Bolsonaro enfatiza visão militar e deturpa legalidade para justificar golpismo, dizem especialistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em interrogatório no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a trama golpista, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid deturparam noções de legalidade para justificar discussões golpistas que teriam como objetivo impedir a posse do presidente Lula (PT), avaliam especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.

Para eles, Bolsonaro e Cid acionaram uma ideia de “legalidade instrumental” entranhada na cultura militar que deturpa o conceito real de legalidade e afronta à Constituição.

Um exemplo disso é a fala de Bolsonaro no interrogatório desta terça-feira (10), quando o político voltou a dizer que sempre agiu dentro dos limites da Carta Magna. Ao mesmo tempo, ele admitiu ter conversado sobre “alternativas” e chegou a fazer menção à discussão de estado de sítio, em contexto legal que não justificava as medidas.

O estado de defesa, que Bolsonaro já admitiu mais de uma vez ter considerado, restringe liberdades individuais e é acionado para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por graves crises. Ainda mais extremo, o estado de sítio é previsto em casos de comoção de repercussão nacional ou guerra, por exemplo. Para ser decretado, precisa de autorização do Congresso Nacional.

O ex-presidente e Mauro Cid foram ouvidos em interrogatórios iniciados na segunda-feira (9) e concluídos nesta terça com oito réus do chamado núcleo central da trama golpista. Eles são acusados dos crimes de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado ao patrimônio público e deterioração do patrimônio tombado.

Para Bolsonaro, que se apresentou no tribunal como militar da reserva e não como político, falar em agir dentro da Constituição e citar conversas golpistas poderia não ser contraditório porque ele utiliza um conceito instrumental e deturpado de legalidade, com enfoque na noção de hierarquia e cadeia de comando em sobreposição ao apreço a valores constitucionais, afirmam especialistas.

Da mesma forma, o tenente-coronel Mauro Cid citou durante seu interrogatório companheiros de farda que atuariam “dentro do círculo de legalidade das Forças Armadas” e que dificilmente agiriam sem a autorização de superiores.

Cid disse que os militares não quebrariam um “elo de legalidade”, por mais que tivessem suspeitas do processo eleitoral.

“Eles não fariam nada que quebrasse um elo de legalidade. Para que alguma coisa fosse feita, teria que ter uma ordem. Essa ordem tinha que vir com o presidente, comandante do Exército e chegava a ordem para os escalões subordinados”, falou, destacando a importância da hierarquia e cadeia de comando.

DEPOIMENTOS DOS RÉUS DA TRAMA GOLPISTA AO STF

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Segundo Danilo Pereira Lima, professor de direito constitucional e coordenador do curso de direito do Claretiano de Batatais, além dessas noções de hierarquia e estruturas de comando, muitos militares “compram” uma ideia de legalidade “autoritária e instrumental”.

“Essa legalidade instrumental pode fundamentar um golpe, uma ditadura e se opõe à noção de legalidade constitucional democrática. Uma legalidade instrumental permite a manipulação do direito de acordo com os interesses de quem detém o poder”, afirma Lima.

Ele avalia que a noção de legalidade constitucional democrática, por sua vez, é o contrário da mobilizada por militares.

“E é essa noção que permite a construção, a consolidação de um Estado democrático de Direito. Agora, a legalidade instrumental serve de acordo com os interesses de quem detém o poder. Vai fundamentar um golpe, uma ditadura, a suspensão de direitos e garantias fundamentais”, afirma Lima.

Segundo ele, essa ideia de legalidade dos militares não é comprometida com a permanência e a estabilidade das instituições democráticas.

Ele argumenta que, caso os militares adotassem a concepção de uma legalidade constitucional democrática, saberiam não ser adequado seguir uma ordem “claramente inconstitucional”.

“É claro que o presidente é o comandante em chefe das Forças Armadas, mas ele também está subordinado à Constituição. Então, se ele dá uma ordem inconstitucional, os militares, os comandantes das Forças, não podem cumprir essa ordem. Acima de todos esses agentes está a Constituição”, afirma.

Andrea Paula Kamensky, doutora em história econômica pela USP e especialista na história, cultura militar e ditadura, concorda que setores militares usam uma ideia deturpada de legalidade para justificar seus atos.

Ela afirma que “a história, a cultura e a educação militar que ainda permanecem é autoritária, omite ou distorce fatos históricos e se baseia em um falseador discurso de legalidade”.

Para Kamensky, essa tendência se relaciona com o fato de que os militares forjaram, na ditadura de 1964, uma série de leis e dispositivos institucionais autoritários que foram impostos à sociedade civil para legitimar presidentes militares e censurar, prender e exterminar a oposição política.

“Como tudo isso é muito recente, do ponto de vista histórico, e os sucessivos governos pós-redemocratização não tiveram coragem nem vontade política de confrontar e reformular a educação militar, manteve-se essa visão autoritária, disfarçada de algo legal, de que as Forças Armadas podem se sobrepor aos poderes constitucionais e democráticos, até porque se consideram muitas vezes institucionalmente acima deles e superiores às outras instituições republicanas”, afirma Kamensky.

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