Conto de Poe tem algo a dizer sobre morto que “tentou” obter empréstimo no Itaú Unibanco

A mídia quedou-se, mesmerizada, com um fato ocorrido na semana passada. Érika de Souza Vieira Nunes, de 43 anos, saiu de casa, no Rio de Janeiro, acompanhada do tio Paulo Roberto Braga, de 68 anos, com o objetivo de sacar ou transferir para a conta de um deles o empréstimo de 17 mil reais que havia sido pré-aprovado pelo Itaú Unibanco.

Em tese, o beneficiário do financiamento seria Paulo Roberto Braga, que planejava comprar uma televisão — talvez para ver futebol (torcia para o Flamengo ou era “sofredor” do Botafogo?), filmes, séries ou novelas — e reformar sua casa.

Ao sair de casa, Érika de Souza chamou um motorista de Uber (os taxistas ficaram mesmo para trás, como uma espécie de dinossauros). Um mototaxista, que ajudou a colocar Paulo Roberto Braga no automóvel, assegurou: “Ainda respirava e tinha forças nas mãos”. O chofer do aplicativo percebeu que o alquebrado idoso segurou na porta do carro.

Portanto, ao sair de casa, Paulo Roberto Braga estava vivo. Pouco tempo antes, havia sido internado, num hospital, com pneumonia.

Quando será que Paulo Roberto Braga efetivamente morreu? Não se sabe direito. O ar-condicionado forte do banco contribuiu para sua morte? Talvez. Há indícios de que tenha falecido um pouco antes, sem que Érika de Souza tenha percebido? Não dá para saber, exceto se a cuidadora — operosa, de acordo com sua advogada, Ana Carla de Souza Corrêa — decidir contar o que ocorreu. Se é que sabe alguma coisa, além do que está sendo divulgado.

A excelente jornalista Natuza Nery, da GloboNews, fez comentários pueris — condenando a mulher, por certo de uma pobreza franciscana, de maneira acerba. Tolerância zero com pobres é fácil. Mas e com os milionários e bilionários?

O conto de arrepiar de Edgar Allan Poe

A crítica literária, professora universitária e divulgadora cultural Helissa Oliveira Soares, uma força da natureza, como se dizia em 1849, lembrou-se, ao comentar a história de Érika de Souza e Paulo Roberto Braga, de um conto do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) — “Os Fatos do Caso do Sr. Valdemar”.

Edgar Allan Poe: um dos inventores do conto moderno | Foto: Reprodução

Sou leitor da prosa, da poesia (o poema “Só” é esplêndido) e dos ensaios de Poe, mas não havia lido o conto. Li, então, duas traduções. Uma delas figura no livro “Contos de Imaginação e Mistério” (Tordesilhas, 423 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), de Edgar Allan Poe — com prefácio do bardo e crítico francês Charles Baudelaire (1821-1867), um dos principais redescobridores da arte do “proeta” dos Estados Unidos. Há belas ilustrações do irlandês Harry Clarke (1889-1931). A segunda está inserta no livro “Ficção Completa, Poesia & Ensaios” (Nova Aguilar, 1022 páginas, tradução de Oscar Mendes e Milton Amado, com estudos biográficos e críticos de Hervey Allen, Charles Baudelaire e Oscar Mendes e ilustrações de Eugênio Hirsch e Augusto Iriarte Gironaz). Nesta versão, o título do conto é “O caso do sr. Valdemar”.

Vamos ao conto, com spoiler (que adoro) e tudo mais. O relato de Poe é de 1845. Conta-se o caso do mesmerizador “P” (por certo, alusivo a Poe) e do mesmerizado Ernest Valdemar.

Poe é um dos inventores do conto moderno, muito antes do russo Anton Tchekhov (1860-1904) e do francês Guy de Maupassant (1850-1893). De cara, no segundo parágrafo, o narrador, P, alerta o ledor: ante a incredulidade dos leitores, “faz-se necessário que eu forneça os fatos — na medida em que eu mesmo os compreenda”. Fatos em itálico é uma escolha de Poe (ou do narrador).

Ao explicar que seu interesse pelo mesmerismo (do médico alemão Franz Anton Mesmer — 1734-1815) começara havia três anos, P frisa que “nenhuma pessoa ainda fora mesmerizada in articulo mortis”.

De acordo com P, “permanecia por ser verificado, primeiro, se, em tais condições [com a pessoa morrendo], existia no paciente alguma suscetibilidade à influência magnética; segundo, se, caso existisse, ela era prejudicada ou ampliada pela condição; terceiro, em que medida, ou por qual duração de tempo, os avanços da Morte podiam ser detidos pelo processo”.

O leitor há de perceber que o objetivo de Poe é contar a história, tal como aconteceu, sem julgar o mesmerismo. O narrador, como qualquer outro, é suspeito. Mas o de Poe procura ser ao menos objetivo, no limite do possível.

Ao pensar sobre o assunto — mesmerização e quase-morte —, P lembra-se do amigo Ernest Valdemar. Este parça é homem de cultura — tradutor de Wallenstein e Gargantua para o polonês. Morava no Harlem, em Nova York, “desde o ano de 1839”. Tísico crônico, “é (ou era) particularmente notável pela extrema magreza”. A cura da tuberculose só se deu no século 20.

Por ter um “temperamento marcadamente nervoso”, na versão de P, Valdemar era “um bom instrumento para o experimento mesmérico”.

Pintura de Edvard Munch

Valdemar costumava falar de sua morte iminente, de maneira calma. Não era “um assunto para ser evitado nem lastimado”. Talvez por causa da doença, a morte não apenas estava à espreita, como era desejada.

Como Valdemar não tinha parentes na América, portanto ninguém poderia atrapalhar a mesmerização, P decidiu propor mesmerizá-lo quando estivesse morrendo.

Interessado, Valdemar acordou que, quando estivesse próximo de embarcar para o paraíso dos pés-juntos, chamaria P para mesmerizá-lo.

Um dia, o mesmerizador recebeu um bilhete de Valdemar: “Pode vir agora mesmo. D—— e F—— estão de acordo que não deve durar além de amanhã à meia-norte; e acho que acertaram o momento com bastante precisão”.

P não pensou duas vezes e correu para a casa do moribundo Valdemar. Ficou consternado com o abatimento do amigo, mas talvez mais interessado no seu “experimento”.

O rosto de Valdemar, assinala P, “exibia um matiz plúmbeo; os olhos estavam totalmente embaciados; e a emaciação era tão extrema que a pele fora rachada pelos ossos malares. A expectoração era excessiva. O pulso, mal perceptível. Conservava, de um modo assaz notável, tanto as faculdades mentais como um certo grau de força física. Falava com clareza”. Até redigia “lembretes num caderninho de bolso”. Em suma, o que P não escancara, Valdemar era a cobaia ideal, praticamente inerme.

Pintura de Jacek Malczewski

(Quando saiu de casa, no Rio de Janeiro, Paulo Roberto Braga, que já estão chamando de Tio Paulo, parecia ter a mesma força física de Ernest Valdemar — por sinal, de nome composto, como o brasileiro. Um motorista do Uber e um mototaxista atestaram que se agarrava às coisas, como a porta do automóvel. Só não disseram se falava ou balbuciava.)

Os médicos D e F, ouvidos por P, atestaram que o caso de Valdemar era gravíssimo. Incontornável. Eis a síntese do narrador, feita a partir da oitiva das testemunhas científicas: “O pulmão esquerdo se encontrava 18 meses em um estado semiósseo ou cartilaginoso, e estava, é claro, inteiramente inutilizado para qualquer propósito vital. O direito, em sua metade superior, também ficara parcialmente, se não por completo, ossificado, enquanto a região inferior era meramente uma massa de tubérculos purulentos, interpenetrando-se. Diversas cavernas extensas haviam se formado; e, em um ponto, ocorrera a adesão permanente às costelas”.

Poe, na pele de P, é um narrador quase científico e enciclopédico, expondo detalhes de suas “pesquisas”. Os médicos também suspeitavam que Valdemar sofresse “um aneurisma da aorta”. Noutras palavras, o paciente estava mais morto do que vivo.

Percebendo que nada mais podia ser feito, os dois médicos voltaram para suas casas. Valdemar ficou sob observação de P e de dois enfermeiros.

P não se fez de rogado e abriu o jogo com Valdemar a respeito de sua morte iminente. Sem se assustar, o doente praticamente exigiu que a mesmerização tivesse início.

O estudante de medicina Theodore L——l decidiu ajudar P na sessão. Theodore fez as anotações que, mais tarde, P usou para estabelecer seu relato.

“Desejo ser mesmerizado. Receio que o senhor tenha adiado demais”, disse Valdemar a P.

Mais do que depressa, P deu “início aos passes” para subjugar Valdemar. “Encontrava-se evidentemente sob minha influência ao primeiro toque lateral de minha mão através de sua testa; mas, embora eu empregasse todos os meus poderes, nenhum efeito perceptível posterior foi induzido senão alguns minutos após as dez horas.”

Por que os médicos foram permissivos com a sessão de mesmerização? Porque, segundo P, “o paciente encontrava-se já na agonia da morte”.

Com anuência dos médicos, P mudou “os passes laterais para passes descendentes, e dirigindo” seu “olhar inteiramente ao olho direito do enfermo”.

Valdemar estava malíssimo. “Seu pulso era imperceptível e ele estertorava.” Pouco depois, suspirou “e a respiração estertorosa cessou. As extremidades do paciente estavam geladas”.

Mais tarde, sustenta P, a influência mesmérica prosperou. “Fiz as pálpebras estremecerem e com outros [passes] mais cerrei-as inteiramente.” Valdemar, admitiram os presentes à sessão, “se encontrava em um estado extraordinariamente perfeito de transe mesmérico”.

Valdemar parecia morto, com pulso “imperceptível”, mas “a aparência geral não era de um morto”.

(Será que, como Paulo Roberto Braga, aconteceu o mesmo? O morto estava morto mas parecia vivo ou estava vivo e parecia morto? Talvez estivesse morto para todos e, digamos assim, vivo para Érika de Souza, que estava quiçá acostumada com uma espécie de catatonia do tio.)

Discípulo do suábio Mesmer, P fez um “esforço leve para influenciar seu braço direito [de Valdemar] a acompanhar o meu. (…) Seu braço muito prontamente, ainda que debilmente, acompanhou cada direção que designei com o meu próprio”.

Pintura de Mike Davis

(Na unidade do Itaú Unibanco, em Bangu, no Rio, como se estivesse numa sessão de mesmerismo, Érika de Souza segurava e levantava um braço de Paulo Roberto Braga e tentava fazê-lo assinar os papéis do pedido do empréstimo de 17 mil reais. Ela dizia: “Assina, tio”. Depois, a cuidadora tinha de segurar a cabeça do parente. Os que assistiam a cena estavam atônitos — ante uma história de Poe no mundo real. A sensação de estranhamento era geral.)

“Está dormindo, senhor Valdemar?”, inquire o narrador. Na terceira tentativa, o noctâmbulo respondeu: “Sim; — adormecido, agora. Não me acorde! — Deixe-me morrer assim!”

Meio sádico (será?), P insiste: “Ainda sente dores no peito?” Valdemar redarguiu: “Sem dor — estou morrendo”.

O dr. F ficou perplexo ao perceber que Valdemar “continuava com vida”. Mais uma vez P perguntou: “Senhor Valdemar, continua dormindo?” O paciente replicou: “Sim; ainda dormindo — morrendo”.

(Quando estava morrendo, a caminho do banco, Paulo Roberto Braga teria dito algumas palavras, talvez inaudíveis para Érika de Souza? Teria pedido para falar com Deus? A cuidadora-sobrinha teria ouvido alguma coisa, uma ofegação?)  

Valdemar estava mal, nas últimas, mas, pertencendo a dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, não desertava do primeiro. Sua aparência era tão assustadora que as pessoas se afastaram “das imediações da cama”.

Antecedendo Machado de Assis (que traduziu o poema “O Corvo”) e tantos outros, Poe — que escrevia em jornais, com sucesso — dialoga com o leitor. P sugere que o leitor pode não acreditar na história que está relatando.

Valdemar parecia morto, o corpo esfacelado, mas, de repente, sua língua pareceu ganhar autonomia, por assim dizer, e brotou uma voz “sepulcral”. Parecia uma cousa sobrenatural, admite o contrito narrador. “A voz parecia chegar aos ouvidos de uma vasta distância, ou de alguma profunda caverna no interior da terra” (como se Valdemar já estivesse morto e, portanto, enterrado).

O que disse Valdemar, com sua voz mais de morto do que de vivo, como se fosse um zumbi? À pergunta se estava dormindo, o doente disse: “Sim; — não; — eu estava dormindo — e agora — agora — estou morto”. A repetição da palavra “agora” e o itálico são partes do conto quase-fantasmagórico.

Ante as palavras do morto-vivo ou vivo-morto — ou do morto que o mesmerizador, algo sádico, não deixa trafegar para o mundo da morte —, as pessoas à beira da cama sentiram um “calafrio de horror inexprimível”. Theodore, o senhor L——l, desmaiou.

Cá entre nós, Valdemar estava morto e sua língua viva, como uma espécie de serpente falante dos tempos de Adão e Eva? P apresenta uma explicação: “O único indício real, de fato, da influência mesmérica, era agora encontrado no movimento vibratório da língua”.

Médicos, os homens da ciência, e P, o indivíduo da pseudociência, discutiram: Valdemar deveria ser acordado ou não? Decidiram que não. “Estava evidente que, no momento, a morte fora detida pelo procedimento mesmérico. Parecia-nos indubitável que despertar o sr. Valdemar significaria meramente assegurar seu instantâneo, ou pelo menos acelerado, óbito”.

Depois de algum tempo, com o apoio dos médicos e enfermeiros, P decidiu despertar Valdemar. (Será que, ao movimentar os braços e segurar sua cabeça, Érika de Souza, de alguma maneira, queria despertar o Tio Paulo?)

Os primeiros passes de P não deram certo. Em seguida, deu-se “uma descida parcial da íris. (…) O declínio da pupila se fez acompanhar da profusa efusão de uma linfa amarelada dotada de um odor pungente e sumamente repulsivo”.

Por insistência do médico dr. F——, P indagou: “Senhor Valdemar, pode nos explicar o que está sentindo ou querendo nesse momento?”

A voz hedionda, quiçá das catacumbas ancestrais, quem sabe do Hades, proferiu: “Pelo amor de Deus! — rápido! — rápido! — ponha-me para dormir — ou, rápido! — acorde-me! — rápido! — afirmo que estou morto!”

Perturbado, com o vivo se dizendo morto ou com o morto se assumindo morto, P ficou sem saber o que fazer, “por um instante”, mas acabou optando por despertar Valdemar.

Os passes de P despertaram, se não o morto-vivo, pelo menos sua língua — nem eram os lábios —, que dizia: “Morto! Morto!”

Não deveria contar o final, mas, como sou aficionado por spoiler — a maior “invenção” da história depois do fogo, da energia elétrica, do telefone e da gilete (civilizadora) —, tenho de “trair” os leitores.

Sabe o que realmente aconteceu com o corpo de Valdemar? Helissa e Candice Marques de Lima (mestre da UFG), leitoras de Poe, certamente dirão: “Não conte, não!”, com exclamação e tudo.

Entretanto, como Poe, P e eu somos bocudos, vou, sim, contar o que aconteceu. Aliás, não sou eu, portanto me perdoe o spoiler. A fala é de P, o narrador-mesmerizador: “Seu corpo [de Valdemar] desintegrou-se — se desintegrou por completo sob minhas mãos. Em cima da cama, diante de toda a equipe, nada mais havia que uma massa quase líquida de uma asquerosa — detestável — podridão”. De arrepiar, não é, leitor mui amigo?

Poe conta sua história com mestria, como se fosse um anatomista da linguagem e do corpo. É uma espécie de narrador tão participante quanto distanciado.

(Voltemos a Paulo Roberto Braga, o Valdemar do mundo dito real. Se, quando saiu casa, Tio Paulo estava vivo, quando acabou o sopro inefável da vida? Ao morrer dentro de um banco — o que é assaltar um banco ante um banco, sugeriu Vladimir Lênin — assustou a todos e levou Érika de Souza à prisão, dada a imagem cristalizada de que se trata de golpista, o que talvez não seja. A vida, afinal, como sabiam Valdemar, P e Shakespeare, é mais confusa e enigmática do que “acredita” a nossa vã ciência e filosofia.)

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