Saiba como funciona um mandato coletivo do grupo que pode assumir vaga na Câmara de Goiânia

O PSOL ajuizou ação no Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE-GO) para requerer o mandato do partido na Câmara Municipal de Goiânia, por infidelidade partidária. A vaga na Casa surgiu após a cassação de duas chapas de vereadores pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por fraudes na cota de candidaturas femininas. Eleito pelo PSOL, o policial rodoviário federal Fabrício Rosa tomou posse na última terça-feira, 16, pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Caso a decisão seja favorável ao PSOL, quem assume é a suplente Cíntia Dias, com “mandata coletivo Agora que são Elas”, formada por quatro mulheres: Cíntia, Cris Lemos, Valéria da Congada e Beth Caline. O primeiro Mandato Coletivo do Brasil foi em Alto Paraíso de Goiás (2017-2020), formado por 4 homens e uma mulher, que se diferencia dos modelos clássicos de democracia participativa. Desde a campanha, passando pelo exercício do mandato até as entrevistas com o mandato encerrado, os membros mantiveram que se identificavam com esse ideal participativo, por meio de programas e projetos extraparlamentares. Mas, na prática, você sabe como funciona um Mandato Coletivo?

A “Mandata Coletiva Agora que são elas” foi concebida a partir das organizações das 4 participantes, que mantêm uma estreita colaboração entre si e se encontram regularmente. A partir de meados de 2019, após o evento “Ele não” em Goiânia, o grupo começou a se organizar como uma unidade. Pouco tempo depois, conhecem o coletivo feminista “Juntas!”, que atua em universidades, escolas, movimentos sociais, sindicatos e cidades por todo Brasil desde 2011. A partir dessa colaboração, iniciaram-se discussões sobre uma proposta de mandato coletivo para Goiânia.

Essa proposta inclui várias mulheres, além de outros membros, pois muitos entenderam a necessidade de um mandato coletivo para mostrar que é possível construir algo além do personalismo. Este é o primeiro mandato desse tipo em Goiânia. O primeiro do país também veio de Goiás, em Alto Paraíso, promovido pela REDE Sustentabilidade.

“Agora que são Elas”

Durante as discussões, percebeu-se a importância de garantir a representação da ancestralidade do movimento negro para combater o racismo. Isso inclui a participação Valéria da Congada, uma mãe de fé e toda a representatividade que Valéria traz consigo. Valéria Da Congada é mãe de santo, defensora da liberdade religiosa, militante do movimento negro e da cultura negra. Além disso, é organizadora da congada 13 de Maio, é mãe e avó e ativista dos movimentos da representatividade negra, da cultura e religiosidade afro brasileira.

Valéria explica que a mandata coletiva veio para transmitir essa força de ser mulher. “Eu tenho sido uma militante do PSOL desde o seu início, então sou profundamente ligada a este partido, que lutou incansavelmente aqui em Goiás e conseguiu estabelecer-se em 2004. Assim, estar no PSOL hoje é como estar em família para mim. Estou aqui para representar as mulheres negras, as mães, avós e mulheres da comunidade de terreiro, de matriz africana”, explica.

Ela conta que é a primeira iyalorixá a sair às ruas em 2013, mostrando a importância do povo de santo e reivindicar seus espaços e direitos. “Quando digo “Axé”, não é para converter ninguém à minha religião, mas sim para afirmar minha humanidade e minha capacidade de estar onde desejo estar. Além disso, sou congadeira. Sou filha de uma mulher que trouxe a história da dança dos pretos para Goiânia. Sou filha de uma mulher que foi lavadeira e que, infelizmente, partiu sem ter tido a oportunidade de aprender a escrever seu próprio nome”, pontua Valéria.

Em 2019, a discussão sobre ciência estava em destaque devido à propagação de fake news e à desinformação disseminada pelo governo anterior. Diante disso, a Universidade Federal é representada pela professora Cristiane, que atua na área da saúde. Cientista e Professora da UFG, é militante em defesa do SUS, militante no movimento social por saúde e moradia e compõe o movimento SUS com pequi.

“Nossa representatividade é diversificada, mas o que nos une é a experiência compartilhada de ser mulher. Em uma sociedade patriarcal como a nossa, a entrada das mulheres na política é um processo complexo, marcado por obstáculos e resistências arraigadas. Além do nosso grupo principal de quatro mulheres, contamos com o apoio de uma rede mais ampla de pessoas que compartilham dos nossos ideais e se uniram a esta mandata coletiva”, questiona Cristiane.

Para ela, é encorajador ver homens também apoiando o grupo, mas é importante questionar por que as mulheres são tão sub-representadas na política brasileira. “Por que os cargos de poder historicamente estiveram predominantemente ocupados por homens? E por que, especialmente em Goiás, é tão incomum ver mulheres na política?”, continua.

Beth foi conhecida através de seu ativismo fervoroso em movimentos sociais, onde ela demonstra uma representatividade significativa, especialmente nas organizações LGBTQIAP+. Vale ressaltar que Goiás é o estado que mais registra homicídios de pessoas trans no Brasil, com uma expectativa de vida inferior a 30 anos. Beth Kaline é uma jovem negra da periferia, travesti, mulher trans e militante do movimento LGBTQAP+. Ela compõe compõe o movimento “orgulhosa resistência”, proprietária de um pequeno salão de beleza e trabalha como maquiadora e YouTuber.

Para Beth, a mandata coletiva “Agora que são elas” surge da urgência de transformar a política atual em que vivemos. “Não se trata apenas das quatro mulheres à frente desse movimento, mas sim de todo o coletivo que nos apoia e está conosco. Nosso objetivo é mudar a política de uma representatividade superficial para uma verdadeira participação popular. Queremos estabelecer um diálogo constante com os movimentos sociais e com a população em geral, promovendo uma política que não apenas represente, mas também envolva ativamente a comunidade”.

Ela explica que, em um sistema político onde os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – recebem toda a atenção, muitas vezes se esquece do verdadeiro poder: a democracia, o povo. “Acreditamos que a verdadeira essência do poder reside na participação ativa da população, e é isso que buscamos promover com nossa mandata coletiva”, exemplifica Beth.

A participação de uma representante do movimento da classe trabalhadora, das trabalhadoras e dos trabalhadores, além do movimento feminista, também foi considerada importante para a Mandata. Cíntia Dias é socióloga, mestranda, feminista, co-coordenadora do Fórum Goiano de Mulheres; ligada aos movimentos populares como o MST e MTST; liderança sindical compõe o Fórum Goiânia por Direitos, Soberania e pela Democracia; foi a única mulher candidata à Governadora para Goiás e é, pelo 2° mandato, presidente do PSOL.

“A proposta da mandata coletiva é destacar a importância da presença de mulheres no poder, não apenas de um mesmo perfil, mas de mulheres com diferentes trajetórias e formas de atuação, contribuindo de maneira significativa. A união e cooperação entre mulheres são princípios amplamente reconhecidos, pois compartilhamos a experiência de que sempre alcançamos mais quando trabalhamos juntas, sem divisões. Então, por que não aplicar esse princípio também no parlamento?”, questiona Cíntia Dias.

O que é um mandato coletivo?

Para além da aproximação e abertura de canais de diálogo entre representantes e civis, o mandato compartilhado busca mecanismos de inclusão da sociedade nos processos de decisão e o aumento do seu poder de influência e interferência dentro dos espaços políticos. 

Nesse modelo, o político se compromete a dividir seu gabinete e mandato com uma rede de pessoas voluntárias, compartilhando sua gestão e votando de acordo com as deliberações desse time. Dessa forma, o representante abre espaço para ações e posicionamentos mais plurais, que tendem a neutralizar interesses particulares. Inicialmente, o modelo foi colocado em prática no poder legislativo municipal, com membros da rede de colaboradores chamados covereadores. Atualmente é também possível encontrar mandatos compartilhados no legislativo federal e estadual, como resultado do processo de renovação política na última eleição. 

Em um mandato coletivo, estão reunidas diversas pessoas com conhecimento e experiência em áreas específicas, pertencentes a diferentes setores sociais e partidos políticos. Sua missão é assumir o compromisso de ser um canal direto de intervenção da sociedade no poder público, de forma a somarem suas capacidades em áreas particulares e contribuírem na cocriação de projetos e na gestão da governança, agregando ao mandato múltiplas perspectivas e diferentes saberes.

Na prática, a modalidade pode ocorrer de duas formas; reunindo o coletivo em torno de um nome que é efetivamente um pré-candidato, mobilizando votos durante a campanha para esse nome, mas divulgando a ideia da candidatura coletiva; ou durante o mandato, onde o time é formado somente após o político ser eleito. Independente do modo como o mandato compartilhado é adotado, apenas um candidato estará registrado na Justiça Eleitoral e será eleito, mesmo que o mandato seja exercido em conjunto, onde todos os participantes serão responsáveis pela gestão.

Primeiro no país

No Brasil, a ideia da coletivização de mandato, com objetivo de incluir diferentes saberes na gestão de um político, partiu do vereador João Yuji pelo antigo partido PTN durante as eleições municipais de 2016 em Alto Paraíso (GO). Inspirado pelo Movimento Ecofederalista – ação que defende a construção de uma estrutura política brasileira onde as instituições municipais não tenham sua atuação limitada, mas sim abertas de forma descentralizada e adaptativa. No entanto a ideia do mandato coletivo não é totalmente inédita, pois em cidades como Salvador, Santa Catarina e São Paulo a modalidade já vinha sendo experimentada em moldes menos estruturados e diferentes desde 1994, não tendo esses anteriores êxito em sua eleição. 

O recente modelo de formar um gabinete teve que se adequar à realidade do local e superar as imposições do sistema eleitoral brasileiro vigente para que pudesse ser lançado nas eleições de Alto Paraíso. Sua inviabilidade contava com o fato do sistema eleitoral não permitir a formação de candidaturas coletivas e determinar a obrigatoriedade de filiação do candidato a um partido político.

Logo, o primeiro passo para a realização eleitoral do mandato compartilhado foi buscar um partido que pudesse bancar a proposta do modelo. Em seguida, fazer o alinhamento do diálogo e funções do grupo de covereadores que atuariam na gestão. Hoje, os desafios que a iniciativa tem enfrentado são outros, visam a expansão desse modelo de mandato à outros níveis institucionais e buscam por uma legislação específica que normatize a prática.

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