O movimento Legendários é a prova de que subir uma montanha não faz ninguém mais decente

Diante do marketing bem produzido, das postagens emocionadas nas redes sociais e dos discursos inflamados sobre fé, masculinidade e propósito, o grupo cristão “Legendários” vem conquistando milhares de seguidores no Brasil e no exterior. No entanto, por trás das promessas de “resgate de casamentos” e “transformação de homens”, o que se revela é um projeto disfarçado de espiritualidade, mas profundamente conservador, contraditório e, muitas vezes, irresponsável.

Os casos estão aí para provar a fachada de redenção masculina: traição pós-retiro, mortes em trilhas, degradação ambiental e um discurso que, na prática, reforça o pior do machismo evangélico.

Em teoria, os Legendários propõem um reencontro do homem com sua “verdadeira essência”, com base em uma narrativa que mistura masculinidade viril, sofrimento físico e devoção cristã. Na prática, o que se vê são homens pagando até R$ 81 mil para gritar, suar, subir montanhas e chorar em barracas sem celular — tudo isso em nome de um suposto reencontro com Deus. O que ninguém parece explicar é por que a fé e a transformação pessoal precisam passar necessariamente por trilhas arriscadas, barracas compartilhadas e discursos pseudo-religiosos que reforçam o machismo disfarçado de redenção espiritual.

Ao todo, já são mais de 108 sedes do grupo espalhadas pelo mundo, com edições marcadas por pregações religiosas intercaladas com atividades físicas extenuantes. Em Goiás, por exemplo, uma das edições do chamado “TOP 950 – The Pinnacle Edition” reuniu mais de 250 homens no Parque dos Pireneus, sob o lema de “preservação ambiental e transformação pessoal”.

Mas, como revelou a presidente do Instituto Santa Dica e integrante do Observatório de Políticas Socioambientais de Goiás, Lucília Amaral, a realidade foi outra: “Foram constatadas diversas irregularidades. É necessário fazer com que os legendários se atentem para esse tipo de turismo explorador que estão fazendo, já que está tendo tanta irregularidade no país inteiro desse evento deles”.

E, além da degradação do Parque dos Pireneus, o grupo passou por regiões pouco exploradas, como a Cidade de Pedra, com autorização da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). “Eles não estão analisando os impactos que um evento desse ia ter antes de legalizar, é preocupante”, disse Lucília Amaral. O Ministério Público de Pirenópolis está analisando a série de irregularidades e pode levar o caso à Justiça.

O discurso ambiental do movimento virou uma farsa documentada. No Parque Estadual da Serra do Ouro Branco, em Minas Gerais, vídeos revelaram que os participantes deixaram lixo em uma trilha protegida. O Instituto Estadual de Florestas constatou a irregularidade após o grupo realizar uma travessia não autorizada e sem licenciamento ambiental adequado. O modus operandi se repetiu: prometeram deixar o local “melhor do que encontraram” — e saíram deixando sujeira e impacto ambiental.

Mais grave ainda foi a morte do administrador Fábio Adriano Machado Cherini, de 44 anos, durante um dos desafios em Mato Grosso do Sul. A causa ainda está sendo investigada, mas o caso levanta mais um alerta para os riscos dessas atividades físicas extremas sem supervisão adequada. 

Enquanto isso, os organizadores seguem propagando a ideia de que a dor, o sofrimento e a superação física são caminhos diretos para a iluminação espiritual. Vai doer? Vai. Vai sofrer? Vai. Mas é Deus que está colocando esses homens no seu caminho, dizem os vídeos promocionais. Deus ou o boleto bancário?

A crítica ao Legendários vai além do impacto ambiental ou da segurança física dos participantes. A retórica moralista que move o grupo não se sustenta frente aos próprios comportamentos de alguns de seus expoentes. O pai de Neymar, por exemplo, após participar de um dos retiros e defender os valores da “pureza e responsabilidade familiar”, foi flagrado em festas com mulheres em situação de prostituição.

Outro episódio que escancara o abismo entre o discurso messiânico do Legendários e a prática de seus integrantes veio à tona com a prisão de Renan Silva Nascimento, de 34 anos. Pouco tempo depois de participar de uma das imersões do grupo, Renan foi preso com 150 kg de cocaína em uma operação que desarticulou um esquema de tráfico interestadual de drogas. 

Segundo a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, ele usava sua hamburgueria como entreposto para a distribuição de pasta-base de cocaína trazida do Paraguai. Nesse contexto, o lema do movimento — “somos homens inquebrantáveis diante do pecado, mas quebrantados diante de Deus” — não soa como um compromisso ético, mas como uma ironia cruel. Afinal, que tipo de transformação espiritual é essa que não resiste ao cheiro — ou ao lucro — de 150 kg de cocaína?

Há também relatos recorrentes de homens que, após suposta “transformação”, voltam para casa para trair as esposas ou continuam agindo com a mesma toxicidade de antes — só que agora com um certificado de “inquebrantável” no bolso.

A hipocrisia salta aos olhos quando se observa o alinhamento ideológico do movimento com a extrema direita latino-americana. Embora os Legendários afirmem não seguir nenhuma religião específica, referem-se a Jesus como “o primeiro legendário” e incentivam que todos os participantes frequentem a igreja aos domingos. Ao fazerem isso, mascaram um projeto de controle social, de reafirmação da família patriarcal e de silenciamento de vozes femininas e LGBTQIA+, tudo sob o véu da fé.

Diante disso tudo, cabe a pergunta: desde quando um homem precisa subir uma montanha, carregar uma mochila de 14 kg, dormir ao relento e pagar uma pequena fortuna para se tornar uma pessoa melhor? Ser decente, responsável e ético não requer trilhas ou megafones, mas, sim, postura e caráter em qualquer ambiente — seja na selva, na igreja ou no sofá de casa.

O que os Legendários vendem é uma ilusão. Um pacote espiritual de autoajuda com estética militarizada, discurso messiânico e taxa de inscrição altíssima. É o velho truque de mercado: vender um problema e depois oferecer a solução em suaves prestações. Uma masculinidade frágil, ferida e desorientada é alimentada com promessas de redenção que não resistem à prática cotidiana.

Há, sim, espaço para espiritualidade, para jornadas de autoconhecimento e para grupos de apoio masculino. Mas essas experiências precisam ser sustentáveis, inclusivas, coerentes com os valores que pregam e verdadeiramente transformadoras — não espetáculos de marketing religioso com impacto ambiental e moral questionáveis.

Se o lema do grupo é “devolver o herói para casa”, talvez seja hora de lembrar que o verdadeiro herói é aquele que age com ética, cuida do próximo e do planeta, e não precisa de holofotes, mochilas ou trilhas para provar isso. Muito menos de R$ 81 mil para aprender que integridade não se compra. Se existe algo a ser resgatado, é o bom senso. Porque transformar a fé em produto — e a natureza em palco — é, no mínimo, tudo o que Jesus nunca ensinou.

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