Em um país onde a fé movimenta multidões — e cifras bilionárias —, a criação de um banco digital voltado exclusivamente ao público evangélico levanta mais que sobrancelhas. Lança um necessário debate ético. Recentemente, a Igreja Batista da Lagoinha anunciou o Clava Forte Bank S/A, uma fintech com serviços bancários específicos para igrejas, pastores, fiéis e obreiros.
Sob o discurso de fortalecer o “Reino”, a iniciativa mescla missões religiosas com produtos financeiros como linhas de crédito, seguros e cartões personalizados. Porém, entre slogans e aplicativos, uma pergunta se impõe: como conciliar os valores de uma doutrina que condena o lucro sobre o sofrimento alheio com a estrutura tradicional de um banco que, inevitavelmente, lucra com juros?
O banco, vale destacar, oferece soluções como crédito para construção de templos e seguros para obreiros — o que, à primeira vista, pode parecer uma forma prática de apoiar a estrutura das igrejas. Entretanto, o próprio ato de cobrar juros — mesmo que dentro dos padrões regulatórios — entra em rota de colisão com princípios bíblicos que, desde o Antigo Testamento, condenam a prática. Versículos como “não agirás com ele como um agiota, não lhe cobrareis juros” (Êxodo 22:25) e “não aufiras dele nem juros nem lucro” (Levítico 25:35-37) deixam claro o desconforto da tradição judaico-cristã com a ideia de se lucrar com a necessidade do próximo.
Não se trata aqui de contestar o direito de uma instituição religiosa gerir seus recursos ou buscar autonomia financeira. Mas há uma diferença fundamental entre fomentar a boa administração e transformar a fé em modelo de negócio, utilizando a própria estrutura de crença como plataforma de marketing. O problema não é apenas o banco existir — afinal, qualquer grupo pode criar uma fintech —, mas o modo como ele se apresenta: como “ferramenta do projeto missionário”. Ou seja, o que se propaga como serviço é, na verdade, um novo braço do empreendimento eclesiástico.
O argumento do “Reino” como justificativa para empreendimentos comerciais não é novo, mas a combinação entre fé e sistema bancário suscita um desconforto que não pode ser ignorado. No capitalismo, o dinheiro precisa se multiplicar. No cristianismo, a ganância é pecado. Como alinhar essas direções opostas sem cair em contradição? E mais: quando uma igreja cria um banco para oferecer crédito a seus próprios seguidores, quem está servindo a quem?
Do ponto de vista teológico, a contradição se aprofunda. O historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi direto à BBC News Brasil ao resumir: “a cobrança de juros é vista como ganância”. Ainda que o banco não pratique usura no sentido técnico da palavra — juros extorsivos ou agiotagem —, a presença de qualquer cobrança financeira dentro de uma estrutura religiosa que se apresenta como “missão” fere não só princípios espirituais, mas éticos.
É também relevante observar o momento em que esse tipo de projeto surge: um período de crescente influência política e econômica das igrejas evangélicas no Brasil. Transformar fiéis em clientes e pastores em gestores financeiros é um movimento arriscado, pois funde duas esferas que deveriam se manter, no mínimo, em diálogo respeitoso, e não em sobreposição funcional. A fé, nesse contexto, corre o risco de se tornar uma grife — ou pior, um produto a ser vendido com taxas de manutenção e cashback.
A justificativa de que o banco é “voltado para a comunidade cristã” não basta para neutralizar a crítica. Isso porque, historicamente, os líderes religiosos que construíram a doutrina cristã mais criticavam do que promoviam a busca por lucro. Ainda no Salmo 15, o perfil do justo é aquele que “não emprestou seu dinheiro com usura”. Quando a espiritualidade vira isca para novos modelos de capitalização, é legítimo perguntar: a missão é realmente evangelizadora, ou apenas um nicho de mercado?
Em uma sociedade que vive imersa em desigualdades e marcada por crises econômicas, usar a fé — elemento tão íntimo e poderoso — para legitimar operações financeiras merece cautela. O risco não é apenas moral, mas social. Incentivar pessoas em situação de vulnerabilidade a se endividarem em nome da fé é um passo perigoso e injusto. Ainda que o banco prometa condições especiais e atendimento personalizado, a lógica do mercado não conhece benevolência. Um inadimplente cristão é, aos olhos da instituição financeira, apenas um CPF com dívida, não uma “ovelha” em dificuldade.
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