Felicidade: o grande debate “entre” os filósofos Luc Ferry e Baruch Espinosa

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

[2ª parte da resenha do livro “A Vida Feliz — Sabedorias Antigas e Espiritualidade Laica”, de Luc Ferry]

É complexa e ampla a discussão implementada pelo filósofo Luc Ferry em torno do que seja felicidade. O pensador francês, ao discordar de um filósofo de primeira grandeza, como é o caso de Baruch Espinosa, apresenta-nos a riqueza de duas visões em torno do que seja ser feliz.

Escolhi relatar os pontos de divergência entre Luc Ferry e Espinosa do que seja felicidade. O paradoxo é sempre didático.

Creio ser oportuno ressaltarmos o dilema do resenhista no momento que teve, diante de si, um grande desafio: esfriar complexas análises filosóficas para um público leigo. Escolhi, dentre inúmeras opções de análise, a mais adequada para o entendimento dos leitores.

 Posto isso, creio ser didática evidenciar a seguinte indagação: o que é felicidade sob olhar de Espinosa e de Luc Ferry?

Com a palavra o narrador de Espinosa. O pensamento filosófico desse autor entende que a felicidade deve ser uma conquista do mundo interior do indivíduo. Nesse sentido, a autotransformação desse individuo reflete na mudança dele. Para Espinosa, ser feliz é, antes de tudo, um ato de resignação absoluta.

A guisa de melhor esclarecermos  a respeito da visão desse  pensador  sobre o que venha ser felicidade, nada mais apropriado do que  explicitarmos a fala de Frédéric Lenoir, um dos mais expressivos discípulos  do grande filósofo. Segundo ele, “a sabedoria nos ensina a desejar ‘sim’ à vida. Uma felicidade profunda  e duradora torna-se possível assim que transformamos nossa própria visão de mundo.” 

Cabe, aqui, evidenciarmos o contraponto ao pensamento de Espinosa, expresso pelo autor deste livro que ora resenho. No entender de Luc Ferry, a felicidade é, antes de tudo, um ato de rebeldia, que se atrela à capacidade do indivíduo. Exemplo: “se A é arrancado da mãe dele (interno) por acidente doença ou suicídio? Mais um exemplo: se B vive num campo de concentração esperando a morte. Certamente, tanto num caso como no outro ser feliz não se materializa ante os fatores externos (morte no campo de concentração, provocarem situações de angústia, insegurança ou depressão.)

Em situações como essa, a corrente de pensamento prega a resignação da ação concreta para se ter uma vida feliz. 

Analisar um livro filosófico tão rico e profundo como esse é um desafio não só pela variedade dos temas, mas, sobretudo, pela consistência reflexiva de um filósofo, reconhecidamente profundo, como é Luc Ferry. O que pretendeu o autor foi, por meio da racionalidade, municiar-se de argumentos racionais para provar algo fundamental na sua tese: que é possível ter uma vida feliz por um caminho que não necessita das religiões para se alcançar a felicidade. Quem opta por esse caminho, constrói sua crença por meio do conhecimento de grandes filósofos como Platão e Aristóteles ou, do ponto de vista científico, da psicanálise de Freud.

Para alcançar seus objetivos, o autor usa da força de seus argumentos para se contrapor às ideias de um filósofo reconhecido e respeitado entre seus pares, como é o caso de Baruch Espinosa. O que diferencia este último pensador daquele primeiro é o fator religioso. Nesse sentido, é oportuno esclarecer Espinosa, sem se abster da razão, que acredita no deus natureza, enquanto Luc Ferry, um agnóstico convicto, materializa sua fé no poder da razão.

As constantes investidas do autor em se contrapor ao pensamento de um “adversário” respeitável é o ponto chave do livro “A vida feliz”. Quanto à postura desse resenhista , tal qual os observadores invisíveis das peças de Shakespeare, cuja invisibilidade possibilita-nos de observarmos os seres humanos como eles são e procurara descrever, sem tomar partido, esse ataque intelectual para os leitores. Esse é o caminho que encontrei para falar de temas profundos, de uma maneira informativa. Ao agir assim, procuro evitar discussões rasas que não leve assuntos complexos para uma espécie de parque de diversões. É meu desejo que os leitores desses escritos acrescentem instrumentos analíticos, que os conduzam a uma vida feliz pelo autoconhecimento e não por receitas de bolo dos livros de autoajuda.

Luc Ferry: um dos mais importantes franceses da atualidade | Foto: Reprodução

Vida feliz e intelecto, segundo Luc Ferry                                                       

O caminho proposto pelo autor para o entendimento do que seja viver uma vida feliz atrela-se a um humanismo segmentado em duas idades. A primeira dessas idades, tipicamente iluminista, tem sua importância pelo fato desse movimento, que cultua a razão, ter sido capaz de teorizar conceitos fundamentais como os de liberdade, de perfectibilidade e de progresso.

Luc Ferry aponta para influência do iluminismo em outros campos como é o caso da Ciência Moderna, dos direitos civis, da democracia e da república.

A segunda idade vem para complementar o ideário iluminista. Nessa fase, intensifica-se o que o autor define como sendo “revolução do amor.”

Luc Ferry entende essa revolução como sendo “o nascimento na nossa velha Europa da família moderna, inseparável do fim do casamento arranjado e do nascimento das uniões fundadas na paixão amorosa.”

Estabelecida a síntese dessas duas idades que integram o novo humanismo, proposto por Luc Ferry. Ele propõe uma resposta sistêmica, que não só integra as partes com o todo, como responde ao que ele entende ser a grande visão de mundo para os mortais terem uma vida feliz e boa.

Posto isso, apresentemos, sucintamente, cada uma dessas fases.

Primeira: viver uma vida feliz é aceitar com serenidade a velhice e a morte.

Tanto a velhice como a morte são movimento naturais, que devem ser aceitos com serenidade e sem desespero. Sendo assim, a busca da felicidade é a busca do viver em cada uma das fases da vida, sem buscar, desesperadamente, lutar contra o tempo. No entender do autor, não tem sentido a luta que muitos de nós fazemos para o prolongamento da vida. É muito mais leve “a harmonização de si com a harmonia do universo [cosmo].” Tudo se passa como se fôssemos “um fragmento de um quebra-cabeças”,  que se integra a um todo. Nesse ponto de vista, o ser humano é visto como um fragmento da eternidade. “De s i[ser humano] com a ordem cósmica permite de algum modo ‘salvar-nos’ da morte.”

Segunda: a vida feliz encontra-se no paraíso.

Essa resposta identifica-se com a proposta das grandes religiões. Sendo assim, a harmonização (ou sentido) deixa de ser com o cosmos para se focar com os mandamentos divinos.

Nessa condição, a promessa do paraíso, após a morte, é mais significativa que a tentativa de prolongamento da vida. Luc Ferry entende que “buscar viver por mais tempo nesta terra é não apenas contrário `a natureza das coisas como Deus as criou, mas, é completamente inútil.” A vida feliz não se encontra neste mundo, mas no outro quando estivermos no paraíso.

Terceira: a vida feliz se manifesta na harmonia com a dos outros.

Nesse contexto, a harmonia corresponde à primeira fase do humanismo em cujo contexto o respeito ao outro prevalece como reserva de valor.

Luc Ferry entende que essa harmonia deve se traduzir não só no discurso de boa vontade para com os outros, mas, sobretudo, materializar-se em ações que mensurem a contribuição individual. O altruísmo dessa opção leva em conta o trabalho do indivíduo para gerações futuras. O reconhecimento reside na memória das pessoas ou em monumentos, praças feita para homenagear quem trabalhou, em vida, pelo bem comum.

Quarta: a vida feliz constrói-se a partir da harmonia que o indivíduo tem consigo mesmo.

A quarta opção caracteriza-se pela ação dos chamados desconstrutores da metafísica, da religião e, de certa forma, do racionalismo iluminista. Nesse contexto, enquadram-se pensadores que Luc Ferry chama de “filósofos da suspeita”. E quem sãos eles? Gente de reconhecido valor intelectual — a exemplo de: Nietzsche, Marx, Freud e Heidegger.

Entende o autor que o espírito crítico desses intelectuais deve ser conservado e até elevado. Nesse contexto, desconstruir ilusões é imprescindível para construção de uma vida feliz.

Para isso, é necessário a desalienação do indivíduo que o conduz à liberdade. Nessa perspectiva, é oportuno citar o poder libertador da psicanálise de Freud: a capacidade de autotransformação do indivíduo, a partir do conhecimento que ele tem si mesmo, é uma forma de harmonia que o indivíduo tem consigo mesmo.

Encerro esses breves comentários fazendo minhas as palavras de Luc Ferry no momento em que ele aborda a questão da longevidade: “Viver bem                                                                            aceitar-se tal como se é e ‘desapegar-se’ diante da inevitabilidade da velhice e da morte, certamente não a favor de uma vida mais longa sem levar em conta a ordem natural das coisas”.

Quinta: a visão Sistêmica e a vida feliz

A quinta resposta integra as partes num todo sistêmico dando um sentido de direção. Creio que a melhor maneira de me fazer entender pelo leitor seja comparar o que descrevemos com as figuras de um caleidoscópio que muda suas imagens à medida que giramos o cilindro do equipamento.

O sistema (caleidoscópio) possibilita, do ponto de vista dinâmico, enxergarmos as sucessivas mudanças de imagem que expressam aquilo que nos interessa enxergar: a ponderação de cada situação em torno do que seja felicidade.

Deixemos que o próprio autor nos explique a dinamicidade desse processo sistêmico que parte da situação mais transcendente. Situação em relação à humanidade (o cosmos, Deus) até a espiritualidade laica proposta por Luc Ferry em torno do indivíduo em torno do indivíduo.

“[Partindo do cosmo e sua promessa do paraíso celestial] a realidade  mais  imanente, ou melhor dizendo, ao mais humano (a Nação e a Revolução no primeiro humanismo, o cuidado de si nas filosofias da desconstrução e da felicidade, a revolução do amor  no espiritualismo laico): em todos os casos, a partir  da terceira resposta, começamos a entrar no mundo humano, para além da cosmologia e da teologia — daí o fato de que as últimas respostas já assumam mais ou menos a forma das espiritualidades laicas, de definições da sabedoria e da vida feliz que não são mais cosmológicas ou religiosas.”

Desse modo, revendo uma a uma das respostas, sob o ponto de vista sistêmico, é possível perceber corretamente a lógica das partes inseridas no todo indivisível do sistema.

Escolha seu próprio caminho

A resenha de um livro, de um certo grau de complexidade filosófica, é um desafio para quem, como eu, propôs-se a “esfriar” um texto, cuja mensagem fosse entendida por um público leigo, carente de reflexões mais profundas, que os auxiliem a viver uma vida feliz.

Um intelectual dos mais respeitados da atualidade, Luc Ferry, autor de “A Vida Feliz”, jamais trilharia o caminho fácil da receita de bolo. Caminho, esse, típico de autores menores, que vendem milhares de livros, que se tornam verdadeiros “best-sellers.”

Quanto a isso, o talentoso cantor Caetano Veloso, sabiamente, diz que: “O que vai para as paradas de sucesso são os nossos fracassos”.

Essa reflexão é muito apropriada para se explicar os escritos de Luc Ferry. Se há algo que um intelectual do nível de dele não abre mão é do rigor. Mesmo quando ele se expressa numa linguagem mais comunicativa.

Quem se propõe a mergulhar em “A Vida Feliz” terá que fazer um certo esforço para entender conceitos filosóficos. Aqueles que chegarem ao final da leitura desses escritos sairão da leitura desses com instrumentos que os ajudarão a construir sua própria felicidade.

 Da harmonia no cosmos, na universalidade de Deus até a harmonia consigo mesmo. O autor, um ateu categórico, mostrou-se convicto, na espiritualidade laica, em cujo contexto prevalece o eu típico das sociedades modernas.

Assim com deus de Espinosa enxerga o criador na natureza desconsiderando a fé religiosa, assim com Luc Ferry mostra-se convicto na espiritualidade, sem o criador, muitos têm suas preferências em busca do que seja uma vida feliz. A felicidade, proposta pelo autor, é construída sem a fé, que nos promete o paraíso.  Luc Ferry e sua espiritualidade laica entende que uma vida feliz pode ser mesmo construída na terra. Quanto a mim, oriundo de um lar cristão, prefiro trilhar a fé no Criador.

Se me permitem um conselho quanto a importância desses escritos para a construção da sua felicidade, dou-lhe este: leia o livro e escolha o melhor caminho que você julgue mais apropriado para a construção da sua felicidade.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas energia, economia, política e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.

Primeira parte da resenha do livro de Luc Ferry

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