DNA ambiental e monitoramento da biodiversidade: uma abordagem inovadora para a bacia do Araguaia

Por Cintia Pelegrineti Targueta de Azevedo Brito, Carmen Elena Barragan Ruiz, Rhewter Nunes, Ramilla dos Santos Braga Ferreira, Thannya Nascimento Soares e Mariana Pires de Campos Telles –
Especial para o Jornal Opção

A Bacia do rio Araguaia ocupa uma grande área do Brazil central e ainda há muitas lacunas de conhecimento sobre a biodiversidade (animais, plantas e microrganismos) existentes ao longo de sua extensão. Uma forma de identificar quais organismos estão presentes em um ambiente envolve a busca ativa, a coleta de indivíduos e a identificação taxonômica avaliando a morfologia dos animais e plantas. Na grande maioria das vezes, trata-se de um trabalho que exige um alto nível de formação técnica, grande esforço de coleta e um custo bastante elevado para conhecer a biodiversidade de uma determinada região. 

Mesmo investindo em um grande esforço em coletas, é difícil investigar toda a biodiversidade de uma bacia hidrográfica em um curto espaço de tempo. Levantamentos em curto espaço de tempo são importantes dada a urgência em obter informações; muitas espécies importantes podem estar sob ameaça e, quanto mais rápido conseguirmos identificá-las no ambiente, mais rápido poderemos executar ações para monitorá-las e conservá-las, por exemplo. Para contribuir com a aceleração desse tipo de levantamento, uma metodologia desenvolvida recentemente, conhecida como “DNA ambiental” (do inglês Environmental DNA, com a sigla eDNA), tem permitido identificar e monitorar a biodiversidade de uma determinada localidade diretamente a partir de amostras do ambiente, sem a necessidade de coletar diretamente as espécies que ali se encontram para poder estudá-las.

O que é DNA ambiental?

O DNA ambiental pode ser definido como todo material genético (DNA, ou ácido desoxirribonucleico) coletado diretamente do ambiente (água, solo, ar) sem a necessidade de capturar os organismos. Esse DNA pode estar presente em células livres, fragmentos de tecido, muco, fezes, pólen, pelos entre outros, dispersos no ambiente. O princípio da técnica consiste em utilizar o DNA presente nessas amostras para identificar os organismos que estão presentes em um determinado ambiente, daí o nome “DNA ambiental”.

O material genético que é fundamental para o funcionamento dos organismos, também pode ser utilizado como marcadores moleculares para responder diversas questões científicas importantes e definir estratégias de manejo e conservação das espécies. Dentro da ecologia e do estudo do ambiente, o uso do DNA por meio de metodologias moleculares tem se expandido bastante, dentro de uma área que ficou conhecida como “Ecologia Molecular”.

Como o DNA ambiental é utilizado para identificação de espécies?

A análise do DNA encontrado no ambiente permite a identificação de quais organismos estão, ou estiveram, presentes em diferentes localidades. Essa identificação molecular das espécies é possível a partir do sequenciamento de regiões específicas do DNA extraído das amostras ambientais. É esperado que a sequência de nucleotídeos do DNA (adenina, citosina, timina e guanina, simbolizados pelas letras A, C, T e G) seja específica para cada organismo detectado em uma amostra do ambiental e seja relacionada a uma espécie que ocorre em um determinado local. Essa técnica é conhecida como DNA metabarcoding, derivada da técnica de DNA barcode, ou uso de sequências do DNA como “códigos de barras” para identificação molecular das espécies. No DNA barcode, o DNA de uma única espécie é acessado, sequenciado e comparado individualmente com os bancos de dados, como por exemplo o International Barcode of Live (BOLD), para realizar a identificação taxonômica, ou seja, definir de qual é realmente aquela espécie (se ela já tiver sido estudada anteriormente). Por outro lado, no caso do DNA metabarcoding, todo o DNA de uma amostra ambiental, ou seja, de todos os organismos que estiveram no ambiente, precisa ser extraído e as regiões específicas do genômica sequenciadas para a identificação do conjunto de espécies presentes naquela amostra, por meio de técnicas complexas de “bioinformática”. Com isso, é possível realizar diversas análises, tais como a detecção de espécies ameaçadas, espécies invasoras, análises de composição das comunidades e monitoramento de biodiversidade.

Vantagens do uso de DNA ambiental (eDNA) em estudos de biodiversidade.

Métodos para obter o DNA ambiental 

O uso do DNA ambiental para monitoramento cresceu recentemente nos últimos anos, devido à sua natureza de coleta não invasiva e aos avanços nas plataformas de sequenciamento de DNA, principalmente relacionados à diminuição do custo para implementação dessas técnicas. O primeiro passo para obter o DNA ambiental é a realização da coleta das amostras em um determinado ambiente. Após a coleta, o material deve ser armazenado adequadamente para manter a sua integridade durante o transporte até o laboratório. Depois que a amostra chega no laboratório o DNA é extraído por meio de técnicas específicas para cada tipo de material. O DNA passa por uma etapa de amplificação de uma região genômica utilizando um método chamado PCR (do inglês Polimerase Chain Reaction). Esse processo é importante para aumentar a quantidade de uma determinada parte do genoma das espécies que são sequenciadas. 

A escolha da região do genoma a ser estudada vai depender do organismo alvo que precisa ser identificado (por exemplo: peixes, insetos, bactérias, algas, entre outros) e o nível de variação genética em cada região molecular, suficiente para identificação de cada espécie. Por exemplo, para identificação de peixes é muito utilizado o sequenciamento de uma região do gene ribossomal 12S. Já para identificação de bactérias, é utilizado sequenciamento do gene ribossomal 16S. Para as plantas, utiliza-se frequentemente o gene rbcL do cloroplasto, a região nuclear ITS para fungos e a região do gene mitocondrial COI para animais, entre outras. Essas regiões específicas do genoma se diferenciam das demais quanto ao seu padrão de variação genética que favorece a separação do que é a variação esperada dentro das espécies (entre os seus indivíduos) daquela variação que ocorre entre espécies diferentes, viabilizando então a identificação taxonômica dos organismos ao comparar tais sequências de DNA de amostras ambientais com um banco de dados com informações pré-existentes sobre as espécies. 

O DNA ambiental pode ser acessado pela coleta de amostras ambientais como água, solo e ar. Essas amostras são processadas para extração do DNA dos restos celulares presentes no ambiente. Após sequenciamento do DNA é possível reconhecer a comunidade de organismos (espécies) existentes em determinado ecossistema (imagens criadas utilizando Canva e https://BioRender.com)

Pela técnica de PCR, essas regiões do genoma são copiadas várias vezes e preparadas para serem sequenciadas nas plataformas mais modernas de sequenciamento massivo de alto desempenho. Após o sequenciamento de todo o DNA de uma amostra ambiental, as sequências são comparadas com um banco de dados de sequências de referência, como mencionado acima. Essa comparação permite inferir as espécies que estão nas amostras analisadas. Dessa forma, o desenvolvimento e ampliação de os bancos de referência é também uma etapa muito importante para aumentar a qualidade na atribuição das espécies que ocorrem em cada localidade.

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Analisando amostras de DNA nos Sequenciadores de Nova Geração (NGS Sequencing) no Laboratório de Genética & Biodiversidade (LGBio) da UFG | Foto: Acervo Pessoal

Estudando o DNA Ambiental na Bacia do Araguaia

Apesar de ser um método recente para análise da biodiversidade, o uso de DNA ambiental tem sido promissor para biomonitoramento de diferentes espécies em diversos ambientes na comunidade científica global. O uso dessa abordagem requer um menor custo e esforço, quando comparado com as abordagens tradicionais e apresenta um maior alcance e agilidade na detecção de espécies raras e invasoras. Em ambientes com uma grande diversidade biológica, porém pouco conhecida, como a região da bacia do rio Araguaia, essa é uma metodologia com grande potencial para contribuir com um inventário em maior escala da biodiversidade presente na região. 

Desde as primeiras expedições de coleta realizadas pela nossa equipe no rio Araguaia em 2012, os pesquisadores estão fazendo coleta de água para avaliar a biodiversidade e a comunidade aquática em diferentes lagoas de inundação ao longo do rio, riachos e também no solo (nas áreas de levantamento florestal). Por exemplo, as amostras de água são coletadas nas lagoas durante as cheias e filtradas em membranas com minúsculos poros de tamanho conhecido para retenção de microrganismos eucariotos e procariotos. As membranas são levadas para o Laboratório de Genética & Biodiversidade (LGBio) da UFG, armazenadas, processadas para extração do DNA e posteriormente sequenciadas. Essas primeiras análises de DNA ambiental no Araguaia foram realizadas no contexto da rede de pesquisa em “Genética Geográfica e Planejamento Regional para a Conservação de Recursos Naturais do Cerrado”, o GENPAC (2011-2015), apoiado pela FAPEG e pelo CNPq. Nesse projeto foram definidos os protocolos iniciais para analisar tanto a diversidade quanto a composição da comunidade de peixes, microrganismos eucariotos e algas fotossintetizantes.

Esses primeiros trabalhos da nossa equipe foram realizado em parceria com o Laboratório de Biogeografia e Ecologia Aquática da Universidade Estadual de Goiás (UEG) no contexto do projeto de doutorado da Dra. Karine Borges Machado (atualmente também professora da UEG), coordenado pelo Dr. João Carlos Nabout. Para esse estudo inicial, cujos resultados foram publicado em 2019 na revista científica Journal of Plankton Research, o DNA ambiental extraído de amostras de água coletadas em 27 lagoas de inundação do Rio Araguaia permitiu avaliar a composição de microeucariotos planctônicos. As análises mostraram alta diversidade e uma composição de espécies estruturadas espacialmente. Em trabalhos mais recentes, desenvolvidos atualmente com apoio do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade (EECBio) e dos programas “Araguaia Vivo 2030” (TWRA/FAPEG) e do “PPBio Araguaia” (PUC Goiás e CNPq), essa abordagem tendo sido ampliada para caracterização da biodiversidade dos microrganismos eucariotos e procariotos a partir do DNA ambiental, além de desenvolver e aplicar novas metodologias para analisar esses dados cada vez mais complexos.  

Em 2023, o número de lagoas coletadas subiu para aproximadamente 144, estendendo por grande parte da bacia do rio Araguaia. Além do conhecimento da biodiversidade local e composição das comunidades, o DNA ambiental será utilizado para biomonitoramento de espécies de microrganismos patogênicos, peixes, botos e outros vertebrados. Nas expedições de 2024 e 2025 novas coletas foram realizadas e os dados estão sendo processados, acompanhe os resultados nas redes sociais dos projetos Araguaia Vivo (@araguaiavivo) e PPBio Araguaia (@ppbioaraguaia).

Pessoas sentadas ao redor de uma mesa com cadeiras

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.
Coleta e filtragem de água para ser utilizada no estudo de DNA ambiental, que foi realizada durante a expedição que ocorreu em fevereiro de 2023, com a equipe do INCT EECBio | Foto: Acervo Pessoal

Detecção de espécies invasoras e conservação ambiental

O uso do DNA ambiental aumenta a capacidade de detecção de espécies em que a coleta direta do indivíduo é mais desafiadora, como é o caso do boto, cujo biomonitoramento é importante para avaliar a presença da espécie no ambiente ao longo do tempo. Além disso, essa metodologia propicia a capacidade de monitorar espécies em risco de extinção sem a necessidade de coletar indivíduos da natureza, pois sua abordagem de coleta não é invasiva, mas analisa vestígios biológicos deixados no ambiente. Outra aplicação importante do uso do DNA ambiental em amostras do rio Araguaia será a identificação de espécies invasoras, como é o caso do tambaqui. Espécies invasoras podem trazer sérios riscos ao equilíbrio ecológico de um ecossistema. A detecção dessas espécies é uma forma de monitoramento e permite a definição de melhores estratégias de manejo das espécies invasoras a fim de diminuir o dano da presença naquele ambiente. 

Para as amostras de água, além do monitoramento de espécies, análises da composição dos microeucariotos por DNA ambiental estão sendo desenvolvidas. A diversidade e composição desses organismos indicam a qualidade ambiental do rio, funcionando como bioindicadoras ambientais, ajudando a identificar áreas com boa saúde ecológica e outras sob impacto antrópico, como diferentes níveis de poluição aquática. No caso do DNA ambiental do solo, as amostras estão sendo coletadas nas mesmas localidades dos levantamentos florestais, permitindo comparar as espécies identificadas pelo DNA ambiental com aquelas registradas pela equipe de Botânica. Essa abordagem possibilita escalonar os levantamentos florestais em maior amplitude e rapidez, contribuindo para estudos de conservação e monitoramento ambiental.

A utilização do DNA ambiental na bacia do rio Araguaia representa um avanço significativo e inovador no estudo e monitoramento da biodiversidade da região. Cada vez mais é preciso desenvolver e utilizar novas tecnologias para encontrar soluções para os muitos problemas ambientais que temos atualmente, e o DNA ambiental é sem dúvida uma das ferramentas modernas e eficientes que tem grande potencial para transformar as estratégias de conservação e manejo dos ecossistemas, permitindo um conhecimento mais amplo e detalhado da biodiversidade presente no Araguaia e sua conservação para as futuras gerações.

Cintia Pelegrineti Targueta de Azevedo Brito – TAE da Escola de Veterinária e Zootecnia (EVZ) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA e do PPBio Araguaia (CNPq).

Carmen Elena Barragan Ruiz – Pesquisadora em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” e do PPBio Araguaia.

Rhewter Nunes – Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e pesquisador do “Araguaia Vivo 2030” e do PPBio Araguaia.

Ramilla dos Santos Braga Ferreira – Professora da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR) e pesquisadora do PPBio Araguaia; 

Thannya Nascimento Soares – Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), e pesquisadora do PPBio Araguaia; 

Mariana Pires de Campos Telles – Professora da PUC Goiás e da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenadora dos programas Araguaia Vivo 2030 e PPBio Araguaia; 

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