Encontros de vida e morte em Pedro Páramo, de Juan Rulfo

Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

A Netflix investiu na produção de uma minissérie e de um filme baseados em obras clássicas da literatura latino-americana, respectivamente “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel García Márquez, e “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo. Elas têm em comum pertencerem ao universo do chamado Realismo Mágico, sendo que Márquez afirmou certa vez que “a leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”.

“Pedro Páramo” (José Olympio, 176 páginas, tradução de Eric Nepomuceno) necessita de uma leitura atenta, ou até de uma segunda leitura, para se retirar dele todo o entendimento, toda beleza e toda reflexão que sua complexa e rica narrativa tem a oferecer. Não é um livro fácil, tampouco indicado para todos, primeiro porque nele se confundem as vozes de diversos narradores que contam fragmentos de diversas histórias, segundo porque o tempo é indefinido, podemos acreditar que estamos diante de saltos temporais, de lembranças, ou pode ser que a cada dia a história se repita nos espaços em que se desenrolam essas histórias. Terceiro, porque esses espaços podem ser um só.

Vários livros num romance conciso e contido

Tais elementos, somados, tornam-se desafiadores, mas a surpresa da obra, lançada em 1957, sua novidade, foi justamente não ter decifrado todas as dúvidas ao leitor, foi deixá-lo em suspenso do mesmo modo em que seus personagens estão. Temos que construir a narrativa com as pistas depositadas pelo autor de forma magistral, como se estivéssemos diante de um quebra-cabeças que não importa se lhe falte alguma peça, ainda será admirável em sua incompletude.

Juan Rulfo: um dos mais importantes escritores do México | Foto: Reprodução

Para que um livro se torne um clássico como se tornou “Pedro Páramo”, a originalidade da forma, a universalidade dos temas e uma atualidade que persiste através das décadas são elementos necessários. Conforme nos diz o tradutor e prefaciador, Eric Nepomuceno, “há vários livros dentro deste romance conciso e contido. Uma história de amor desmesurado, desesperado e belo; também uma história de injustiça; outra, de vingança; e mais um painel depurado e amargo da realidade social nos campos do México de uma época imprecisa e, por isso mesmo, permanente”.

O enredo parte da procura de Juan Preciado por seu pai, após uma promessa feita à mãe. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia um tal de Pedro Páramo”. Após a morte da mãe, Juan pega a estrada para Comala, que nas lembranças da mulher era bonita e alegre. No caminho, ele encontra outro viajante que lhe dá poucas informações sobre Pedro Páramo, que diz ser “o rancor em pessoa” e dono de uma enorme quantidade de terras. Ao chegar à cidade, entretanto, Preciado se depara com um cenário bem diferente, um lugar abandonado, feio, de calor sufocante, na qual apenas poucas pessoas ainda vivem. E mesmo essas pessoas talvez não estejam mesmo vivas.

É muito inteligente a forma como o autor vai conduzindo a trama, de forma a gerar essa dúvida sobre se estamos diante de fantasmas ou de vivos, e de ir cortando as narrativas, interpondo entre elas outras vozes, que não sabemos se estão contando de outros tempos ou se os estão eternamente revivendo.

A dúvida, colocada como elemento narrativo para o leitor, se desenha nas minúcias do texto, em jogos de palavras como no trecho: “Tornou a afunda-se entre a sepultura de seus lençóis” e em frases que parecem aleatórias, mas funcionam como pequenas pistas para desvendarmos o texto, como no trecho: “O caminho subia e descia: “Sobe ou desce conforme se vai ou se vem. Para quem vai, sobe; para quem vem, desce.”

E neste outro trecho mais à frente: “Depois de varar os montes, descemos cada vez mais. Havíamos deixado o ar quente lá de cima e fomos nos afundando no puro calor sem ar. Tudo parecia estar à espera de alguma coisa.” As vozes, as reminiscências, os tempos passado e presente que se misturam, e os componentes espaciais como a neblina, a fumaça, o calor extremo por fim se costuram montando um panorama mais amplo dos personagens e seus dramas, configurando também um retrato que, embora fictício, fala muito sobre o mundo de violências próprio do coronelismo latino-americano.

“Pedro Páramo” é aquele homem que, embora não pareça ter grandes talentos, não tem escrúpulos para usar a lei do mais forte a seu favor e assim tornar-se um grande dominador. Mas ele não se faz sozinho, por trás dele está toda uma estrutura violenta, que tem na igreja, representada por Padre Rentería, um aliado omisso. Aliás, a questão de como a Igreja utiliza a noção do pecado, da superstição e do poderio da fé para dominar os mais simples ao mesmo tempo em que fecha os olhos aos crimes dos poderosos também é um dos temas, como nos mostra o trecho do diálogo entre dois religiosos: “Quero acreditar que todos continuam sendo crentes; mas não é você quem mantém a sua fé; eles mantêm a fé por superstição e por medo”.

Obcecado pelo corte, pelo polimento final

As personagens femininas também ocupam um lugar de destaque, sendo elas importantes narradoras das tragédias femininas, pois todas são, de diferentes formas, vítimas do mundo machista, do qual não podem fugir.

Uma das cenas mais representativas do Realismo Mágico é aquela na qual enquanto ao mesmo tempo em que na fazenda de Pedro Páramo acontece a morte da única mulher que ele amou, na cidade os sinos da igreja começam a badalar até deixar “todos surdos” e então começa a chegar gente de todos os lados até formar-se uma grande festa: “começou a chegar gente de outras paragens, atraída pelo repicar constante.

Arnaldo Orfila Reynal, Juan Rulfo, Marie José e Octavio Paz, em 1967 | Foto: Reprodução

De Contla vinham em peregrinação. E até de mais longe ainda. Sabe-se lá de onde, o fato é que chegou um circo, trazendo acrobatas e trapezistas. Músicos. Primeiro se aproximavam como se fossem curiosos, e num instante já tinham se transformado em vizinhos, de maneira que houve até serenata. E assim, pouco a pouco a coisa se transformou em festa. Comala se formigou de gente, de festança e de ruídos, igual que nos dias da quermesse, quando dava trabalho dar um passo pelo povoado”. Aqui podemos perceber realmente a influência em García Márquez, pois em Macondo, a cidade mítica de “Cem Anos de Solidão” há também a presença do circo e de festas que acabam sempre com uma boa dose de loucura.

Talvez algo mais impressionante do que a própria construção do texto de Pedro Páramo seja a figura de seu autor, Juan Rulfo. Afinal, como alguém que não era um intelectual de formação e que teve empregos simples, como o de vendedor de uma fábrica de pneus, pôde desenvolver “um estilo absolutamente próprio”, e criar tal obra-prima? Eric Nepomuceno nos dá uma pista: Rulfo seria um ávido leitor da literatura russa do século XIX e, realmente, há algo em sua narrativa que nos remete ao ótimo conto “Bobok” (1873), de Dostoiévski.

Rulfo, que além de “Pedro Páramo” só publicou mais uma coletânea de contos, “Chão em Chamas”, possuía um refinado senso de criação artística, sendo muito exigente com o que escrevia. Ainda segundo o prefaciador, Rulfo era “um obcecado pelo corte, pelo polimento final, pelo secar de um texto até reduzi-lo à mais rigorosa exatidão”.

Talvez o seu perfeccionismo o tenha impedido de gerar outros frutos, mas não há consenso sobre as causas de seu afastamento da escrita. Adepto da vida solitária, teria dito enigmaticamente uma vez: “Eu tinha o voo, mas cortaram minhas asas. Perdi”.

O certo é que a obra pouco volumosa de Rulfo demonstra que a literatura não precisa de muitas páginas para tornar-se grandiosa.

Simone Athayde é escritora e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.

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