ali foi grande, e menos no ringue e mais fora dele. George Foreman foi pequeno no ringue e fora dele. Por isso perdeu.

Há quem diga que a “guerra” do Zaire foi a luta do século 20. Não foi, por certo. As pelejas de Muhammad Ali contra Joe Frazier e Ken Norton foram muito mais empolgantes e duras.

Muhammad Ali perdia e ganhava com galhardia, para usar uma palavra tão bela quanto antiquada. Porque o guerreiro-bailarino não apenas lutava. Dava espetáculo. Era um fenômeno tão esportivo quanto cultural, no sentido amplo do termo.

Para mim, a maior luta do século 20 se deu entre Marvin Hagler (era estupendo) e Thomas Hearns. Mas as lutas de Muhammad Ali eram arte. Por isso, no lugar do cinema — uma subarte derivativa (da literatura, por exemplo) —, o boxe deve ser considerado a sétima arte. Boxe não é só luta. Não à toa se pode sugerir que os punhos dos lutadores “esculpem” a “pedra corporal dos rivais.

Muhammad Ali era o Rodin do boxe. George Foreman, o mister simpatia? Grande, mas menor do que o rival, ou seja, que aquele que o retirou dos ringues por um bom tempo, quase se tornando o ponto final de sua carreira de boxeador. Não à toa, ante um deus invencível, se tornou pastor.

George Foreman morreu na sexta-feira, 21, aos 76 anos. Fica sua notável história.

(Ah, sim: Mike Tyson venceria Muhammad Ali e George Foreman, os dois em forma? Não seria pinto de granja antes os dois galos índios gigantes.)

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