“Zama”, de Benedetto, demonstra que originalidade e qualidade literárias podem caminhar juntas

Edmar Monteiro Filho

Recentemente, revi “A Grande Beleza”, filme de Paolo Sorrentino, de 2013. Lá se foram mais de dez anos, mas sigo achando que se trata de um dos filmes mais inteligentes a que assisti nos últimos tempos. Infelizmente, continua condenado a pequenos públicos, rodapés de publicações sobre bom cinema. Ironia pensar que uma obra tão bem realizada e que traz reflexões tão atuais e importantes sobre o esvaziamento dos sentidos na arte contemporânea seja visto por um punhado de pessoas.

No filme, o personagem Gep Gambardella, repórter de uma revista esnobe e autor de um único e aclamado romance, vaga pela cidade de Roma, frequentando festas atulhadas de artistas decadentes, nobres de aluguel e dândis patéticos, e buscando motivação para sua vida em meio a verborrágicas e portentosas exibições do vazio.

Paolo Sorrentino: diretor de cinema | Foto: Reprodução

Ressalto dois momentos interessantíssimos do filme. No primeiro, Gep encontra um personagem que carrega em sua mala as chaves dos mais fabulosos palácios da cidade. Ciceroneado por ele, passeia pelas galerias e jardins, repletos de belíssimos exemplares da arte clássica, que permanecem ocultos aos olhos do mundo. No segundo, questionado por uma religiosa sobre o porquê de não ter seguido sua carreira como escritor, Gep afirma estar em busca de uma “grande beleza”, que não mais conseguiu encontrar.

O filme é cheio de outros encantos que não se pode mencionar sem fazer o papel daquele inconveniente que entrega soluções a quem ainda não o viu. Mas é interessante ressaltar o grotesco da busca desesperada pela originalidade que o filme aponta, bem como a construção de um mundo baseado na valorização irreal de “simulacros artísticos”, conforme denominou o jornalista Thales de Menezes. Gep Gambardella não encontra motivos para continuar escrevendo num universo marcado pela vaidade e pela ilusão, simbolizado pela performer que se joga de cabeça contra um muro ou pela menina que, aos prantos, atira latas de tinta contra uma enorme tela, observada por marchands e críticos de arte.

Zama, de Antonio Di Benedetto

Antonio Di Benedetto: escritor argentino | Foto: Reprodução

Impecável ao ironizar o atual mercado da arte e a cena que o alimenta, “A Grande Beleza” passa em silêncio e desaparece, enquanto proliferam em nossos cinemas comediazinhas vazias, heróis autoexplicativos, thrillers espertos e afins. Da mesma forma, o romance “Zama” (Globo, tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, 237 páginas), do argentino Antonio Di Benedetto (1922-1986), com sua linguagem clássica, quase anacrônica, parece ressaltar um tipo de ordem desaparecida perante o cenário de experimentalismos vazios e enredos de novelas da Globo que inundam as nossas letras e que também aparece retratado no filme de Sorrentino.

O enredo do livro apoia-se numa espera. O ambiente é a América espanhola, em fins do século 18. O protagonista, Dom Diego de Zama, assessor letrado do governador em Assunção, Paraguai, aguarda sua transferência para um local mais nobre entre as colônias espanholas. Seus dias de prestígio e de grandes ambições jazem no passado. Mas à desilusão cínica do protagonista de “A Grande Beleza”, Di Benedetto opõe uma desilusão que se baseia num sentimento de injustiça do mundo, já que Dom Diego se considera merecedor de um cargo de maior prestígio, das atenções das mulheres brancas da colônia, dos favores do governador, de uma remuneração que o liberte da penúria em que é obrigado a viver. 

O livro aborda dez anos da vida do personagem. Sua espera é alimentada pelos navios que aportam periodicamente na cidade, negando notícias da almejada transferência, cartas da esposa, que vive em Buenos Aires, e os pagamentos, sistematicamente atrasados. O que poderia se transformar numa narrativa acerca das desventuras de Dom Diego com as mulheres da colônia e suas relações com os subordinados e companheiros de trabalho, é escrito de modo a traduzir um perene estado de sonho, em que o protagonista parece destacado do mundo e da compreensão dos acontecimentos que o cercam. O emprego de interposições ao fluxo sóbrio da narrativa acentua essa impressão, bem como um reiterado suspense, seja diante das misteriosas figuras femininas que aparecem na segunda parte do livro, ou do onipresente menino ruivo que persegue o personagem, seja ainda na parte final do romance, quando Dom Diego sai à caça de um perigoso bandido cuja presença parece tão próxima quanto invisível.

“Zama” resiste a todo tipo de enquadramento, demonstrando que a originalidade e qualidade literárias podem caminhar juntas. Mas conquistá-las não depende apenas de alguns excessos exuberantes ou experimentalismos vãos. É preciso que o texto possua sentido, finalidade, uma mensagem — incômoda que seja —, uma verdade sua, mas, essencialmente, uma verdade.

Edmar Monteiro é crítico literário. E-mail: [email protected]

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