Um Dia Chegarei a Sagres, último romance de Nélida Piñon, retrata a alma lusitana

Um mergulho na alma lusitana, de tantas glórias passadas devido ao período das grandes navegações, quando bravos aventureiros desbravaram “mares nunca dantes navegados”. E com sua intrepidez, descobriram novas terras e continentes e, dessa forma, mudaram radicalmente o mapa do planeta e a história da humanidade. A escritora brasileira Nélia Piñon, depois de um longo período sem lançar um romance, brindou seus leitores, em 2020, com a sua derradeira obra literária, “Um Dia Chegarei a Sagres” (Record, 512 páginas), que relata a saga de Mateus, um simples camponês da região do Minho, filho de mãe perdida, que nunca conheceu o pai e criado pelo avô Vicente.

Com o avô, Mateus aprendeu a lavrar a terra e a cuidar dos animais, os quais chamava por nomes. Mas, após a morte do parente, deixa sua aldeia e atravessa o país de norte a sul, em busca de Sagres, no Algarve, que guardaria as memórias gloriosas dos feitos do infante Dom Henrique, conhecido por ser o fundador, no século XV, da instituição náutica cujo objetivo era estimular as navegações portuguesas.

Nelida Piñon, a escritora que foi presidente da Academia Brasileira de Letras | Foto: Reprodução

Mateus segue a pé por Portugal, tentando realizar seu sonho, que mais parece uma utopia: conhecer uma Sagres que já não existia mais. Como tantos outros desvalidos de sua época (o romance é ambientado no século XIX), o protagonista passa antes por Lisboa. Na capital portuguesa permanece por um tempo, onde se mistura ao populacho, esquecido pelo clero e nobreza, as classes sociais dominantes do período.

Sim, nosso bravo Mateus consegue chegar a Sagres, onde é bem recebido por um taverneiro que lhe dá emprego, e por uma alfarrabista que o acolhe em sua casa. O último lhe ensina o amor pelos livros e pelos documentos históricos. Mas uma súbita paixão por Leocádia, a sobrinha deficiente da poderosa viúva Matilde, causa novas emoções ao protagonista, que ainda conhece o Africano, outra pessoa recém-chegada à localidade do Algarve.

Dom Henrique | Foto: Reprodução

A cidade onde ele tanto sonhou chegar só guarda como memória do Infante a sua fortaleza e os promontórios onde o mar bate revolto. Logo, ela se mostrará hostil, na figura de Matilde, que deixa claro seu desagrado pelo fato de Mateus lançar olhares apaixonados para sua sobrinha. Leocádia, por sua vez, permanece inacessível, sentada impávida na cadeira (não consegue andar, resultado de um parto difícil de sua mãe), e segue alheia aos acontecimentos. O Africano é outro ponto de tensão para o protagonista, e nos reserva um desfecho trágico.

A prosa de Nélida Piñon é elegante e direta. Por meio dela seguimos as aventuras de Mateus por Portugal, mas também podemos perceber o próprio sentimento do povo lusitano. De volta a Lisboa, local onde o personagem relata, já idoso, suas reminiscências escritas no livro, sentimos com ele a nostalgia de uma vida vazia, que foi absorvida na procura por uma quimera. “Lisboa é onde estou. Procedo da circunscrição do Minho, que apaguei do meu mapa”, diz. E continua: “Ainda tenho Sagres na retina, onde faleceu o Navegante na sua solitária fortaleza, com poucos acólitos. O promontório é um retrato em sépia, uma cor tênue, dos mortos, que clamam pelo vermelho”.

Nélida Piñon nasceu no Rio de Janeiro, em 1937, e se formou em Jornalismo. Faleceu em Lisboa em 2022, aos 85 anos de idade. Foi uma das escritoras brasileiras mais premiadas e traduzidas internacionalmente. No período 1996-1997 tornou-se a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL), por ocasião do centenário da instituição. Publicou mais de 20 livros, entre romances, contos, ensaios, discursos, crônicas e memórias. “Um Dia Chegarei a Sagres” foi sua última produção literária.

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. Email: [email protected]

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