PL do aborto: o projeto que, para tentar punir o ato, usa caso de 1998 de criança goiana que interrompeu gestação após estupros

Em 1998, CBS. foram as iniciais usadas em uma intensa cobertura midiática para se referir a uma menina de 10 anos de Israelândia, interior de Goiás, que recebeu autorização da Justiça para um aborto. Matéria da Folha de S. Paulo de setembro daquele ano descreve a criança como “franzina e frágil”, com “cerca de 1,40m e 30 kg”. A se ter uma ideia: CBS cursava, na época, a 3ª série do ensino fundamental.

A gravidez posteriormente interrompida só foi descoberta após a menina passar mal e ser levada a um posto de saúde. Ali, descobriu-se que a gestação já estava em torno de três meses, e que era fruto de estupro. Dois vizinhos de CBS, de 52 e 65 anos, a violentavam sistematicamente. A investigação policial, conforme descrito na precisa matéria de Malu Gaspar, descobriu que os estupros ocorriam “dia sim, dia não”, em um barraco vizinho ao que CBS morava.

“Para eles, tirar esse bebê é um alívio. A própria C. disse que a criança foi feita à força e que não quer que ela nasça”, disse o juiz João Geraldo Machado, que proferiu a sentença na época. Alívio, aqui, é uma palavra pequena para designar o possível sentimento de CBS e de seus pais. Uma criança de 10 anos, cursando o fundamental em escola pública, moradora da periferia de um interior de Goiás, a mãe trabalhava e tinha um salário de R$ 90 – o salário mínimo em 1998 era de R$ 130, o pai, desempregado, havia engravidado após ser estuprada “dia sim, dia não” por dois vizinhos. E quase a obrigaram a manter a gravidez. Uma criança. De 10 anos. Violentada.

Isso, porque a família de CBS precisou enfrentar a fúria da cidade pequena naquele ano. A história da menina se espalhou, e houve cólera por parte daqueles que não queriam aceitar a prática do aborto. O padre local e até mesmo um promotor de Justiça tentaram evitar, a todo custo, o ato. Os ataques e contratempos fizeram com que a gestação fosse interrompida já com quatro meses. Cita-se aqui um caso de quase 30 anos atrás. E quase 30 anos depois, a impressão é que nada mudou.

Acontece que o caso aqui narrado é usado como parte do embasamento em um Projeto de Lei – 1904/2024 – que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive no casos de gravidez resultante de estupro. A proposta, na prática, altera o Código Penal, que hoje não pune o aborto em caso de estupro e não prevê restrição de tempo para o procedimento nesse caso.

O PL, ao narrar o caso de CBS, diz que o médico que realizou o aborto na menina o fez “para espanto de seus colegas” e “diante de grande aparato midiático”. Para os autores do PL, o fato provocou a “introdução de um precedente sob os holofotes da mídia”.

O texto da proposta escolhe com cuidado as palavras para não esconder a indignação dos autores – deputados federais – diante do fato de que uma criança de 10 anos que foi estuprada ganhou direito ao aborto. Quanto ao choque diante de um caso em que uma criança era estuprada quase todos os dias por dois homens, de 52 e 65 anos, esse parece ter ficado nas entrelinhas de alguma outra página que, na edição final, acabou não entrando no projeto. Quem sabe.

Se aprovado, o projeto pode permitir que uma mulher vítima de estupro que interrompa a gravidez tenha pena maior do que a do próprio estuprador – a pena para o crime de homicídio simples (tipificado no Código Penal como quando se mata alguém) varia de 6 a 20 anos de prisão. Já a pena para estupro fica entre 6 e 10 anos, podendo chegar a 12 anos se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos.

Para os autores do PL, para “conceder às mulheres o direito de interromperem a gestação, independentemente da idade gestacional, e qualquer que seja o peso do nascituro, foi preciso subverter os princípios básicos do Estado de Direito”. Levando em conta o que o “Estado de Direito” que as mentes por trás do PL almejam – cujo peso da mão é maior para uma mulher estuprada do que para um estuprador -, há que se ter medo, muito medo do que nos espera no futuro.

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