O jogo de empurra dentro do Poder Judiciário mostra que a Justiça entregou para as prefeituras o problema de pessoas monitoradas por tornozeleiras eletrônicas que não tem endereço fixo e vivem nas ruas. A questão fica entregue à esfera de atenção social, que é exercida pelas administrações municipais. No entanto, o prefeito de Goiânia, Sandro Mabel (União Brasil), afirmou que a responsabilidade pelo monitoramento desses indivíduos cabe ao Poder Judiciário. Segundo ele, não se trata apenas de pessoas em situação de vulnerabilidade social, mas de criminosos que receberam progressão de pena.
Para obter o benefício da liberdade com monitoramento eletrônico, o detento deve informar um endereço fixo e um telefone para contato — exigências difíceis de cumprir por quem vive nas ruas. Nessas situações, muitos indicam endereços de familiares ou de abrigos públicos, frequentemente sem autorização ou conhecimento prévio das instituições responsáveis.
Essa lacuna torna praticamente inviável o acompanhamento efetivo desses indivíduos, especialmente durante o período noturno, quando deveriam estar em seus domicílios. A reportagem apurou ainda que alguns monitorados removem as tornozeleiras por conta própria sem sofrer qualquer tipo de penalidade. O cenário expõe a fragilidade do sistema de fiscalização e levanta dúvidas sobre a eficácia do controle judicial imposto aos beneficiários do regime semiaberto em situação de rua.
A permanência de indivíduos em situação de rua que utilizam tornozeleiras eletrônicas e continuam a cometer crimes revela uma falha grave do sistema de justiça na fiscalização desses monitorados. A tornozeleira, que deveria servir como mecanismo de controle e prevenção, tem se mostrado ineficaz diante da ausência de uma vigilância ativa por parte das autoridades responsáveis e até mesmo por não ter onde recarregar o dispositivo, que é eletrônico e necessita de recarga diariamente.
O descaso com a supervisão adequada compromete a segurança pública e transmite à sociedade a sensação de impunidade, enquanto as vítimas desses delitos continuam desamparadas.
Além disso, o fato de essas pessoas permanecerem soltos, mesmo reincidindo em práticas criminosas, evidencia a fragilidade de um sistema que, sob o pretexto de ressocialização, tem falhado na punição e na reintegração.
A população em situação de rua, já vulnerável, não pode ser estigmatizada como criminosa, mas é dever do Estado diferenciar os que realmente buscam uma segunda chance daqueles que continuam agindo à margem da lei. Sem fiscalização efetiva e resposta rápida às violações, o uso da tornozeleira eletrônica torna-se apenas um adorno simbólico, incapaz de conter o avanço da criminalidade nas ruas.

Mabel diz que não aceitará essas pessoas nos abrigos
Após o incêndio ocorrido no ginásio de Campinas, que, segundo o prefeito Mabel, foi causado por moradores em situação de rua, o chefe do executivo anunciou que não aceitará mais pessoas nessas condições que estejam usando tornozeleira eletrônica nos abrigos da capital.
Mabel destacou que a responsabilidade pelo destino dessas pessoas não é da Prefeitura, mas da Justiça, que precisa encontrar um local adequado para acomodá-las. Segundo o prefeito, esses apenados vão às casas de acolhida sob o pretexto de receber atendimento social, mas acabam influenciando outros moradores a cometerem crimes e comercializarem entorpecentes dentro das unidades.
“Na minha casa de acolhida, tenho 48 pessoas com tornozeleira eletrônica. Não vai ter mais nenhuma. Não vai ter. Não vou aceitar. Lá não é local para pessoas que cumprem pena alternativa. Ou ela fica na cadeia ou tem um endereço”, afirmou Mabel.
O Jornal Opção consultou o Tribunal de Justiça, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Polícia Penal e o Ministério Público para apurar de quem é a responsabilidade sobre o tema.
Vale ressaltar que, em Goiás, todos os presos do sistema semiaberto cumprem as penas em liberdade, monitorados ou não, informou o Tribunal de Justiça.
O CNJ explicou à reportagem que existem duas resoluções do órgão com orientações para que os juízes se baseiem antes de tomar uma decisão. As normativas orientam juízes e tribunais a considerarem as vulnerabilidades sociais desses indivíduos antes de impor o uso de tornozeleiras eletrônicas.
Uma das resoluções, inclusive, determina que, caso seja inevitável o uso da tornozeleira, o Judiciário, em conjunto com o poder público, deve garantir um local onde essas pessoas tenham acesso à energia elétrica — por exemplo, para recarregar o dispositivo eletrônico, inclusive durante a noite.
Percebe-se que tanto a Resolução nº 412/2021 quanto a Resolução nº 425/2021 tratam a questão mais como um problema social do que criminal ou judicial, direcionando a responsabilidade principalmente para o poder público municipal.
Por sua vez, o Ministério Público do Estado de Goiás esclarece que atua no acompanhamento da execução penal e das medidas cautelares diversas da prisão, zelando tanto pelo cumprimento das decisões judiciais quanto pela observância dos direitos fundamentais das pessoas submetidas ao sistema de justiça criminal.
O MP ressalta que o tema tem sido tratado pela instituição e pelos demais órgãos envolvidos. Na tarde de quarta-feira, 11, foi realizada uma reunião na sede da Prefeitura de Goiânia para a construção conjunta de uma solução adequada para as pessoas em situação de rua. Novos encontros serão realizados.
O que dizem os órgãos do sistema de justiça
Diante da situação apresentada, órgãos do sistema de Justiça vêm adotando medidas para evitar o uso de tornozeleiras eletrônicas nesse público. Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ações da Polícia Penal, posicionamentos do MP e práticas do Tribunal de Justiça reforçam que a solução precisa ser compartilhada entre o judiciário e o poder público.
Conselho Nacional de Justiça orienta alternativas
O CNJ editou a Resolução nº 412/2021, que estabelece diretrizes para o uso de tornozeleiras, priorizando sua vinculação à reintegração social, como acesso a trabalho, estudo e saúde. O texto determina que, quando fatores socioeconômicos inviabilizarem o uso adequado do equipamento — como a falta de moradia ou energia elétrica —, devem ser adotadas medidas alternativas.
A Resolução nº 425/2021, que criou a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, reforça essa diretriz. Ela determina que o uso do equipamento só deve ocorrer em último caso e, se inevitável, o Judiciário deve garantir acesso à recarga elétrica com apoio da rede de proteção social.
Polícia Penal realiza monitoramento
Em Goiás, a Polícia Penal é responsável pelo monitoramento eletrônico de custodiados, conforme decisão judicial. A instituição realiza fiscalização 24 horas por dia, com alertas em caso de violação das regras. O regime semiaberto no estado é, em regra, cumprido com o uso de tornozeleiras, já que não há unidades específicas para esse regime — a Casa do Albergado atende exclusivamente advogados.
Está em fase de licitação a construção de uma nova unidade prisional para o regime semiaberto em Aparecida de Goiânia, dentro do Complexo Prisional Daniella Cruvinel.
Ministério Público reforça fiscalização aos direitos fundamentais
O MP acompanha a execução penal e medidas cautelares, fiscalizando o uso de tornozeleiras eletrônicas e verificando se as determinações judiciais respeitam os direitos fundamentais. A instituição analisa individualmente cada caso, buscando o equilíbrio entre a ordem judicial e a dignidade da pessoa humana.
O monitoramento é realizado pela Secção Integrada de Monitoração Eletrônica (SIME), da Polícia Penal. Em Goiânia, quando os monitorados são pessoas em situação de rua, o MPGO articula encaminhamentos ao Escritório Social para apoio psicossocial e restabelecimento de vínculos familiares.
Tribunal de Justiça avalia caso a caso
O Tribunal de Justiça de Goiás esclarece que a tornozeleira pode ser aplicada tanto em ações penais quanto na execução de penas nos regimes semiaberto e aberto. No entanto, a condição de rua muitas vezes não é informada oficialmente no processo, o que dificulta a adoção de medidas adequadas.
O Escritório Social — iniciativa do Judiciário em parceria com a Polícia Penal — oferece suporte para carregar os dispositivos, além de serviços de documentação, saúde e inclusão social. O TJGO afirma que juízes analisam cada situação individualmente, respeitando a legislação e as orientações do CNJ, que proíbe expressamente o uso da condição de rua como justificativa para prisão.
Leia também:
O post Desatenção a moradores de rua monitorados por tornozeleiras eletrônicas mostra jogo de empurra da Justiça apareceu primeiro em Jornal Opção.