O ciúme vê chifre na cabeça de mula-sem-cabeça

Fui recentemente ao Vap-Vupt da Estação Ferroviária de Goiânia. Após resolver o problema, fui à praça de alimentação tomar um lanche. Lá me lembrei de algo que presenciei um monte de anos atrás quando estava com uma namorada, que era excessivamente ciumenta. Seu ciúme abrangia até o meu olhar. E eu, confesso, às vezes fazia por merecer algumas broncas em relação às fugas do meu olhar, que não tinham como alvo outra mulher. Era meramente por curiosidade quanto às coisas que ocorriam à nossa volta, no caso ela e eu. Coisa de cronista de meia-pataca, a fuçar a vida alheia sentado no próprio rabo (muitas vezes cheio de carrapichos, pulgas e carrapatos). Seus beliscões verbais, eu sempre os refutava com a mesma frase: “Você está vendo chifre na cabeça de mula-sem-cabeça”.

Nossa relação foi curta. Cada um foi na esquina ver se outro estava lá e assim pegamos rumos diferentes. Nos murmúrios interjetivos ia tudo bem, mas fora isso rolava mais nhenhenhém do que conversa amena, cheia de sombra fresca. Esse fato relacionado à antiga namorada nem precisava ser mencionado, pois não acrescenta nada de significante àquilo que vou relatar nesta crônica, mesmo ela ter sido personagem do relato. Na verdade, mencionei-a para falar de um algo ocorrido quando estávamos na rodoviária de Goiânia, mais precisamente numa lanchonete e restaurante.

Estávamos comendo esfirras com suco de laranja quando um casal entrou, ambos carregando no ombro uma sacola de pano, a do homem era maior. Estavam com os filhos (pelo menos julguei que eram filhos): um menino e uma menina com idade aproximada entre 10 e 12 anos respectivamente. Fomos à rodoviária para esperar uma prima dessa namorada, que estava vindo de São Paulo para prestar um concurso público na Prefeitura de Goiânia.

Retirantes, de Portinari

Os quatro se sentaram numa mesa bem no fundo da área destinada ao restaurante. Certamente tinham acabado de chegar de alguma cidade do interior de Goiás. Talvez vindos de outro Estado. Todos vestidos humildemente e com aquele olhar tímido muito peculiar nas pessoas pobres, principalmente chegando em cidade grande. Na verdade, só fui observá-los mesmo com mais atenção depois que o garçom trouxe um PF (o famoso prato feito) que o homem lhe pedira. O prato estava quase derramando de tão cheio. É provável que o garçom tenha se sensibilizado com eles e assim pedido para caprichar.

Tão logo o garçom colocou o prato sobre a mesa, acompanhado apenas de dois garfos e duas facas, o homem olhou para sua mulher e falou-lhe algo bem baixo, ela olhou para a filha e também disse algo baixo. As duas, então, uma de cada lado da mesa, deram início à refeição, sem se valer das facas. Após alguns minutos, a mulher e a filha saíram de cena, então o pai e o filho assumiram o restante da comida. Os quatro beberam toda a água da garrafa trazida pelo garçom, talvez para completar o almoço. O homem me passou a impressão de que estava envergonhado por não ter dinheiro para comprar comida para todos. Eles não se falaram durante o período em que almoçaram. Foram embora em silêncio.

Pensei em comentar com namorada essa cena triste que presenciei na minha fuga de olhar, mas fiquei com ela só para mim. E agora estou compartilhando-a também com você, altaneiro leitor. Esse acontecimento já tem algum tempo. Por aí há, nesse brasilzão afora, muitos pais enfrentando situações até piores, as quais poderiam ser consideravelmente atenuadas se tivéssemos uma classe política (e também a empresarial) voltada a realmente resolver os problemas sociais do país. O que se vê, na atuação da maioria, é um explícito propósito de sugar o dinheiro público na maciota, num parasitismo social abjeto. O que os políticos de cada bando têm feito muito é trolar (verbo do momento): cada grupo passando titica no outro; e os trouxas (claques de cada bando) caindo fácil no visgo da verborreia disseminada nas redes sociais e, cegamente, carregando andor com santo de pau oco.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza.

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