O Brasil é o país onde os cínicos e hipócritas ganham sempre dos autênticos

A novela Vale Tudo volta às telas 37 anos depois. A pergunta, no entanto, continua a mesma: “O Brasil ainda é liderado por elites que não se importam com os brasileiros?”, questiona o professor Lisandro Nogueira, pós-doutorado em Cinema pela USP (Universidade de São Paulo). A pergunta que escancarava a corrupção e o cinismo das elites brasileiras nos anos 1980, em meio à redemocratização e às denúncias de escândalos públicos, volta a ecoar em um país que, apesar das décadas que se passaram, ainda enfrenta dilemas éticos semelhantes — ou, quem sabe, mais intensos.

O remake carrega o peso de um clássico. Em 1988, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères realizaram uma obra que não fazia concessões: tratava de desigualdade, impunidade e privilégio com personagens que representavam, sem metáforas, a elite brasileira e sua relação promíscua com o poder. Odete Roitman virou ícone não apenas por seu assassinato, mas por ser o retrato cruel de uma elite egoísta e manipuladora. A cena final com Marco Aurélio fugindo do país e debochando do povo permanece, até hoje, como uma das imagens mais potentes da nossa teledramaturgia — e da nossa realidade.

O desafio da nova versão não é pequeno. A TV Globo precisa dialogar com duas audiências muito distintas: o público nostálgico, que viveu a comoção da novela original, e uma geração que atende aos capítulos sob demanda, maratona séries estrangeiras e cresceu em uma realidade política muito mais polarizada. A geração é, sobretudo, mais crítica e os limers talvez sejam ainda mais atrasados.

Além disso, a emissora precisa atualizar os personagens e os conflitos sem diluir a crítica social que tornou Vale Tudo tão relevante. O elenco renovador, com nomes como Taís Araújo, Bella Campos e Debora Bloch indica que há intenção de trazer diversidade e profundidade ao debate. Mas fica a dúvida: a crítica à corrupção e à hipocrisia das elites terá a mesma contundência? Ou será suavizado para evitar atritos com um público que hoje se divide entre extremos ideológicos?

A força de Vale Tudo estava em escancarar a realidade sem filtros. Se a nova versão hesitar em fazer o mesmo, corre o risco de se tornar apenas mais um produto embalado pela nostalgia, sem o impacto necessário para provocar reflexão — como foi o remake de Pantanal. Por outro lado, se mantiver a coragem do original, pode ser mais do que uma boa novela: pode ser uma nova janela para debater, em 2025, o Brasil de sempre.

Enquanto Marco Aurélio está em um jatinho de saída do país, ele dá uma banana ao Brasil que fica para trás: um país marcado por tragédias, desigualdades e corrupções das mais variadas formas. Desde Casa Grande & Senzala, que expõe as raízes patriarcais e escravocratas da sociedade brasileira, passando por Raízes do Brasil, com a noção do “homem cordial” e da informalidade das relações de poder, até A Elite do Atraso, que retoma esse legado à luz do presente — todas essas obras apontam para a mesma ferida: a persistência de estruturas herdadas da escravidão e mantidas por uma elite que se reinventa para continuar no topo.

Ao colocar essa discussão em horário nobre, a novela se soma a esse debate intelectual, mas com um alcance muito maior. Vale Tudo não apenas dramatiza esse conflito histórico, como o encarna em personagens que seguem atuais — a mãe batalhadora, a filha ambiciosa, o executivo corrupto, a empresária manipuladora. Todos são arquétipos de um Brasil que ainda tenta decidir se quer romper com o passado ou se continuará sendo cúmplice dele.

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