Caso Marielle Franco: Iuri Rincon pisa na bola de Púchkin e põe Tolstói para escanteio

O jornalista e escritor Iuri Rincon Godinho é um mestre da simpatia. Solidário e atento às agruras dos amigos, sempre tratados como hermanos por adoção. Dotado de uma inteligência fina, é capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo, e, no geral, bem-feitas, apesar da pressa habitual de flash gordon da história, por assim dizer. Sabe de tudo um pouco. Quem o conhece acredita que é onipresente. Múltiplo, exército de um homem só, aparece em Nova York e, de imediato, na na terra dos Incas, no Peru. Conhece o mundo como poucos e pode passar horas explicando a história dos países que admira, como os Estados Unidos e a Inglaterra, com imensa graça e, apesar das idiossincrasias, precisão. Coleciona até objetos da época da Guerra Civil Americana e guarda, com relativo fervor, pedaços do Muro de Berlim (símbolo da ruína do comunismo no Leste Europeu). Se brincar, tem uma lasquinha da cruz de Cristo. Rs.

Queda de ponte em Baltimore, nos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Então, quando escreve, Iuri Rincon sabe o que diz. Nem sempre é objetivo, às vezes coloca sua opinião à frente dos fatos, como ocorreu numa postagem recente no Instagram, do qual, comunicador moderno, é um dos mais aficionados.

Vale transcrever, na íntegra, a diatribe de Iuri Rincon, publicada sob o título de “Nossa imprensa é um zumbi” (a generalização avulta, de cara):

“A imprensa nacional perdeu o cérebro. A grande notícia hoje [na semana passada] é a trombada de um navio na ponte em Baltimore, nos Estados Unidos. As imagens estão nos grandes portais internacionais e são impressionantes. A ponte simplesmente desabou. Não se sabe ainda quantos mortos ou feridos.

“No Brasil, o Bolsonaro na embaixada e a morte de Mariele [sic] ganham as manchetes. Lá pelo fim das páginas dos portais, junto com o Big Brother, está o acidente de Baltimore.

“Nossa imprensa se banalizou, perdeu o olhar da notícia, esqueceu a solidariedade nas grandes tragédias. É chocante a diferença entre o que publicamos e o que é publicado na Europa, principalmente, e nos nossos hermanos da América do Sul.

“Nossa imprensa, meus amigos, é um zumbi. Sem alma, com um restinho de cérebro, cambaleante e buscando o sangue dos cidadãos menos avisados.” (Frise-se que a jornalista Fabiana Pulcineli, ao contrário dos que aplaudem por aplaudir, corrigiu o texto de Iuri Rincon: “Ué, acabei de ler os jornais e em todos as fotos estão em destaque na capa”.)

A rigor, nem parece texto de Iuri Rincon, sempre ponderado, às vezes irônico. Porque um acidente em Baltimore, nos Estados Unidos, merece mais atenção do que as histórias de Jair Bolsonaro, do PL, e o esclarecimento do assassinato de Marielle Franco o jornalista infelizmente não esclarece.

Golpismo de Bolsonaro: a história continua

Bolsonaro merece permanecer na mídia, e não apenas por ter dormido dois dias na embaixada da Hungria. Sobretudo, por ter atentado contra a democracia, articulando um golpe de Estado com o apoio de alguns generais e coronéis, merece ser dissecado pelos jornais, revistas, sites e emissoras de televisão e rádio. Retirá-lo do ar, trocando-o pelo acidente da ponte, seria um gesto de provincianismo, de alguém que parece acreditar que o Brasil ainda não é um país, e sim uma colônia — agora, não mais de Portugal, e sim dos Estados Unidos.

Poucos jornalistas brasileiros conhecem os Estados Unidos tão bem quanto Iuri Rincon. Como é, por natureza, brincalhão, nem sempre se percebe a sua excelente formação cultural, por vezes chegando às raias da erudição. Então, por conhecer a terra de William Faulkner e Joyce Carol Oates como a ponta do dedo mindinho, o jornalista sabe que, lá, os jornais regionais — e há vários de grande porte — dão prioridade às notícias locais. Excetuando o “New York Times” e o “Washington Post” — e mais alguns —, o mundo interessa pouco ao jornalismo americano (bem ao contrário dos europeus, como os franceses e os ingleses, que são mais cosmopolitas). Sempre excessivo, Paulo Francis costumava dizer, de maneira enfática, que parte dos americanos não sabia nem mesmo em que Estado morava — dado o vínculo com sua província (cidade, condado).

Para conhecer o universo é preciso começar com um interesse profundo pela própria aldeia. A frase, com outras palavras, é atribuída a Liev Tolstói, mas também a Aleksandr Púchkin, o pai da moderna literatura russa. De alguma maneira, Iuri Rincon pisa na bola de Púchkin e põe Tolstói para escanteio. Mas é isto: precisamos conhecer a província para entender o mundo.

O caso de Bolsonaro, de como chegou ao poder e tramou contra a democracia, merece ser exposto pela mídia e analisado pelos acadêmicos das universidades. Como o Brasil se pôs nas mãos de um pascácio como Bolsonaro merece estudos detidos, sérios, objetivos, equilibrados. Portanto, e Iuri Rincon sabe disso, Bolsonaro e o bolsonarismo não são casos esgotados. Tanto que, na última pesquisa do Instituto Paraná, o ex-presidente aparece à frente do presidente Lula da Silva, do PT. A extrema-direita se tornou um fato — incontornável, no momento — do Brasil. Goste-se ou não disto.

Caso Marielle Franco e Anderson Gomes

Por que o esclarecimento do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes (que Iuri Rincon, como tantos outros, nem menciona) merece sair das manchetes para abrir espaço para a queda de uma ponte em Baltimore? Esquecê-lo não seria, de alguma maneira, perdoá-lo?

Na gestão do PT, e é preciso enfatizar isto, a Polícia Federal pôde agir e chegar aos mandantes do assassinato da vereadora e do motorista. Bolsonaro passou quatro anos na Presidência e as investigações não avançaram. Num governo mais aberto, como o petista, o caso pôde, finalmente, ser investigado com rigor e, daí, esclarecido.

Domingos Brazão e Chiquinho Brazão: aristocracia do crime no Rio de Janeiro | Foto: Reproduções

Como as prisões dos mandantes — Domingos Brazão, Chiquinho Brazão, irmãos do cangaço moderno, e Rivaldo Barbosa — são recentes, é preciso obter mais informações sobre o Estado criminoso e justiceiro que se instalou no Rio de Janeiro, ao lado do inerme Estado oficial. Portanto, é mesmo crucial manter o caso na mídia, com relativo estardalhaço. Sob pressão midiática, novas iluminações estão a caminho, quem sabe.

A corda havia arrebentado do lado mais, digamos, “fraco” — com a prisão do pistoleiro Ronnie Lessa e de Élcio de Queiroz, o motorista que o ajudou no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Agora, ao se exibir a cadeia de comando, com a prisão de membros “gabaritados” da sociedade carioca — um deputado federal, Chiquinho Brazão; um membro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Domingos Brazão, e um delegado de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa —, o caso caminha para o esclarecimento “final”. Mas a história, que parece ter acabado, com a prisão dos mandantes, talvez esteja apenas começando.

Rivaldo Barbosa, delegado da Polícia Civil no Rio de Janeiro: um “duplo” que só o escritor Franz Kafka pode explicar | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 A Polícia Federal conseguiu pegar cabeças do Estado criminoso que mantém o Estado oficial — e quase toda a população do Rio — como refém. Algumas figuras da “nobreza” do poder na cidade maravilhosa trafegavam nos dois Estados — com força em ambos. Ou seja, com a estrutura de um fortalecendo a do outro. Esclarecer a história, iluminando como a “legalidade” está contaminada pela “ilegalidade”, é nevrálgica. Talvez o Rio acabe por, paulatinamente, melhorar e se tornar mais seguro para todos os cidadãos.

A violência no Rio não é espontânea, não decorre de problemas sociais. Na verdade, é articulada por figuras coroadas — com “brasão”, “diplomas” e “medalhas” — da República patropi. Há uma aristocracia do crime nos poros do poder. Por isso, a história não deve sair da mídia. E é mais — muito mais — relevante do que a queda da ponte de Baltimore (por sinal, nunca li nada de Iuri Rincon sobre a queda de uma ponte em Goiás ou no Brasil).

Mas o que realmente aconteceu com o jovelho amigo Iuri Rincon? Como muitos dos afeiçoados às redes sociais, está jogando para as plateias (à direita) — que aplaudem qualquer coisa, inclusive o irracionalismo, que está tão na moda.

Por fim, só escrevi o texto porque, conhecendo a grande figura humana que é o Iuri Rincon — meu amigo há décadas (exatos 42 anos) — sei que, ao contrário dos Brazões, não ficará irritado comigo. Vai, no máximo, rir e, depois, vamos conversar ao telefone. O escritor, pesquisador e jornalista é um sujeito de outra esfera — a dos bons de coração.

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