Goiânia, cidade sem humanismo ou patrimônio da humanidade?

*Fred Le Blue Assis

Entre as décadas de 1950 e 1980, iniciou-se o processo de descentralização e obsolescência do Centro em Goiânia, com predominância de usos varejistas, conforme pesquisa de Luana Villarinho (PUC/GO). O comportamento espacial do patrimônio edificado (ambiente construído) na escala do cotidiano e da convivência (ambiente vivido) afetou a vizinhança residencial, também por implicar em maior incidência de violência urbana, mendicância e drogadição na região, tornando a área central pouco atrativa para investimentos e especulações rentistas. Também por esses fatores, a atividade comercial mais pujante foi sendo empurrada para as bordas do Centro (Bernardo Sayão e, mais recentemente, Rua 44), sem contar a tradicional concorrência com o bairro de Campinas e a recente periferização das lojas de shopping, o que provoca a perda da vocação gregária de consumo e lazer também.

Ao longo dos anos, muitos projetos sobre o patrimônio histórico arquitetônico e/ou cultural do Centro de Goiânia têm sido destaque na política e mídia local, todas as iniciativas, em geral, pecando por desconsiderar ou não perpetuar as pré-existências das anteriores e por não conseguir criar coesão para amalgamar seus legados de forma a suscitar continuidades de ações em projetos similares posteriores. O que se tem visto, na verdade, é um uso político e social da memória coletiva espacial para atender aos interesses eleitoreiros, mais do que para a conscientização histórica e a educação patrimonial, que eleve o princípio do bem comum e da boa convivência, que suscite a valorização e a preservação do espaço público.

A atual gestão da prefeitura de Goiânia criou, neste último ano de sua indigestão, um projeto de requalificação do Centro de Goiânia, o Centraliza, com o objetivo de fomentar, por meio de incentivos tributários, a revitalização do Centro de Goiânia. O simples fato do projeto ter sido apresentado em 2024, por um prefeito desgastado por obras intermináveis no Centro, iniciadas antes de sua gestão e que parecem que vão terminar depois, já aponta para a baixa perspectiva de adesão e continuidade dessa iniciativa bem-vinda.

Em 2023, as edições do projeto Viva o Centro, com suas programações culturais e turísticas nos espaços e equipamentos públicos do Centro, apontam para a possibilidade de humanização da região, tornando-a, novamente, um local gregário e atrativo, para além dos horários comerciais e da atividade de consumo. Esse tipo de ativação artística e educação patrimonial permite relembrar os já consolidados laços coletivos que temos com o Centro, devido aos lugares de memórias e de geografia da infância, bem como, para, em seguida, servir de anteparo para criação de novas memórias, usos, significados, ou seja, comportamentos ambientais, resultando também em novas possibilidades de desenvolvimento locais para essa microrregião. No entanto, por ser episódico, o Vivo Centro não criou a habitualidade necessária para tornar o Centro a sala de visitas da cidade de Goiânia. Mas, pelo menos, permitiu que os goianienses e os turistas pudessem ter uma experiência imersiva do seu ambiente vivido e construído dinamizado.

Em 2021, o Movimento Arte e Humanismo apresentou o projeto “Descentralizando o Centro de Goiânia” com diversos documentários, visando criar orientação espacial e pertencimento social, por meio da técnica de mapa mental artístico. A ideia seria apontar para uma interiorização geoafetiva de imaginários urbanos, ancorados no caráter mais estático do bairro central enquanto patrimônio material protegido (tombamentos), que permitisse repensar também as possíveis novas centralidades urbanas e culturais nas periferias, por meio da descentralização do Centro, no sentido de democratização do espaço central, enquanto museu da história da cidade e bazar de identidades em trânsito e metamorfose.

A reapropriação simbólica do Centro por moradores e visitantes é uma estratégia de comunicação radical para produzir zonas espontâneas de produção cultural, afinadas aos projetos de cidade humanista, inclusiva e polifônica. Por ser uma região de maior vocação comercial do que residencial, o bairrismo e associativismo de bairro do Centro têm peculiaridades como a de estar sob a égide de uma Associação Comercial e Industrial, a Acic, que tem como propósito principal defender a primazia do controle dos lojistas sobre a área, no sentido de atender os seus interesses de lucro. Se a população não ocupar biopoliticamente, há o risco de que as políticas públicas urbanas sejam tomadas para atender os interesses varejistas na região.

Essa política de incentivo ou renúncia fiscal é também, nesse sentido, uma antipolítica, porque é resultado do fracasso da atual gestão em gerenciar todos os instrumentos, leis e projetos sobre o Centro, de forma que fossem aplicados ou continuados. Os 500 mil pagos para o show do Leonardo no aniversário de 90 anos da cidade, poderiam ter sido usados para fazer 500 pocket shows nas ruas do Centro pelo projeto Viva Centro durante 1 ano, e, talvez, obtivesse mais êxito em trazer novas empresas do que essa política de filantropia empresarial.

O investimento na maior vocação de um Centro histórico deve ser voltado para a economia criativa e o turismo cultural, o que passa por criar condições de visibilidade da paisagem arquitetônica camuflada por tapumes, cuja lei da Fachada Limpa, promulgada por Iris Rezende, já teve prazo de implantação esgotado, sem as devidas adaptações aos padrões técnicos por parte desse empresariado que quer dinheiro público (direitos do bônus) sem contrapartidas (deveres do ônus).

Sinceramente, com exceção da Farmácia Artesanal, para além de questões de mídia externa, a classe política e empresarial atuam, na verdade, para apagar a identidade moderna e progressista porque isso autenticaria valores políticos da Revolução de 1930, anticoronelistas e antipatrimonialistas, com os quais não compactuam. Valorizar o espaço público é apontar para um caminho identitário social e político de memória coletiva do passado e do futuro que pode levar a população a reposicionar o seu imaginário urbano. Atualmente somos a capital do sertanejo e das roupas, o que contempla os logistas, de certa forma. Talvez os donos de loja tenham um medo irracional que se a cidade se tornar turística, eles perderiam visibilidade e vendas, deixando as lojas e o consumo de ser a principal atividade no Centro. Não percebem, no entanto, que tenderia a incrementar os seus lucros, pois turismo cultural e compras, ou turismo de compras, são complementares.

Clinicamente diria: mais um caso de Síndrome de Goianinho ou Goianita de autocastração da identidade goianiense pelo assassinato do pai primevo (Goiás Velho), o que resultou num complexo de culpa e não permissão que se revela no espaço e na política através desse processo de recalcamento da modernização, que, por isso, tornou-se camuflada por meio dos “tapumes vagabundos” e da goianidade rural. A hipervalorização polarizante da noção de propriedade privada (fundiária ou urbana) em detrimento do rebaixamento da de patrimônio coletivo, parece ver na cidadania do bem comum, por seu caráter inclusivo, uma espécie de protocomunismo. Talvez isso explique o amadorismo da política de memória no tocante à salvaguarda do Monumento aos Trabalhadores, em frente à Rodoviária, foi vandalizado e destruído, sem ter sido reinaugurado nem mesmo em gestões do PT, inevitavelmente, associados à causa trabalhista. Neste momento, enumerar numa lista de patrimônio tombados, no sentido de destruídos, não seria producente para restar alguma dignidade coletiva ao cidadão goianiense, que assiste a sua amnésia coletiva de braços cruzados, como, por exemplo:

“O Coreto da Praça Cívica quanto a Cruz da Praça do Cruzeiro são monumentos falsos históricos, réplicas das edificações originais destruídas pela sanha demolidora do Manuel dos Reis, Prefeito “biônico” de Goiânia entre 1970-74, sendo demolidos na mesma época em que antigo Mercado Central foi vendido para dar lugar à construção do Phartenon Center na Rua 4”, como bem relembra Benfica, membro da Arca, complementando que “esse Mercado, que ocupava toda a quadra, seria hoje com a sua fachada Art Decó, um charmoso polo de comércio e gastronomia em pleno Centro da Cidade, e a sua destruição prova que uma cidade que mutila o seu passado amesquinha o seu futuro”.

Outro ponto em relação ao patrimonialismo é que as forças de segurança pública têm sido utilizadas como braço armado dessas ideologias conservadoras antidemocráticas e neoliberais dos usos políticos, culturais e recreativos da polis. Após, uma cena noturna surgiu na Rua do Lazer, como forma natural de resgatar o tecido social carcomido pelo vírus psicológico da sociofobia preventiva causada pelo isolamento. No entanto, a truculência das forças de segurança em constantes e abusivas revistas policiais, banhadas com bombas de efeito “imoral” na Rua do Lazer, funcionaram como desconvites para a consolidação de ambiente vivido de convivialidade intersociorracial juvenil das mais diferentes regiões da cidade. O resultado, somado às negligências de limpeza e conservação pública, é a de que a percepção da situação urbana do Centro, tem sido a seguinte, como me revelou Paulete Porta:

“Havia muitos anos que não ia ao Centro de Goiânia. Especificamente na Rua do Lazer. Fui ao Teatro Carlos Moreno. Fiquei-me lembrando como era alegre. Cinemas. Lojas. Deparei-me com uma rua suja. Abandonada. Confesso que tive um pouco de medo de estar ali. É uma pena que o poder público não tenha olhos para mostrar algumas das nossas tradições. Podia revitalizar aquele espaço. Levar segurança e acessibilidade. Como disse a Percia Moreno” uma rua igual da cidade de Gramado”. Com flores. Iluminação Comidas e segurança. Uma pena!”

O fato do único banner sobre o “Centraliza” ficar posicionado no Paço, sinaliza, na verdade, que este projeto tem mais a ver com centralização de poder do que com democratização do centro. Iniciativas mais sustentáveis como o Descentralizando…, o Fachada Limpa e o Viva Centro vão sendo esvaziadas, porque eles podem apontar para a reconquista inclusiva e democrática dos direitos e dos bens coletivos, mesmo correndo-se o risco de gentrificações futuras. E mais, do que isso, para o empoderamento narrativo da população em prol de assumir uma identidade e memória modernista e cosmopolita goianiense, no que permite criar consensos e consciências sociais que possam reivindicar para Goiânia, o merecido título de capital mundial do Art Déco e de patrimônio da humanidade pela Unesco. Mas, antes e para isso, a cidade tem que deixar de ser uma das capitais mais sociorracialmente desiguais e socioespacialmente segregadoras do país. Essa mudança deve começar pelo começo, seu local mítico de origem, o seu Centro Histórico.

*Fred Le Blue Assis (Pós-Doutor em Artes pela UFMG, Doutor em Planejamento Urbano pela UFRJ; memória social na UniRio e Idealizador do Grupo Goiânia 2030/Movimento Arte e Humanismo)

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