O papa Francisco, o argentino Jorge Bergoglio, era um religioso-estadista surpreendente. Mesmo na Igreja Católica, da qual era o “imperador”, não se tem uma única opinião formada a seu respeito. Super conservadores não apreciam suas ideias e comportamento. Progressistas lhe têm apreço, mas postulam mudanças mais amplas. Ninguém é perfeito, diria Billy Wilder.
Dizê-lo “surpreendente” não equivale a apontá-lo como uma incógnita. Pelo contrário, a conduta e o ideário de Francisco foram (são) transparentes. O papa não estava enganando nem a ala interna, de padre a cardeal, nem a ala externa, os fiéis. Diferentemente de líderes teóricos, o chefe da Igreja Católica dava o exemplo: poucos papas foram tão empáticos, humildes e humanistas. Ele tinha uma empatia única com todos, sobretudo com os sofredores (e não os materiais).
Há os que se deixaram “enganar” a respeito do papa, quiçá por razões políticas. Os ortodoxos sugeriram que estava quase se tornando “comunista” — o que revela profundo desconhecimento do que é um império milenar, tão sólido e irredutível quanto a obra de Dante e Skakespeare. Há uma frieza racionalista, para além das ideologias, nas mudanças da Igreja Católica. Não se pode falar em revolução, e sim em evoluções que, somadas, ganham a aparência de simulacros de revolução.
Estruturas gigantes, milenares, como a Igreja Católica, dificilmente aceitariam um líder revolucionário, desses que, chegando ao poder, querem romper com tudo e instalar uma nova ordem. Mesmo um líder “evolucionário”, como Francisco, encontrou resistência, e das grandes.
João Paulo 2º, um dos grandes papas da Igreja Católica, ao lado de Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, e de Helmut Kohl, chanceler da Alemanha, sem deixar a liturgia de lado — era um respeitável evangelizador —, teve uma atuação decisiva na “liquidação” do comunismo no Leste Europeu.
Portanto, João Paulo 2º merece figurar na história tanto como religioso, dos mais devotados, quanto como político. Culto e perspicaz, o religioso polonês sabia que um homem de Estado, como um papa, não tem como escapar à história. A omissão é uma escolha, uma maneira de participar, talvez a pior. João Paulo 2º, Karol Wojtyla, escolheu o caminho da participação ativa. Havia um quê de progressismo no seu conservadorismo, por assim dizer.
Francisco era um papa tão político quanto João Paulo 2º, daí sua preocupação com os pobres. Mas não se trata de um interesse retórico. De fato, estava trabalhando — e deixou sementes — para que a Igreja Católica se tornasse ainda mais acolhedora com os pobres — aqueles que nada têm — e com os que sofrem (que não são apenas os pobres). A pegada humanista do papa era prática, o que, por vezes, chocava e choca (o legado ficará, quem sabe, de maneira incontornável) até alguns de seus confrades, acostumados a viver nas ilhas de prosperidade da Igreja.
O papa era, também, um homem de coragem. Sem receio, estava, digamos assim, mexendo na pauta “comportamental” da Igreja. Trata-se daquela que parece incomodar os religiosos conservadores — os que não querem mudança, nem mesmo cosméticas.
Mudanças, por sinal, que acabam por acontecer à revelia de posições conservadoras, religiosas ou não. Ninguém segura o futuro que já aconteceu, quer dizer, que já se tornou presente. Francisco tinha uma antena especial para perceber a força do incontornável. Por isso, sua luta para “adaptar” a Igreja Católica ao inevitável.
Ao “abrir” a Igreja para orientações e comportamentos diversos dos aceitos tradicionalmente pelos religiosos e fiéis ortodoxos, o papa, afinal, estava se tornando um revolucionário? Não. Mas, como choca parte das forças internas da própria Igreja, fica-se com a imagem, algo cristalizada, de que estava (está) ocorrendo uma revolução. De certa maneira, dada a resistência do conservantismo, acaba por ser uma evolução que parece uma revolução.
O que Francisco estava fazendo era (é) uma “atualização” da Igreja, tornando-a contemporânea de seus fiéis e dos demais seres humanos de seu tempo. A resistência, internamente feroz, é que “transforma” a atualização numa espécie de revolução. O papa estava sugerindo — ao “mover” a Igreja — que é preciso acompanhar o que está acontecendo em grande parte dos países, em termos de direitos civis, sobre seus avanços, para beneficiar aqueles que, de uma maneira ou de outra, às vezes são deixados de lado, como mulheres e gays.
Ao ser apresentado no Festival de Cinema de Roma, há algum tempo, o documentário “Francesco”, de Evgeny Afineevsky, diretor americano de origem russa, provocou polêmica.
O documentário trata dos temas que eram caros a Francisco, como meio ambiente, pobreza, migração e racismo. Mas um aspecto chamou mais a atenção da imprensa. “Os homossexuais têm o direito de ter uma família. Eles são filhos de Deus. O que precisamos ter é uma lei de união civil, pois dessa maneira eles estão legalmente protegidos”, disse o papa.
O que, a rigor, tem de “moderno” no que disse Francisco? Não muito, claro. Mas, como notou o “Estadão”, “é a primeira vez que um papa se manifesta dessa forma sobre a união civil”. Portanto, é um avanço. Insistamos: a Igreja está se tornando, a partir da cúpula — e não, necessariamente, de sua base —, contemporânea de todas as mulheres e de todos os homens.
Anteriormente, ao se mostrar tolerante com os homossexuais, Francisco disse: “Quem sou eu para julgar?” Ao receber casais homossexuais no Vaticano, o papa deu sinais de que suas palavras vão além da retórica, de certo bom-mocismo de conveniência.
O documentário sobre o papa relata a história de Andrea Rubera, casado com um homem e pai de três filhos. Ao receber uma carta de Rubera, que dizia ter interesse em “educar os filhos na fé católica”, Francisco entrou em contato, convidando-o a frequentar uma paróquia da Igreja.
O chileno Juan Carlos Cruz, vítima de abusos sexuais, conta: “Quando conheci o papa Francisco, ele me disse que sentia muito pelo ocorrido. ‘Juan, foi Deus quem te fez gay e em todo caso te ama. Deus te ama e o papa também te ama’”. O ativista contra abusos sexuais aparece no documentário.
Francisco estava criando — talvez tenha criado — uma Igreja Católica mais humanista, tolerante e inclusiva. Noutras palavras, estava fortalecendo a Igreja, ao torná-la mais acolhedora. Era um papa notável.
Com a morte de Francisco, oxalá o próximo papa não seja um recuo. Talvez não tenha mais condições de recuar. Para não ficar contra a sociedade. Talvez é a palavra adequada.
[Leia texto do Jornal Opção, publicado em 2014, sobre o avanço da Igreja Católica sob a direção do papa Francisco (https://tinyurl.com/63dj7r8y).]
O post Ao defender a união civil entre gays, Francisco atualizou, sem mudar, a Igreja Católica apareceu primeiro em Jornal Opção.