Minha experiência no Cairo começou como tantas outras: num aeroporto lotado, bagagem de mão, fila da imigração… e um visto que se compra como quem compra um ingresso (Visto on Arrival) — 25 dólares e você mesmo cola no passaporte. Simples, até demais. Mas nada no Egito é simples por muito tempo.
Logo após fixar o adesivo, fui parado por dois oficiais. Um falava inglês com sotaque indecifrável; o outro, espanhol com sotaque egípcio. Fui entrevistado ali mesmo, em pé, com a mala a tiracolo, tentando explicar que era brasileiro, professor universitário, viajando a turismo. Quando disse que lecionava Direito, algo mudou. O interrogatório foi suspenso na hora, sem explicação. Direito, aparentemente, é a palavra mágica que abre fronteiras no Oriente Médio. Ou que assusta.
No hotel, a recepção foi calorosa — e por calorosa, entenda-se um portal de raio-x na entrada. Você sai para comprar uma garrafinha d’água, volta e passa pelo detector de metais. De novo. A rotina no Cairo envolve esse tipo de ritual: segurança ostensiva, por todo lado. Câmeras nos mercados. Guardas armados de fuzil na entrada do museu. Uma sensação constante de que algo está prestes a acontecer. Ou já aconteceu.
Mas é justamente nesse Egito do século XXI, caótico, vigilante e barulhento, que o turista vai buscar… o Egito antigo. Aquela civilização mítica, dos templos, das pirâmides, dos deuses com cabeça de animal. O problema é que esse Egito já não existe. O que existe hoje são escombros — e um exército de vendedores prontos para transformar qualquer ruína em souvenir.
As pirâmides de Gizé continuam impressionantes. Blocos de pedra de 2,5 toneladas empilhados com precisão milimétrica. Uma aula de engenharia. E, ao redor delas, uma aula de insistência: vendedores oferecendo passeios de camelo, lembrancinhas, papiros, lenços, tudo com muita pressa e nenhum recuo. Negar é apenas o início da negociação.
Ninguém quer ver o Egito de hoje. O Cairo real, com sua população empobrecida, o fanatismo religioso, a precariedade das ruas, é cuidadosamente varrido para debaixo do tapete turístico. O que se vende — e vende bem — é o Egito dos cartões-postais, o Egito embalado pelas operadoras de turismo como uma relíquia viva, quando na verdade é apenas uma grande encenação cuidadosamente roteirizada.
Os turistas são levados a percorrer bolhas cuidadosamente delimitadas, entre o Cairo, o Vale do Nilo e Alexandria, onde restam ecos da antiga biblioteca. Seguem de ônibus climatizado, passeiam entre réplicas e ruínas, retornam ao hotel e, dali, direto para o aeroporto. Nada de ver o cotidiano. Nada de ver a vida real. O Egito verdadeiro é desconsiderado, desdenhado, apagado da experiência.
Os camelos que circulam ao redor das pirâmides fazem parte do teatro. Os vendedores que se agarram aos turistas foram treinados para isso. Tudo é coreografado, roteirizado e empacotado pelas agências locais em parceria com operadoras internacionais. O antigo Egito — que sim, foi grandioso, foi fascinante — hoje é apenas uma narrativa transformada em produto. Uma mercadoria embalada com perfeição e distribuída globalmente com carimbo de “autenticidade”.
Esse Egito atual é uma espécie de miragem vendável. Um país ocidentalizado, com Wi-Fi capenga, pobreza visível e um povo tentando sobreviver do que sobrou do passado. As roupas já não são as mesmas dos filmes. A cultura foi embalada para exportação. O turismo é o último elo entre o faraó e o cartão de crédito.
No famoso Museu do Cairo — hoje remodelado e transferido para um prédio suntuoso — os guardas de metralhadora na porta garantem que nada do passado escape. Nem o Tutankhamon. Nem o turista.
O turista chega em busca do Egito eterno, mas encontra um país onde o tempo ficou preso nas vitrines. Um palco arqueológico, com entrada monitorada, camelô na porta e segurança 24 horas. Um país que sobrevive vendendo o que um dia foi. E o que não é mais.
Se você não encontrou tudo o que queria por lá, não se preocupe: o Egito está em Paris. E em Londres. Os maiores tesouros da antiga civilização estão bem longe do Nilo, protegidos por placas de acrílico e por séculos de silêncio diplomático. No Louvre, sarcófagos em exposição dividem espaço com selfies e baguetes. No British Museum, a esfinge virou atração gratuita, cortesia do colonialismo britânico.
Foi com a desculpa da ciência — e o pretexto da proteção — que arqueólogos a serviço de impérios “salvaram” o Egito… levando-o embora. O nome técnico talvez seja acervo. Mas o nome justo é espólio. Um espólio elegante, catalogado, higienizado. E jamais devolvido.
São fragmentos de uma civilização arrancados do deserto e vitrificados na Europa, como quem sequestra o tempo e o transforma em troféu. E ali estão, imóveis, como se dissessem: “O passado é nosso. A história também.”

*Ycarim Melgaço é doutor em Ciências Humanas, pós-Doutor em Economia e Gestão de Organizações. É colaborador do Jornal Opção.
O post Egito embalado para turista: entre ruínas, vitrines e miragens apareceu primeiro em Jornal Opção.