Esta quinta-feira,15, foi dia de palestra interativa na União Brasileira de Escritores-Seção Goiás, no delicioso Centro de Goiania. O dinâmico Presidente Adhemir Luiz nos trouxe nada mais nada menos que a escritora paulista Natália Timerman para a oficina, que nos fez anotar tudo o que transmitia como a nova voz feminina da literatura brasileira. Ao lado do confrade da AGL, Helverton Baiano, mandei ver em fotos do material para transcrição imediata no bloco de notas a fim de achar em casa ebooks e transformar tudo em áudio, como gosto.
Dentre outras, Natália colocou em oficina fragmentos do livro de Silvana Tavano (Ressuscitar Mamutes) que nos traz uma imagem que carrega em si a tensão entre o impossível e o necessário. Ressuscitar mamutes é desejar o que o tempo já condenou ao desaparecimento; é querer recompor, com a matéria da memória, aquilo que o destino declarou extinto. No entanto, não se trata de um delírio niilista, tampouco de um apelo melancólico à nostalgia. Trata-se de resistência — e, mais ainda, de criação.
A saudade, ao contrário do senso comum que a reduz à dor passiva ou à lembrança paralisante, é aqui compreendida como um ato de invenção. É o que move a autora a transformar a ausência em linguagem, o silêncio em palavra, a perda em obra. “Tenho comigo todos os meus mortos, todos os meus vivos”, escreve ela. A frase, aparentemente simples, carrega a complexidade de uma ética do pertencimento que ultrapassa a cronologia da vida e da morte. O que se foi não deixa de existir: apenas se transforma em outra presença, mais sutil, talvez mais real.
Walter Benjamin, em sua célebre Tese sobre o Conceito de História, afirma que “o passado só pode ser resgatado como imagem que relampeja no instante da sua cognoscibilidade”. A saudade, nesse contexto, é o lampejo que irrompe na consciência, o instante em que o tempo deixa de ser linear e se curva, fazendo coincidir o que já passou com aquilo que ainda pulsa. A memória, então, não é mero registro, mas performance; ela é recriação contínua de um tempo afetivo que resiste ao esquecimento.
Ao escrever sobre o luto, Tavano não se refugia na lamentação nem se perde na contemplação do que foi. Ela escolhe lembrar. E lembrar, aqui, é um verbo ativo. É uma decisão estética e ética. O luto, na sua escrita, deixa de ser a antessala da morte para se tornar o lugar da ressurreição simbólica. Cada capítulo do livro é uma escavação sensível no terreno da perda, mas também uma reconstrução amorosa de mundos que continuam a nos habitar.
A literatura, nesse processo, transforma-se em um cemitério luminoso. Como observa o crítico francês Maurice Blanchot, a escrita é um espaço onde os mortos continuam a falar. Mas talvez seja mais do que isso: é onde eles são reinventados, renomeados, acolhidos de outra forma. A palavra é o instrumento com que se costura o tempo rasgado. Cada frase de Silvana é como uma agulha de memória, refazendo os contornos do que parecia perdido para sempre.
Quem me conhece sabe que sou um inveterado fotógrafo e quem viaja comigo que aguente – que o diga a minha Érica.
Na faculdade de Jornalismo, as disciplinas de fotografia e técnicas de vídeo são as preferidas.
Há, também, na obra, uma consciência aguda da transitoriedade das coisas. O olhar que fotografa — e o livro está repleto de referências a fotografias, imagens, retratos — não é mais o olhar ingênuo do instante. É o olhar de quem sabe que tudo passa, e justamente por isso sente urgência em guardar. “Quando fixei aquele momento, eu não sabia que estava fotografando a saudade”, diz a autora. É uma das frases mais potentes da obra. A fotografia, então, não é apenas lembrança; ela é uma espécie de monumento mínimo, uma eternidade encapsulada no efêmero. E é exatamente essa contradição que nos comove.
Walter Benjamin também abordou a fotografia como campo de tensão entre o real e o tempo. Em Pequena História da Fotografia, ele nos lembra que a imagem não é apenas técnica, mas aurática — ela conserva algo que escapa à repetição, uma singularidade que resiste ao desaparecimento³. E é essa “aura” que nos interpela quando olhamos uma foto antiga: ela nos fala de um tempo que já se foi, mas que ainda nos olha de volta. Ela não é mais apenas uma imagem de alguém; ela é, agora, um espelho do que perdemos.
Ao visitar a aldeia natal do pai, Tavano nos oferece uma das cenas mais pungentes do livro. A casa da infância já não está lá. “A casa onde morávamos já não existe”, diz o pai. Não existe — e, ainda assim, continua sendo um ponto de convergência da memória. A ausência, nesse momento, é mais eloquente do que qualquer presença. Ela é o espaço da imaginação afetiva. A casa desaparecida é talvez mais viva, na lembrança, do que a casa concreta jamais foi. O que desaparece da matéria reaparece no afeto, e é isso que torna possível a “ressurreição dos mamutes” — esses seres míticos que nos habitam e nos convocam a não esquecer.
Ao final da leitura, compreendemos que ressuscitar mamutes não é uma ilusão infantil nem um desejo anticientífico. É um gesto literário, poético e filosófico. É a tentativa — sempre incompleta, sempre necessária — de dar forma ao que o tempo tenta dissolver. É uma forma de amor que se nega a deixar para trás o que valeu a pena.
A nossa autora escreve com leveza, mas sua escrita é densa. Ela transforma a perda em linguagem. Transforma o luto em luz. E, ao fazer isso, nos oferece uma ética da saudade que não paralisa, mas cria.
Lembrei de um livro do querido Prof Elci Silvério: A Estética e a Metafísica da Saudade, que dele ganhei há quase 30 anos.
Uma ética da memória que não idolatra o passado, mas o reinventa. Uma ética do amor que continua mesmo depois da morte.
Filosofando, como escreveu Léon Denis, no comovente O Problema do Ser, do Destino e da Dor:
“A alma é imortal, e os seres que se amaram se reencontrarão nas vidas futuras”⁴.
Aqueles que amamos, portanto, não nos deixam. Eles apenas mudam de lugar: agora habitam a escrita, a fotografia, a saudade — e os livros como este.
Acima de tudo, repito com André Luiz: A vida não cessa. A vida é fonte eterna e a morte é jogo escuro das ilusões. Uma existência é um ato, um corpo uma veste, um século um dia, uma morte – um sopro renovador no retorno ao País da vida.

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