Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Ao me deparar com o livro “Dedico a Você Meu Silêncio” (Alfaguara, 208 páginas, Paulina Wacht e Ari Roitman), título da última obra do escritor peruano Mario Vargas Llosa imaginei que ele estivesse enviando um recado íntimo à mulher que o levou a romper um casamento de mais de cinquenta anos. Confesso que pensei pequeno. Ao concluir a leitura do romance, percebi que o autor se despedia, na verdade, de milhões de leitores espalhados pelo mundo, oferecendo-lhes um último presente literário: um livro de amor à sua terra natal, o Peru. Com lirismo, melancolia e precisão, Vargas Llosa nos entrega neste romance uma declaração final à cultura que o formou, aos dilemas de seu país e à arte de narrar como instrumento de compreensão da identidade latino-americana.
Mario Vargas Llosa é reconhecido tanto por romances políticos profundos quanto por experimentações narrativas arrojadas. “Conversa no Catedral” (1969) e “Dedico a Você Meu Silêncio” (2023) exemplificam duas fases distintas de sua obra – a primeira, um clássico do “boom” latino-americano ambientado nos anos 1950; a segunda, sua última novela, situada no início dos anos 1990, marcada por tom nostálgico e reflexivo. As duas obras dialogam em termos de estilo narrativo, foco temático e na forma como entrelaçam arte e política em suas narrativas, embora o façam de maneiras bem diferentes.
Estilo, contexto e estrutura
Em “Conversa no Catedral”, Vargas Llosa desenvolveu uma arquitetura narrativa notoriamente complexa. O romance emprega múltiplas vozes e planos temporais, entrelaçando diálogos de diferentes épocas em uma mesma conversação. Essa técnica de contraponto confere à obra um ar “desordenado” apenas na superfície, pois esconde um projeto estrutural rigoroso. O resultado é uma narrativa densa, considerada por muitos uma obra-prima da literatura contemporânea. Por outro lado, a mesma ousadia formal tornou a leitura desafiadora; alguns críticos apontaram que a constante intercalação de vozes e tempos gera confusão e pode desanimar o leitor.
Já “Dedico a Você Meu Silêncio” apresenta um estilo narrativo mais linear, porém também incorpora experimentação estrutural ao mesclar capítulos ficcionais com trechos ensaísticos. A história principal – contada em terceira pessoa, acompanhando o protagonista Toño Azpilcueta – transcorre de forma quase cronológica, sem saltos bruscos no tempo. Entretanto, Vargas Llosa intercala ao enredo principal capítulos em tom de ensaio sobre a história da música peruana, que na verdade representam capítulos do livro que o protagonista está escrevendo dentro da trama. Essa técnica de alternar narrativa e metanarrativa lembra o contraponto usado em obras anteriores do autor. No romance, vamos pouco a pouco entendendo que os textos ensaísticos inseridos compõem o próprio livro que Toño escreve dentro da ficção. Em comparação a Conversa na Catedral, a prosa de Dedico a Você Meu Silêncio soa mais simples em termos cronológicos, mas ainda carrega a marca autoral de Vargas Llosa ao fundir gêneros (romance e ensaio). Em suma, se Conversa na Catedral exige do leitor para recompor um quebra-cabeças temporal e de vozes, “Dedico a Você Meu Silêncio” guia-o por uma trama mais direta, porém pontilhada de reflexões históricas e culturais intercaladas.

Arte, política e identidade
No plano temático, “Conversa no Catedral” e “Dedico a Você Meu Silêncio” refletem a preocupação constante de Vargas Llosa com o Peru – porém sob enfoques distintos. Conversa na Catedral é um romance político por excelência, pertencente ao ciclo das “novelas do ditador”. Ambientado durante o regime ditatorial do general Manuel Odría, o romance traça um panorama sombrio de uma sociedade corroída pela restrição de liberdades, perseguição política e corrupção institucionalizada. O protagonista, Santiago Zavala (Zavalita), afunda em desalento e mediocridade ao rememorar esses anos de chumbo, questionando-se logo no início: “Em que momento se havia fodido o Peru?” – a célebre pergunta que dá o tom pessimista da obra. A narrativa expõe a desilusão política e a crítica social de forma abrangente: mostra tanto a degradação moral das elites governantes quanto a apatia de um povo acostumado aos desmandos autoritários. Não há um protagonismo explícito da arte dentro do enredo de Conversa na Catedral; em vez disso, a arte está presente na própria forma do romance – a conversa fragmentada como meio de desvendar verdades ocultas – e serve sobretudo para dissecar a realidade política.
Por outro lado, “Dedico a Você Meu Silêncio” coloca a arte – especialmente a música – no centro da narrativa e da esperança de mudança social. O romance acompanha a jornada de Toño Azpilcueta, um pesquisador e cronista apaixonado pela música tradicional peruana (a música criolla), que acredita no poder unificador dessa forma de arte. Enquanto Conversa na Catedral apresenta um Peru “jodido” pela política, “Dedico a Você Meu Silêncio” sugere que a cultura pode ser uma saída utópica para sanar as feridas políticas e sociais. A música criolla, com suas origens mestiças, é elevada a protagonismo temático, servindo de resposta (ainda que utópica) aos problemas políticos. Dessa maneira, se em Conversa no Catedral a política dominava a cena e a arte permanecia às margens, em Dedico a Você Meu Silêncio a arte popular (música) é elevada a elemento essencial da identidade nacional.
Enredo, personagens e a música criolla
O protagonista, Toño Azpilcueta, é um cronista musical idealista que acredita que a música criolla poderia ter unido o Peru, superando divisões raciais e sociais. Quando presencia a interpretação deslumbrante de um guitarrista desconhecido, Lalo Molfino, Toño se convence de que encontrou o gênio que poderia representar essa utopia. O desaparecimento de Molfino após a apresentação desencadeia uma busca obsessiva.

Durante essa busca, Toño entrevista diversas pessoas que conheceram Molfino, entre elas Adelaida, uma antiga amante do músico, que revela detalhes de sua vida e tragédia pessoal. Também tem papel relevante o Dr. José Durand Flores, folclorista e intelectual que introduz Toño no círculo cultural onde Lalo foi apresentado. Aos poucos, o leitor descobre que Molfino é um gênio marginalizado, talentoso e emocionalmente instável, cuja história trágica simboliza o abandono das riquezas culturais pelas elites peruanas.
Toño se dedica então a escrever um livro que eternize Lalo e a música criolla como expressão autêntica do Peru. Mas sua paixão degenera em obsessão: Toño reescreve o livro infinitamente, transformando-o num volume ilegível, acabando por afundar sua vida pessoal, sua carreira e até mesmo seu editor. Ao fim, o que era um gesto de redenção cultural torna-se um ato de isolamento. O idealismo de Toño se esgota em meio ao fracasso das utopias.
A música criolla, no romance, é o fio condutor de uma narrativa sobre a identidade nacional. Representa a miscigenação, a resistência cultural e o sentimento de pertencimento. Seus ritmos – valses, marineras, polcas – evocam memórias coletivas e afetos populares. Toño vê na música criolla não apenas arte, mas um projeto de nação: acredita que ela pode unificar o Peru, transpor o abismo entre classes, etnias e regiões.
Essa visão é utópica, mas carrega um apelo poderoso: a música como língua comum, como ponte entre diferentes. No entanto, o romance não se rende à ingenuidade. Ao mostrar o fracasso do projeto de Toño, Vargas Llosa também expõe os limites da arte como solução para problemas históricos profundos. O Peru de Toño é um país em guerra interna, violento e desigual – e a música, por mais bela, não basta para salvá-lo.

A expressão “dedico a você meu silêncio” foi dita por Lalo Molfino à cantora Cecilia Barraza, em uma cena de ruptura afetiva e simbólica. Lalo, gênio incompreendido e emocionalmente inepto, dedica seu silêncio à mulher que amava e que não pode acompanhar. A frase resume o gesto de afastamento, de entrega do que ele tem de mais puro: o silêncio, a ausência, a desistência.
Ao longo da narrativa, o título ganha dimensões simbólicas maiores. Toño tenta, com seu livro, romper o silêncio deixado por Lalo. Mas acaba por mergulhar no seu próprio silêncio – aquele do fracasso, da ruína, da desistência intelectual. O título então é um tributo à música não ouvida, à cultura silenciada e ao fim da própria voz do escritor.
Considerando que Vargas Llosa anunciou este como seu último romance, o título também ecoa como despedida pessoal: o autor que dedicou sua vida a dar voz ao Peru agora se retira, deixando como legado o silêncio eloquente de quem já disse tudo o que precisava dizer.
Com sua morte, a literatura ficou mais pobre e a América Latina se ressentiu com o passamento de seu maior intérprete. Mario Vargas Llosa nos deixou o eco de sua voz imortalizada em páginas que jamais se calarão. Seu silêncio final, longe de ser ausência, é presença eterna na memória cultural do continente.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em administração de empresas, mestre em energia pela Unicamp. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. É autor de nove livros relacionados aos temas, energia, política, literatura e desenvolvimento regional.
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