Como morrer em Goiânia

*Haikal Helou

“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos.”
Benjamim Franklin

Se a morte é certa, por que tanto nos angustia? Pelo medo da perda, do desconhecido e da dor envolvida no processo, dirá a maioria, e mesmo sendo certa, quando vem de forma precoce e evitável, gera sempre angústia e revolta.

Existem diversos manuais e dicas de como viver em Goiânia, mas não tendo encontrado nenhum de como morrer, resolvi contribuir da forma que posso, descrevendo o que conheço da cidade onde nasci e vivo.

O cardápio de escolhas é variado. Pode-se tentar atravessar uma rua, no que em outras cidades é conhecido como faixa de pedestres, cair em um dos milhares de buracos em calçadas, ou ser atropelado por motos em alta velocidade na própria calçada, enquanto é picado por mosquitos contaminados por dengue, chikungunya ou Zika.

Existe uma outra forma tão goianiense como os botecos de esquina, pamonharias ou espetinhos, e esta que gostaria de analisar e refletir com você, caro leitor. Instituições que se apresentam como hospitais, sem a menor estrutura, protocolos assistenciais e segurança, verdadeiras arapucas para os incautos e que matam com impunidade

Alguns anos atrás participei de uma mesa temática no CRM cujo foco era o altíssimo índice de óbitos de pacientes em Goiás quando submetidos a cirurgias estéticas. Me lembro de ter enfatizado que essa tragédia não era uma exclusividade da cirurgia plástica, me lembro de termos discutido o assunto até as 23hs e não me lembro de termos dado continuidade e esse é para mim um dos ingredientes que tornam Goiânia tão insegura.

Para chegarmos a esse estado de insegurança, houve uma combinação muito ruim de fatores, uma tempestade perfeita: Primeiro, a ignorância do cliente/paciente. Ele não pensa em saúde, ela não é a prioridade local. O goianiense típico sonha com carros alemães brancos, casas luxuosas em condomínios e viagens de compras a Miami. Enche a boca para dizer que somos o maior mercado de luxo do País depois de São Paulo.

Plano de saúde? O mais barato, de preferência enfermaria e quando interna, pede upgrade para quarto como cortesia. Não tem ideia do que torna uma instituição segura e por isso não sabe diferenciar uma “trambiclínica” de um hospital de verdade. Se por acaso sabe o que são os índices de infecção, óbito, permanência e re-internações, não pergunta para não “ser chato” e se contenta com uma estrutura bonita com pessoas educadas.

Quando o procedimento complica começa a fazer as perguntas que deveria ter feito antes de entrar. Possui UTI? Infectologista? Laboratório 24h? Tomografia? Vão me transferir? Por quê? Para onde? Provavelmente já é tarde demais…

Some-se a isso a omissão do poder público. Se o paciente não é capaz de diferenciar uma instituição segura de outra, por que o Estado não faz isso por ele? Quando digo Estado, falo de todas as esferas do poder público. Por anos, venho solicitando a secretários de saúde, deputados, promotores públicos, conselheiros do CRM que criem um sistema de classificação de resolutividade para as instituições, para que o paciente possa, na entrada, saber o que se pode ou não fazer ali, qual a capacidade da instituição de tratar as complicações que podem vir a ocorrer. A solicitação entra por um ouvido e sai por outro.

Para completar essa tríade nefasta, temos empresários inescrupulosos que montam e mantêm esses matadouros abertos e funcionantes. Eles não te odeiam, não possuem aparência monstruosa, muito pelo contrário, são afáveis e simpáticos, educados e bem-vestidos. Não possuem o desejo de aleijar ou matar, eles simplesmente não se importam, não se sentem pressionados a constituir equipes, comprar equipamentos e ter custosas estruturas de apoio para tratar as complicações.

Apostam com a vida daqueles que neles confiaram sem o menor pudor apostando na impunidade e ganham sempre. Aliás, são incentivados indiretamente ou até diretamente pelos próprios pacientes ou operadoras de planos de saúde (OPS) a ter estruturas mais enxutas para baratear os custos. Não me lembro uma única vez ter sido procurado por uma OPS que nos cobrasse mais segurança. O assunto é sempre preço. Quanto mais barato melhor!

Que tal procurar a imprensa? Não se importam! Sempre que morre uma jovem em algum procedimento, estampam na manchete o nome, fotos, contam a história dessa pobre alma e se dão por satisfeitos. Semanas atrás, sintonizado na CBN, ouvi afirmações e questionamentos, que sempre sonhei ouvir, na voz da jornalista Cileide Alves. “Goiânia perdeu o poder de atração de pacientes para o DF” Fato! “Por quê todos os governadores e prefeitos de Goiânia não se tratam aqui?” Anos esperando alguém fazer essas perguntas!

Esse seria o tão aguardado momento de acordar? Infelizmente não, logo após dizer que o tema era complexo, ela resolve “arriscar” os motivos… Arrisca mal, erra feio e de forma superficial, até leviana, joga lama naqueles que lutam para melhorar a saúde de todos na cidade decretando que: “Aqui não se investe na saúde”.

Só tristeza… Nós, o povo da saúde não só trabalhamos aqui, aqui vivemos com os nossos amigos e parentes que tanto amamos. Indignado, solicito a oportunidade de participar da discussão, de tentar responder os questionamentos feitos, de gerar o debate. Inicialmente, é agendado para o dia seguinte, para logo após ser cancelado e nunca mais remarcado. Surgiu um novo escândalo do lixo no lixo da prefeitura e isso é prioridade…

Esse talvez seja o ponto principal. Quem se interessa em discutir a saúde em Goiânia? Políticos em campanha e só durante a campanha. Pessoas que vivem da saúde e não só querem, como precisam ser reconhecidos, de todas as formas, inclusive financeira, e pessoas doentes ou seus parentes e exclusivamente durante o período da enfermidade.

Há muito tempo, perdi a conta de quantas pessoas com real poder de mudar o atual cenário ajudei quando estavam doentes ou com entes queridos internados. Ficam genuinamente assustados e indignados com a experiência, qual a falta de vaga nos bons serviços, com a burocracia, demora e empecilhos. Toda essa indignação e engajamento desaparecem como um passe de magia negra, assim que saram e a vida volta ao seu ritmo normal. Esse problema já não mais os incomoda

Em termos de segurança pública, a nossa capital e estado são reconhecidamente um dos mais seguros, senão o mais seguro do país. Por quê? Houve um clamor popular, houve um governante que ouviu e resolveu agir e agora vem o reconhecimento pela melhora através da sensação de segurança que possuímos. Sonho com o dia que o mesmo acontecerá na área de segurança do paciente e que finalmente nos sentiremos seguros em sermos tratados onde moramos, como fazem aqueles que moram em BH, Porto Alegre e Curitiba. Até lá, vamos dando murro em ponta de faca e rolando a pedra morro acima.

*Haikal Helou é médico e presidente da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg)

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