A Santa com olho no prato
Daniana dos Santos Chaveiro de Freitas
Especial para o Jornal Opção
— Tem que benzer essa menina; o vento dela virou.
— Tem que benzer essa menina; a espinhela dela é caída.
— Tem que benzer essa menina; a moleira não fechou.
Diziam os benzedores. Todos palpitaram no diagnóstico, certos na cura pela reza. O ramo de guiné murchava logo no início da benzeção, mas a fé inabalável é. A menina olhava aqueles quadros de santos na parede, enquanto o ramo era trançado em cruz e molhado na água da bacia. Santo azul, santo padroeiro, santo sem nome. Santa com olho no prato, cruzes. A menina cruzava os dedos em frente o corpo, tentando relaxar, a velha mandava descruzar. Estava cortando a linha entre a reza e a cura, não devia cruzar nada. A menina soltava as mãos, e olhava para a santa.
Picolé, guerra de mamona, ovo choco na cabeça no dia do aniversário. Coisa boa de imaginar, enquanto esperava. A reza continuava, e o pensamento ia longe. Moleira aberta… Espinhela caída… Vento virado… Quando é que isso aconteceu?! E tome ramo em cruz.
— Falta um pedaço do seu coração.
A menina, já não menina, ouvia o médico dizer. Cúspide, bicúspide, tricúspide. Se benzer, sara? Não sarou antes porque não benzeram o coração. Rezaram na bendita moleira, o vento que virou não se sabe como, e a espinhela caída. Levantada, agora. Caída de novo, com essa notícia.
— Isso mata?
— Agora não.
— Hum.
— Vai vivendo.
E assim a notícia virou estatística. Vai vivendo, uma hora a conta chega. Será que aquela santa do olho no prato sabia? Ela parecia que via tudo – a menina pensava, alguns dias depois da notícia. Faltar um pedaço do coração não parecia ser boa notícia. Hum hum.
— Você tem um aneurisma na aorta ascendente.
A menina, já não jovem, ouviu o médico dizer. Dilatação, ectasia, coração partido. Realmente, a santa sabia. Era o fim?! Será que será assim?! Vai explodir igual balão num dia de festa?! Vai parar, silencioso, desligando o motor?! Vai doer? Vou sofrer? Como será o céu? Vixe, como será o inferno?!
— Isso mata?!
— Agora não.
— Hum.
— Vai vivendo.
Bom, tudo o que ela tinha feito até agora, era viver. Viver na expectativa de morrer: é agora! Não… É agora! Não… Agora vai! Não… Devia ter tido mais respeito com a santa, aquele dia.
— Tem um buraco no seu coração.
A menina, já não velha, ouviu o médico dizer. Buraco que faz o sangue passar de um lado para o outro, dentro do coração. Mas que inferno de rezadeira que errou longe a previsão! Se tivessem benzido direito, não fariam a menina passar a vida inteira esperando morrer, esperando essa porra acontecer, todo dia a mesma angústia! Vive, morre, morre, vive!
— Mas que macaca, isso não mata, não?!
— Agora não.
— Hum.
— Vai vivendo.
Saindo do consultório aquele dia, a menina-velha, xingando santo e benzedor, desgraçando olho em prato e moleira aberta com espinhela caída, foi atropelada na Avenida Tocantins. Sapato e exame e coração pra todo lado.
Daniana dos Santos Chaveiro de Freitas é escritora.
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