Na busca incessante por saúde e autoconhecimento, milhares de pessoas têm recorrido aos dispositivos vestíveis como aliados da vida moderna. No entanto, uma onda crescente de relatos indica que, ao invés de promover bem-estar, esses aparelhos estão desencadeando ansiedade, estresse e comportamentos obsessivos.
Um dos exemplos é o Oura Ring — um anel inteligente que monitora dados biométricos e promete “otimizar” a saúde de seus usuários. Conforme revelou a coluna do O Globo, que entrevistou especialistas e usuários do dispositivo, os efeitos colaterais psicológicos do chamado “eu quantificado” começam a despertar preocupações reais, mesmo entre os profissionais de saúde.
Embora o Oura Ring tenha conquistado espaço entre influenciadores, atletas e pessoas em busca de “alta performance”, os relatos mostram que o controle dos dados pode facilmente se tornar uma armadilha. O anel coleta informações como frequência cardíaca, temperatura corporal e oxigenação do sangue e apresenta tudo isso ao usuário na forma de pontuações — como o índice de “preparo”, que mede, segundo a empresa, o quanto uma pessoa está pronta para enfrentar o dia com base no sono e em outros sinais corporais. No entanto, essa visualização aparentemente inofensiva pode levar a quadros de ansiedade severa.
Um desses exemplos é o caso de Sarah Hills, de 22 anos. Como reportado pelo O Globo, Sarah passou a monitorar compulsivamente suas estatísticas após ganhar o anel de presente. Quando os números pareciam fora do esperado, ela ficava inquieta, ruminando os dados e preocupando-se com a própria saúde. Tentou ver um médico, mas diante da dificuldade de agendar consulta, gastou 50 dólares em um medidor de pressão arterial. O veredito médico, quando finalmente veio, foi simples: ela estava saudável. A recomendação? Deixar o anel de lado.
Esse tipo de comportamento não é raro. A criadora de conteúdo Eli Rallo relatou que checava sua frequência cardíaca 24 horas por dia depois de começar a usar o anel. Embora tenha diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), Eli afirmou que o uso do Oura agravou sua condição. Sua terapeuta aconselhou a suspensão do uso — um conselho que ela, eventualmente, seguiu.
Entre os casos, é comum o relato de que os dispositivos começaram a “ditar” o comportamento. Hannah Muehl, assistente médica e nutricionista, usou o Oura para monitorar suas noites após o nascimento do filho. Entretanto, em vez de conforto, ela encontrou pressão. “Quando você transforma isso em metas, algo que você se esforça para alcançar, então já não está mais descansando de verdade”, disse.
Outro depoimento, da padeira Abi Caswell, ilustra bem esse paradoxo. O anel foi adquirido para acompanhar a temperatura corporal como apoio no planejamento familiar, mas se tornou um lembrete constante de esgotamento quando ela abriu sua segunda loja. “Estava me estressando ainda mais pensar no quanto eu estava estressada”, relatou.
Segundo a professora Jacqueline D. Wernimont, da Dartmouth College, essa transferência de autoridade para dispositivos é perigosa. “A tecnologia vestível retira a autoridade e o conhecimento do indivíduo e o transfere para uma entidade externa”, afirmou. Ou seja, as pessoas passam a confiar mais nas métricas digitais do que em suas próprias sensações físicas — uma inversão preocupante, especialmente em tempos de hiperconectividade.
Especialistas como a socióloga Deborah Lupton apontam que o apelo desses dispositivos está em oferecer controle em meio ao caos. “Há muitas crises acontecendo, e as pessoas estão ávidas por qualquer produto que lhes prometa ‘ao menos algum controle sobre aspectos da vida cotidiana, da saúde e do bem-estar’”, analisou. No entanto, esse controle vem com um preço — e, em alguns casos, não é apenas financeiro. O modelo mais simples do Oura Ring custa a partir de 349 dólares, o que restringe seu acesso a uma parcela da população.
Apesar disso, há casos de sucesso. Nikki Gooding, enfermeira de 27 anos, relatou em um vídeo viral no TikTok que seu anel detectou anormalidades em sua temperatura corporal e ajudou no diagnóstico precoce de linfoma. “Eu soube que estava com câncer antes de ser diagnosticada, por causa do meu Oura Ring”, disse Gooding.
O atleta paralímpico Hunter Woodhall também elogiou o dispositivo, afirmando que ele o incentivou a buscar tratamento para uma apendicite.
Contudo, até mesmo os defensores mais entusiasmados reconhecem que o uso deve ser moderado. Shyamal Patel, vice-presidente sênior de ciência da Oura, admitiu ao O Globo que faz pausas no uso quando se sente sobrecarregado. Ele alertou para o risco de comparações com outros usuários, especialmente em tempos de redes sociais, onde experiências positivas são amplificadas, enquanto os efeitos negativos permanecem subnotificados.
Como destaca a professora Jacqueline, a pergunta principal ainda permanece: “O que seu corpo está dizendo?” A resposta, muitas vezes, não está em gráficos, alertas ou pontuações. Está no simples ato de escutar a si mesmo.
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