Yara Nunes: “Patrimônio Art déco de Goiânia está em estado terrível, mas há tempo para resgatá-lo”

Yara Nunes dos Santos está à frente da Secretaria de Estado da Cultura de Goiás (Secult) há três anos. No período, conheceu o estado de preservação do patrimônio Art Déco de Goiânia e afirma ter ficado estarrecida pelo mal estado de conservação que encontrou os prédios históricos da capital.

A secretária destaca o estado tem feito sua parte: os prédios sob sua responsabilidade — Teatro Goiânia, Palácio das Esmeraldas, Museu Zoroastro Artiaga, os prédios Marieta Teles, Antiga PGE e Antiga Chefatura de Polícia eles já foram ou estão sendo integralmente restaurados. Porém, a missão de recuperar os 22 imóveis tombados só pode ser alcançada com colaboração de todas as esferas do governo, diz Yara Nunes.

Nesta entrevista ao Jornal Opção, a secretária descreve sua visão para o Centro de Goiânia e como alcançar a preservação efetiva da história arquitetônica. Descreve ainda como o poder público falhou em sua missão de preservar a Art Déco na segunda cidade com mais imóveis neste estilo do mundo. 

Qual é a situação atual do patrimônio Art Déco de Goiânia?

Principalmente no centro da cidade, se percebe que boa parte desse patrimônio está hoje descaracterizado. Os imóveis que estão vinculados ao Governo do Estado, à Secretaria de Estado da Cultura (Secult), têm sido recuperados ao longo dos últimos anos. Fazemos um trabalho de restauração, mas sabemos que nosso tempo é curto pela quantidade de intervenções que esse patrimônio precisa.

Na Praça Cívica, por exemplo, conseguiremos entregar o Palácio das Esmeraldas e o Centro Cultural Marieta Teles, onde hoje se encontra a Secretaria de Cultura, com a fachada e estrutura completamente restaurados. Vamos entregar o Museu Zoroastro Artiaga e estamos trabalhando para conseguir  também entregar o prédio da antiga Procuradoria Geral do Estado (PGE), que é o “irmão gêmeo” do Marieta Telles. 

[Neste momento, Yara Nunes aponta para a janela em seu gabinete, de onde se avista  a antiga sede da PGE. Os prédios são propositalmente idênticos e marcam uma das características do Art déco, que é a do Espelhamento. De forma harmônica funcionam como uma moldura para a principal construção da praça que fica entre eles: o Palácio das Esmeraldas]

Quando assumiu o cargo, em que ponto de degradação a senhora encontrou estes prédios que estão sendo restaurados?

É degradante a situação de todos os prédios que formam o patrimônio Art déco de Goiânia — não só os que estamos restaurando. Além daqueles que fazem parte da lista de tombamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), também estão degradados os imóveis particulares mas construídos no mesmo estilo e mesma época, onde hoje funcionam comércios no setor do Centro. 

As pessoas fizeram adequações em fachadas que, ao longo dos anos, foram adaptadas  e modificadas para atender ao comércio local. Muitos foram quebrados ou até mesmo demolidos, enquanto aqueles que sobreviveram estão tampados com placas, toldos e tapumes comerciais que sobrepõem as fachadas originais. Todo esse patrimônio foi descaracterizado. 

Eu não culpo as pessoas que fizeram modificações por não reconhecerem o valor histórico e arquitetônico de seus imóveis. Elas foram adaptando seus prédios de acordo com a necessidade comercial. Principalmente na Avenida Goiás, da Praça Cívica ao Museu Ferroviário, vemos que são pouquíssimos os edifícios que ainda guardam suas características originais.

Museu Zoroastro Artiaga | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Ao mesmo tempo, eu vejo que ainda é possível criar uma uma proposta de requalificação e adaptação do Centro para que ele seja recuperado. Um sonho, talvez mais adiante, é ousar um pouco mais e trazer para o bairro as grandes marcas, os restaurantes de grandes chefes, as lojas que podem atrair pessoas e ocupar esses imóveis após a devida restauração.

Tendo apoio do governo em todas as esferas, seja federal, estadual ou municipal, é possível incentivar os proprietários a investirem na restauração dos prédios para que  eles possam voltar às suas características originais mediante benefícios como isenção de IPTU, descontos no  Imposto de Renda ou no próprio  ICMS.

O que falta para que essa vontade saia do papel?

Acho que falta a integração das gestões de todas as esferas de governo. Acredito que trabalhar juntos com os mesmos objetivos é viável. O governo de Estado não consegue sozinho. A Prefeitura de Goiânia tem a competência mais direta para fazer intervenções, mas sozinha também não vai conseguir. A União precisa complementar esse esforço com recursos para a finalidade de estimular a restauração de todo esse patrimônio.

Em Goiânia há 22 prédios, fora os particulares, que compõem o patrimônio tombado pelo Iphan. Os próprios moradores da capital não têm noção do tesouro histórico e arquitetônico que possuem. Como resgatar tudo isso?

Historicamente, o descaso do poder público foi ultrajante. Goiânia padece de um problema que outras cidades do país também sofrem, que é o abandono dos seus centros históricos. O governo de Goiás está fazendo seu “dever de casa”: sob nossa alçada, estão o Teatro Goiânia, Palácio das Esmeraldas, Museu Zoroastro Artiaga, os prédios Marieta Teles, Antiga PGE e Antiga Chefatura de Polícia. Eles já foram ou estão sendo integralmente restaurados. 

Hoje, neles funcionam a Secretaria Geral de Governo, a Organização das Voluntárias de Goiás (OVG)e o Instituto Mauro Borges. Quero entregar ao menos os projetos iniciais para que uma gestão futura possa continuar e restaurar o Teatro Goiânia por completo. Quando o governador recriou a Secult, em 2019, descobrimos que não existia contratos para a manutenção desses prédios. Eu não entendo como a gestão passada fazia para solucionar problemas básicos, como de infiltração.

Os prédios estavam abandonados?

Totalmente. Está ouvindo esse barulho? [A secretária chama a atenção para o barulho típico de obras em construção no andar acima]. Todos os dias temos manutenção de alguma, porque esses prédios são antigos. Com o Teatro Goiânia, foi exatamente isso que aconteceu. Eu sou goiana, nasci aqui em Goiânia, moro em Goiânia a vida inteira, e eu me lembro de muito jovem passar de ônibus ali e ver o Teatro Goiânia em obras. Isso foi há mais de 20 anos, quando ele foi restaurado. Mas o restauro não é suficiente, porque se não houver manutenção periódica, o dinheiro que foi gasto na restauração é praticamente jogado fora.

O que tentamos fazer, desde que a Secult foi recriada, é retomar a manutenção desses prédios para que eles sejam preservados. O Museu Zoroastro Artiaga,  por exemplo, estava fechado até conseguirmos recentemente iniciar o restauro completo. Estava fechado porque  chegou a uma condição insustentável. 

Sem envolver questões políticas — não quero atacar governo nem gestores — me preocupo com o trabalho do Iphan. Me deixa muito preocupada o fato de que o Museu fica em frente ao Iphan, é um prédio tombado, federal, mas nunca teve um recurso do Iphan ali. Nós tivemos algumas conversas, tentamos angariar recursos com eles para esta reforma. Nos prometeram um valor de R$ 1 milhão de reais à época para fazer a troca das telhas, mas esse dinheiro nunca chegou… tivemos que nos virar sozinhos.

E o que me preocupa ainda mais é que foi o Iphan que autorizou a construção dessa plataforma do BRT a poucos metros do Museu, o que causou  boa parte dos problemas estruturais no prédio e que hoje estamos corrigindo. Foi por conta da trepidação para a construção da plataforma do BRT, que está muito próxima ao prédio, que todas as paredes ficaram rachadas e quase desmoronaram.

Na sua opinião, a construção da plataforma do BRT a poucos metros da Praça Cívica foi um erro?

Não vejo o BRT como um erro porque eu sou totalmente favorável à chegada do transporte até o centro administrativo da cidade, mas não consigo entender uma obra na porta do patrimônio histórico. Há outra plataforma pouco à frente. Qual foi a necessidade de construir duas plataformas, uma ao lado da outra, e uma delas colada ao museu? Não consigo entender.

Isso prejudicou o prédio?

Com certeza. Por conta da trepidação das máquinas, o prédio começou a rachar. Nossa equipe começou a acompanhar de perto as rachaduras, que foram aumentando muito rapidamente durante a obra. O próprio ônibus ao passar ali tão perto prejudica o patrimônio, não só por conta da trepidação, mas pela poluição, fumaça e tudo mais. A gente sabe que teremos problemas na pintura, mas a nossa preocupação maior é com o impacto estrutural e com a necessidade de fazer reforços para evitar a deterioração.

“A construção da plataforma do BRT a poucos metros do Museu causou parte dos problemas estruturais no prédio”, diz Yara Nunes | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Como foi o processo para começar a reformar o Museu Zoroastro Artiaga?

O Museu Zoroastro Artiaga está fechado há três anos e as reformas demoraram a começar. Precisávamos das devidas autorizações do Iphan para poder iniciar essa obra. Houve ainda um debate sobre as telhas usadas, já que originais eram  francesas, de cerâmica, que são mais pesadas. Há muitos anos, as telhas francesas foram retiradas e colocaram no lugar telhas eternit. Para voltar a ter a cobertura original, a obra ficou mais cara do que o previsto, porque tivemos que realizar o reforço estrutural. Neste momento, o Iphan acenou com o apoio de R$ 1 milhão para ajudar a complementar os gastos da obra, naquela época orçada em quase R$ 4 milhões, e que saltou para R$ 6 milhões devido às péssimas condições do prédio, que foi praticamente reconstruído. No final das contas, a reforma teve valor de R$ 6,6 milhões.

Como o governador Ronaldo Caiado (UB) avalia o  seu empenho à frente da Secretaria e em  relação ao restauro completo que está em andamento?

Quando descobri que eu estava nomeada, pelo Diário Oficial, foi uma surpresa. O pessoal da Casa Civil me mandou o Diário e eu enviei uma mensagem para o governador. A única coisa que ele me respondeu naquele momento, eram 11 horas da noite, foi: “confio em você”. Tive  desde então essa sensação de confiança em meu trabalho. 

O governador já estava ciente do trabalho que eu vinha desenvolvendo como superintendente da pasta. No dia seguinte à minha nomeação, sentamos pra conversar, e ele me disse o que queria da Secretaria de Cultura,  porque precisava deixar um legado cultural que marcasse seu segundo mandato. Desde então, eu assumi este compromisso com o governador, e cobro minha equipe da mesma forma com que ele vem me cobrando.

O que ele sempre me cobra são entregas de restauro desse  patrimônio; é especialmente a este aspecto que temos nos dedicado, com orçamento e força de trabalho. Sabemos que o governo está em fase de encerramento, que Ronaldo Caiado deverá sair em março de 2026 para se candidatar à Presidência da República. Temos  exatamente um ano para fazer como Juscelino Kubitschek fez em seu plano de  50 anos em 5. 

O que o governador me exige é o cumprimento de prazos, entregas, e eu levo para ele projetos e ideias. Então, ele me dá muita liberdade para trabalhar. Ronaldo Caiado sabe que eu não tenho interesses particulares, que estou aqui como gestora pública e o meu interesse é público, convergente com a visão de governo dele, que é justamente conseguir restaurar esse patrimônio e devolve-lo aos goianos.

Qual é a parte mais difícil para restaurar os prédios?

Sempre que se mexe em uma casa, quando o reboco é retirado, se descobre imprevistos. Todo mapeamento de danos é feito a partir de estudos prévios, necessários para a licitação, mas, na hora em que os pedreiros começam a retirar as primeiras camadas das paredes, surgem as grandes surpresas que acabam revelando o real estado do patrimônio. A gente prevê o valor de uma obra, mas ela pode ficar R$ 2 milhões mais cara que o previsto, como aconteceu com o Museu Zoroastro Artiaga. 

Surpresas são o nosso maior desafio pois as licitações têm valor específico e um dos requisitos para a seleção da empresa que vai tocar a obra é  justamente a adequação ao valor final. Só temos margem para aditivos no valor de 50% do contrato original — ultrapassar essa quantia cria um problema com os órgãos de fiscalização, por isso tudo tem que ser muito bem explicado. Todo orçamento público refeito gera desconfiança; suspeita que desgastam a secretaria.

Qual o real orçamento disponibilizado à Secult?

Tenho orgulho de dizer que é o maior orçamento que a Secretaria recebeu nos últimos anos: R$ 150 milhões de reais. Em toda história, acredito que essa pasta não tenha recebido um valor como esse. Para mim, isso representa a confiança que me foi colocada para gerir este dinheiro.

São R$ 150 milhões para obras, editais, manutenção da pasta, incluindo serviços gerais e os salários dos servidores. Trata-se de um montante expressivo que nos deu liberdade para pensar em novas obras como a restauração final do prédio da PGE e outras que já estão na lista da Secult há algum tempo e pareciam impossíveis. Outro exemplo é a restauração de todo o complexo que compõe a Igreja do Sagrado Coração de Maria, além do templo. 

Essa igreja tombada pelo patrimônio histórico em âmbitos estadual e nacional nunca passou por restauro. A torre da Igreja do Ateneu Dom Bosco também foi construída em Estilo Art Déco, no entanto, sequer entrou na lista de preservação do Iphan já que com exceção da torre todos os elementos que faziam da construção em estilo Art Déco foram se perdendo à medida que a diocese alterava o prédio. O Iphan preferiu deixar o Ateneu fora dessa lista de tombamento. Uma pena, porque aquela igreja e sua torre, além do colégio, são um tesouro arquitetônico que precisam ser protegidos por lei para que não sejam mais alterados.

Torre do colégio Ateneu Dom Bosco | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

O que falta para que os goianos possam valorizar esse patrimônio?

O sentimento de pertencimento. Todos gostamos de ir para outros estados onde podemos visitar prédios históricos e museus.  Quando viajamos, publicamos fotos nas redes sociais de visitas a prédios com arquitetura bonita. Mas o goiano não tem esse sentimento de pertencimento, de valorização daquilo que é nosso, de apego ao lugar onde nascemos.

Falta esse sentimento. O exemplo deve começar pelos gestores. Acredito que esta é a maior causa que levou o nosso patrimônio a chegar nesse lugar triste e terrível  em que está agora. Mesmo assim, acredito, verdadeiramente, que ainda há tempo de resgatarmos todo esse patrimônio. 

Me incomoda saber que as pessoas que se sentaram a esta mesa viram a situação de abandono desses prédios, e o rumo deplorável para onde estavam caminhando, e mesmo assim optaram por não fazer absolutamente nada. E se fazia, o que fazia? Por que chegou onde estava? Eu não consigo ficar aqui sentada o dia inteiro, lendo, recebendo gente, conversando e não fazendo nada. Então, será que outros gestores conseguiram? O que que acontecia? Infelizmente não tenho essas respostas.

O que a senhora sugeriria para que as outras esferas — municipal e federal — possam envolver outros prédios Art déco em Goiânia neste processo de restauro?

Eu sou da academia e acho que estudos e grupos de estudo são a chave e o início de qualquer política pública. Eu gostaria muito de que fosse criado um grupo de estudos ou um núcleo, independente da nomenclatura, envolvendo o Iphan, a Secretaria de Estado da Cultura, a Secretaria Municipal da Cultura e a própria população. Acredito que somente com o envolvimento direto da sociedade civil é que vamos conseguir mudar nossa realidade.

As discussões precisam envolver e garantir a presença real dos donos e proprietários desses imóveis históricos. Assim, conseguimos debater a melhor forma de recuperá-los sem que eles tenham algum tipo de prejuízo. Temos que encontrar um meio de estimular nestas pessoas o sentimento de preservação dos seus imóveis em nome da história de Goiânia. Quem sabe quando todas as esferas tiverem essa consciência de cuidado a gente consiga entender o que vai ser o papel do IPHAN e do governo federal, do estado e do município?

Caso contrário, vamos ficar somente na reunião, mas as atividades práticas e efetivas são aqueles que se revertem em pessoas voltando a frequentar o centro da cidade. Então vamos dar isenção de ICMS, que seja para restaurantes e lojas. Eu imagino grifes aqui no centro assim como restaurantes incríveis. O Grande Hotel tinha de ser restaurado. Ali, poderia ter uma escola de culinária, de hotelaria, um hotel boutique com um bar incrível no terraço que atrairia o público jovem. Aliás, são os jovens que vão ocupar o centro da cidade novamente.

A segurança, hoje, já não me preocupa tanto, porque o trabalho que as polícias vêm realizando aqui no centro é muito eficiente. Saio da praça cívica todos os dias à noite na maior segurança. O cinema funciona até tarde. Hoje, temos liberdade e tranquilidade dentro do centro. Então as marcas podem vir ocupar o bairro sem medo. Não é um trabalho que precisamos começar, porque ele já começou. A questão é intensificar isso. 

Qual sua perspectiva para a requalificação do Centro?

Eu fiquei chocada, no ano passado, quando a gestão municipal anterior falou em requalificação do centro e estava dando incentivo para a construção de estacionamentos.  Eu pensei, “Meu Deus, as pessoas vão quebrar os prédios históricos que restam para fazer estacionamento”. Foi desesperador. Ainda bem que o assunto esfriou. Imagino que se tenha bom senso de não falar mais em transformar as casas em estacionamentos. 

Agora, temos que esperar a poeira da eleição baixar, porque a Prefeitura acaba de assumir a gestão, mas fico esperançosa com a perspectiva de, juntamente com o prefeito Sandro Mabel (UB) e o governador, ter conversas sobre o Centro. É muito utópico pensar que tudo estará caminhando até março do ano que vem. Mas precisamos ao menos plantar essa semente.

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