Especial Dia dos Namorados: Nem todo amor vale a pena: relatos reais de quem viveu relacionamentos tóxicos

Nesta quinta-feira (12), celebra-se o Dia dos Namorados — data em que o amor é exaltado, os casais se presenteiam e as redes sociais se enchem de declarações. Mas nem toda relação merece ser comemorada. Por trás de fotos felizes e sorrisos ensaiados, muitas pessoas já viveram ou ainda vivem relacionamentos marcados por abuso, controle, manipulação e violência.

Nesta reportagem, duas pessoas compartilham suas experiências com relacionamentos tóxicos, histórias que começaram como ‘contos de fadas’, mas se transformaram em prisões emocionais. 

Os nomes foram preservados por segurança e respeito às vítimas. O objetivo não é assustar quem ama, mas lembrar que o amor saudável não machuca, não fere, não ameaça. E que sair de um relacionamento tóxico, por mais difícil que pareça, é sempre um ato de coragem.

“No começo era um conto de fadas. No fim, eu mal reconhecia quem eu era”

Bruna*, 34 anos

Personagem Bruna, nome fictício (Imagem gerada por IA ChatGPT/OpenAI)

“Ele parecia o cara perfeito. Bonito, educado, com grana. Me levava pra jantar nos melhores lugares de Balneário, tinha um apartamento de revista. No começo era um conto de fadas. No fim, eu mal reconhecia quem eu era. Ganhei muitos presentes, viajamos para muitos lugares, ele se declarava o tempo todo. Eu achava que tinha dado a sorte da vida. Achava que era o amor da minha vida.

Mas com o tempo, ele começou a mudar. As grosserias apareceram, as críticas, os silêncios longos quando eu fazia algo que ele não gostava. Começou a jogar na minha cara que ‘me bancava’, que eu só estava com ele por interesse. Dizia que eu jamais encontraria alguém melhor que ele. E eu acreditava.

A gente terminava e voltava o tempo todo. Porque sempre que eu tentava sair, ele virava o príncipe de novo. Flores, promessas, pedidos de desculpas. E eu voltava. A pior parte é que ninguém suspeitava. Todo mundo achava a gente ‘o casal dos sonhos’ e me chamavam de louca quando eu terminava com ele.

Ele chegou a me agredir. Empurrões, beliscões, apertões… Me xingava, me ameaçava. Ouvi aquela frase ‘se você não for minha, não vai ser de mais ninguém’. Ele pedia muitas vezes para que eu falasse que eu era dele. Ele tinha muito essa fixação, de querer que eu falasse ‘sou sua’. Também me forçou a transar com ele mais de uma vez quando eu disse não ou quando estava bêbada. Hoje eu entendo que foi estupro, mesmo dentro de um relacionamento.

Quando finalmente criei coragem para terminar de vez, ele não aceitou. Começou a me stalkear. Criava perfis falsos pra me vigiar, ia nos mesmos lugares que eu ‘por acaso’. Chegou a ameaçar um amigo que estava comigo, achando que era meu novo namorado. Eu vivia em alerta. Fui embora da cidade por um tempo pra respirar, pra me reconstruir. Não o denunciei. Tive medo. Mas sobrevivi. E sei que isso, hoje, já é muita coisa. Fiquei sabendo que ele teve duas namoradas depois de mim que viveram coisas semelhantes. Acredito, sim, que ele seguirá esse padrão e tenho receio do que ainda pode acontecer com uma próxima vítima. Hoje faço terapia e ainda tenho muitos traumas, mas estou pronta para viver um novo relacionamento e ainda acredito no amor”.


“Preferi ter minhas fotos vazadas do que seguir preso ao relacionamento”

Rafael*, 28 anos

Personagem Rafael, nome fictício (Imagem gerada por IA ChatGPT/OpenAI)

“Eu era um estudante quebrado, cheio de sonhos e sem dinheiro para nada além de me alimentar mais ou menos e pagar o aluguel da quitinete onde eu morava, perto da faculdade, e as contas como água, luz e internet. Conheci ele online, num aplicativo. Um homem mais velho, bem de vida, inteligente. Morava no Paraná. Começamos a conversar e tudo fluiu muito rápido. Ele dizia que queria me ajudar, começou a me mandar dinheiro, às vezes pagava até o meu aluguel. Achei que era amor.

Mas o que parecia cuidado, virou controle. Ele queria saber onde eu estava o tempo todo, com quem, o que vestia. Quando convinha, ele jogava na minha cara que não tínhamos nada, mesmo a gente se falando por quase dois anos naquela época. E quando eu tentava colocar limites, ele ameaçava. Comecei a me sentir preso. Só que o pior ainda viria: ele começou a pedir dinheiro, quando eu comecei a trabalhar em uma agência de publicidade e estava ganhando relativamente bem para um estudante de final de faculdade. Ele dizia que estava passando por problemas, que eu devia ‘retribuir’ a ajuda que ele tinha me dado. Só que, nesse meio tempo, ele já tinha fotos minhas íntimas. Começou a me chantagear. Me ameaçava: se eu não mandasse, ele iria vazar tudo. Eu fiquei em pânico, mas preferi ter minhas fotos vazadas do que seguir preso ao relacionamento.

Um dia descobri que ele era casado. Os perfis que ele me passava online não eram os ‘oficiais’ dele. Parecia história de um reality da MTV, Catfish. Ele era o cara das fotos, só não tinha aquele nome e não morava na cidade que dizia morar. Tanto que vinha me ver durante a semana, aparecia do nada, sem avisar. Dizia que estava fazendo surpresa, mas provavelmente era quando conseguia dar uma ‘escapada’. Ele tinha mulher, filhos, a vida perfeita do hétero padrão. Por mais que o vazamento das fotos tenha me destruído por um tempo, foi a minha libertação. Olho para trás e agradeço todos os dias por ter conseguido sair fora de um relacionamento onde minha liberdade e dignidade valiam tão pouco. Ele às vezes ainda tenta me seguir nas redes sociais, já tentou me mandar mensagens, diz que se separou da mulher, mas eu jamais voltaria porque só eu sei o quanto ele me fez mal. Ainda não consegui voltar a namorar, pois tenho receio que posso voltar a ter outro relacionamento tóxico, inclusive trabalho isso na terapia, que é essencial para todo mundo”.

*Os nomes das vítimas foram trocados para preservar a identidade delas.


Autoridades ligadas ao apoio às mulheres e vítimas opinam

Annna (Arquivo Pessoal)

Anna Nienkötter, Diretora do Departamento de Políticas Públicas para às Mulheres de Balneário Camboriú e idealizadora do projeto e exposição Não cale a sua voz –

“Relacionamentos tóxicos não começam com gritos ou agressões físicas. Eles surgem, muitas vezes, de forma silenciosa, disfarçados de cuidado excessivo, ciúme “normal” ou controle sutil. Aos poucos, o que deveria ser afeto se transforma em dominação, humilhação, isolamento, medo. Essa é a realidade de milhares de mulheres que, muitas vezes, não percebem que já estão dentro de um ciclo de violência – um ciclo que pode terminar em feminicídio.

Infelizmente, os relacionamentos abusivos estão começando cada vez mais cedo. Meninas adolescentes já enfrentam relações marcadas por controle, manipulação emocional e violência psicológica. Isso escancara a urgência de levar informação, orientação e educação para prevenir que essas histórias se repitam. Por isso, a Diretoria de Políticas Públicas para as Mulheres de Balneário Camboriú tem como um de seus compromissos centrais a promoção do conhecimento através da educação — porque informar é proteger.

Outro ponto de atenção que exige nossa responsabilidade coletiva é o uso nocivo da inteligência artificial. Ferramentas tecnológicas que deveriam ser usadas para o bem estão sendo deturpadas para manipular vídeos e imagens, gerando traumas irreversíveis. Mulheres têm sido vítimas de montagens maliciosas que viralizam, expondo suas vidas, sua honra e sua saúde mental.

É preciso falar sobre isso. É preciso romper o silêncio. É preciso, sobretudo, saber que existem redes de apoio preparadas para acolher, orientar e proteger. Ninguém está sozinha. Denunciar é um ato de coragem. Buscar ajuda é um ato de amor-próprio. E educar é um ato de transformação social”.


Ruth (Arquivo Pessoal)

Ruth Henn, delega da DPCAMI

“Isso já é objeto de estudo – relacionamento não começa com a agressividade maior no primeiro contato. O que primeiro se observa são as coisas mais brandas, o gaslight, tentar desfazer a fala da vítima, passa depois para xingamentos, vias de fato, que chega a uma lesão corporal, e se não é tomado providência pela vítima vai caminhar para caminho mais trágico, muitas vezes para o feminicídio. Percebemos que as mulheres pra se livrar precisam ver que uma ou duas vezes que aconteceu algo que não foi de agrado, mas deixaram passar, como desdenhar de roupa que está vestindo, ou ir em local e não querer que fique conversando com outras pessoas, como amigos e familiares…

A partir disso, precisa acender luz e tomar cuidado porque pode piorar. Percebo que mulheres se tornam reféns do relacionamento e não buscam ajuda. Elas vêm à DPCAMI quando já aconteceu briga – vias de fato, injúria ou até agressão. 

Quando vêm na delegacia, propomos que participem de terapia de mulheres para se fortificarem, porque é isso que precisa para sair do relacionamento tóxico, elas não querem se ‘submeter’, não querem se confrontar que estão em relacionamento tóxico. É comum pedirem medida protetiva, mas não é só isso que basta, porque acabam muitas vezes reatando com o agressor. Precisam se fortalecer para saber impor limites para as pessoas. 

Entendemos que agressor também tem que ser tratado, porque poderá praticar o mesmo ciclo de violência, por isso fazemos grupos de homens e de mulheres. No grupo de homens inclusive temos mais homens que participam do que em relação ao número das mulheres participantes.

Tem que ser tratado como qualquer doença, tem que procurar curar de verdade. No caso de relacionamento tóxico, é a terapia, para psicólogos conversarem com a vítima, e esses grupos são bacanas porque as vítimas interagem entre elas. Só a parte criminal tenho certeza que não soluciona. Precisa ser falado nas escolas, para que nem o homem e nem a mulher tenha prática violenta. É de repensar, tem que denunciar e participar das terapias que a delegacia oferece, tem o Abraço à Mulher também, e tudo isso é gratuito.

Cerca de 420 inquéritos de violência doméstica foram registrados neste ano e o número aumenta cada vez mais porque há muitos canais disponíveis hoje, como 180 da Polícia Civil, a própria DPCAMI onde podem ir direto, site da Polícia Civil, onde podem inclusive solicitar medida protetiva de forma virtual, isso faz que números cresçam e também confiança no serviço da DPCAMI – há agilidade, acolhimento e as mulheres estão se sentindo mais confiantes a denunciar. E podemos ver como forma de prevenção – a maioria dos crimes que têm são injúria, difamação, antes de chegar na agressão. Ou seja, antes de chegar na agressão, tiveram coragem de fazer a denúncia antes de serem agredidas. Assim, pedimos medida protetiva para proteger a vítima e o agressor se sente acuado, porque sabe que foi denunciado, e descumprimento de medida protetiva Juiz pode inclusive determinar prisão – traz consequências sérias e os homens sabem disso. Em sinal de violência, denuncie, para podermos te ajudar e evitar que um crime mais grave venha a acontecer”.


Ciça (Arquivo Pessoal)

Ciça Müller, vereadora e Procuradora da Mulher de Balneário Camboriú

“Dentro da Procuradoria temos feito um trabalho bastante intenso com a rede de apoio das mulheres, incluindo a defensoria pública, a DPCAMI, a Guarda Municipal, Programa Abraço, Polícia Militar (Rede Catarina) e a Casa Alva. Neste ano, já registramos sete atendimentos e recentemente ativamos o Instagram da Procuradoria (@procuradoriamulherbc), que até então não estava nas redes sociais, para comunicar os direitos das mulheres, quais canais de apoio há, em caso de violência. Também fizemos campanha que está circulando no led da Câmara, onde aparecem os canais de denúncia e também canal de atendimento da Procuradoria (47 3263-7677 – WhatsApp) e já tem trazido resultado. 

Quero fazer um alerta para que mulheres fiquem atentas ao ciclo da violência, porque acontece muito de haver a discussão ou a violência e o companheiro se torna o príncipe encantado, pede desculpa, diz que não vai mais acontecer e aí acontece a ‘cilada’. 

Por isso é importante denunciar e procurar apoio psicológico, também para o agressor – exigir que faça terapia, que vá se tratar, porque se não o ciclo não será quebrado. 

É preciso se ligar nos primeiros sinais, para evitar que o caso evolua até chegar em algo pior. O relacionamento tóxico acaba sendo uma miopia – a pessoa não se acha merecedora de algo melhor, e se não há tratamento psicológico há inclusive casos de vítimas que voltam a ser vítimas. Por isso, as duas partes precisam ser tratadas”.


(Arquivo Pessoal)

Marisandra da Silva Pinto, coordenadora do programa Abraço

“O programa Abraço faz com que as vítimas conheçam os vários tipos de violência doméstica, a psicoterapia faz com que as vítimas entendam que elas precisam resgatar a sua autoestima e sua autonomia para que saiam destes relacionamentos tóxicos. Trabalhamos através de acolhimentos psicológicos, nosso programa atende 24 horas. 

De janeiro até hoje atendemos 1456 mulheres vítimas de violência doméstica, com idades variadas: 28,6% dos atendimentos foram dos 31 aos 40 anos; 23,8% de 51 a 60; 23,8%  de 41 a 50; 14,3% de 21 a 30 e 9,5% de mulheres mais jovens, dos 15 aos 20 anos. 36,8% das mulheres atendidas são moradoras do Centro, mas atendemos residentes de todos os bairros, como Barra, Municípios, Vila Real, São Judas Tadeu, Nova Esperança, Iate Clube, Pioneiros e Nações”. 

É muito importante lembrar que você nunca está sozinha, sua dor é sentida por todas nós. O programa Abraço atende na Casa da Família (R. 3100, 876 – Centro, Balneário Camboriú), vinculado à Secretaria de Assistência Social, Mulher e Família”.

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