Líder indígena morto em MG vivia conflito com PMs e vigias da Vale, diz família

O cacique Merong Kamakã Mongoió, encontrado morto esta semana em Brumadinho (MG), estaria sendo alvo de perseguição de policiais militares e de seguranças a serviço da mineradora Vale, segundo relatos de amigos, familiares e do próprio cacique, que divulgava as ameaças em suas redes sociais.

Na segunda-feira (4), o corpo de Merong foi achado pela mãe no barraco de madeira em que morava. As polícias Civil e Federal apuram a causa da morte. Uma das linhas de investigação é a de suicídio — Merong estava com uma corda no pescoço, pendurado em uma ripa de madeira que sustenta o telhado da casa.

A família, contudo, descarta essa possibilidade e acredita em assassinato. “Ele estava sofrendo opressão e ameaças”, afirma a mãe do cacique, em conversa com a Repórter Brasil. Segundo ela, o motivo seria a Retomada Indígena Kamakã Mongoió, uma ocupação liderada por Merong. Antes da entrada dos indígenas, o local foi comprado pela Vale, em dezembro de 2020, com o objetivo de transformá-lo em uma área de compensação ambiental.

Retrato do cacique Merong Kamakã Mongoió, encontrado morto em Brumadinho (MG) (Foto: Alenice Baeta / Cedefes / Divulgação)

Em nota emitida pela assessoria de imprensa, a Vale negou ameaças. “Jamais houve, por parte da Vale, qualquer tipo de ameaça ou violência aos indígenas, uma vez que a empresa repudia esse tipo de ação”. Leia a nota na íntegra. Procurada, a Polícia Militar de Minas Gerais não quis se posicionar.

A ocupação fica em Córrego das Areias, comunidade de Brumadinho vizinha ao Córrego do Feijão, onde uma barragem da Vale se rompeu em janeiro de 2019, soterrando e matando 272 pessoas, entre trabalhadores e moradores.

Dois anos após o desastre, o cacique Merong liderou a ocupação e foi morar no local com sua mãe e uma sobrinha. Dias depois chegaram outras famílias, que ocuparam casas abandonadas, construíram outras moradias com madeira e palha e iniciaram o plantio de alimentos, como mandioca e batata doce, além de hortaliças. O processo é chamado pelos indígenas de “retomada”.

A mãe de Merong afirmou à Repórter Brasil que, desde a ocupação do território, drones sobrevoavam as moradias e policiais diziam que eles teriam que sair do local, pelo fato de o terreno pertencer à mineradora.

“Frequentemente, estamos tendo a presença da PM, juntamente com a segurança da Vale, fazendo pressão psicológica pra gente se retirar da nossa aldeia”, disse o próprio Merong, em março de 2022, ao jornal Brasil de Fato.

O Ministério dos Povos Indígenas apresentou uma notícia-crime à Polícia Federal para investigar a morte, considerando a hipótese de “crime cometido em detrimento de direitos indígenas coletivos”. Para a pasta, a atuação de Merong o colocava em rota de colisão com grandes empresas locais.

Segundo a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), a perícia sobre a morte deve passar por várias avaliações, já que a família suspeita de assassinato.

Tentativa de barrar o sepultamento

Merong foi enterrado na madrugada de quarta-feira no mesmo local da retomada, seguindo a tradição indígena. Contudo, uma decisão judicial tentou impedir o sepultamento na área.

Na noite de terça-feira, a juíza federal Geneviève Grossi Orsi acatou pedido da Vale e deferiu uma liminar para que o sepultamento não acontecesse dentro do território. A juíza determinou também a ação da Polícia Federal e da Polícia Militar para impedir o enterro.

O MPF (Ministério Público Federal) apresentou embargos de declaração (pedido de esclarecimento), afirmando que a liminar teria causado “perplexidade e indignação”. No pedido, o procurador Hélder Magno da Silva questionou qual seria a incompatibilidade do sepultamento no local.

Uma oficial de justiça chegou ao território da retomada na manhã de quarta-feira para notificar da decisão judicial. Acompanhada de policiais federais e militares, foi informada que o corpo havia sido sepultado na madrugada, antes da notificação. Os indígenas cavaram diferentes covas na área e não sinalizaram o local da sepultura, pois temem que a Vale entre com um pedido judicial para exumação e retirada do corpo.

Por meio de sua assessoria, a Vale informou que não vai ingressar com ação para pedir a exumação do corpo.

O clima na aldeia após o sepultamento era de revolta com a situação. “A Vale enterra pessoas vivas [por causa do rompimento da barragem de Brumadinho], mas quer impedir que a gente enterre os nossos”, era a frase mais ouvida entre indígenas e apoiadores que estavam no local na manhã de quarta-feira (6).

No próximo dia 19, a família de Merong, os advogados da Vale, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o MPF participarão de uma audiência para tratar da ação de reintegração de posse ajuizada pela mineradora. Além de Merong, são réus na ação a mãe dele, Katoã Kamakã, e uma criança, a sobrinha dele, Kenoara Kamakã, de nove anos.

Durante o ritual do sepultamento, um dos presentes disse: “Você está sendo plantado nesse território, e que todos venham respeitar sua decisão e a decisão dessa comunidade”.

História de ativismo

Nos últimos anos, o cacique Merong despontou como liderança indígena, principalmente na defesa de indígenas expulsos de suas terras, em zonas urbas. Antes de ocupar a área da Vale, em Minas Gerais, ele participou de outras ocupações e retomadas no Rio Grande do Sul.

A retomada, para muitos povos, é a reafirmação da identidade étnica negada devido à pressão e à violência da colonização. “As retomadas são um sopro de vida para os povos indígenas”, disse Merong, em vídeo gravado há um ano.

Em outro vídeo, o cacique explicou que o povo dele, os Kamakã-Mongoió, migrou do sul da Bahia e passou a viver em favelas e nas periferias das grandes cidades, como Belo Horizonte, porque foram “empurrados”.

A fala de Merong foi gravada durante uma mesa de negociação, após a Vale ajuizar uma ação de reintegração de posse contra os indígenas. O cacique foi enfático ao dizer que não deixaria o local, mesmo com a pressão da maior mineradora do Brasil: “Já falei para polícia, para o Ministério Público e para o desembargador. Meu povo vira adubo neste território, mas daqui eu não saio”.

Merong foi uma das principais vozes da Ocupação Lanceiros Negros, que ocupou um prédio vazio no centro de Porto Alegre (RS), entre novembro de 2015 e julho de 2017, quando foi encerrada por ação da Brigada Militar.

O cacique foi casado com uma índigena do povo Guarani, de Getúlio Vargas, município a 340 km da capital gaúcha, e viveu com a ex-mulher e os dois filhos no interior do Rio Grande Sul, quando viajava com frequência a Porto Alegre para vender artesanato.

“Sempre que eu vinha, eu dormia na rua ou dormia na rodoviária, porque eu não tinha onde ficar. Depois da ocupação Lanceiros Negros, graças ao nosso Pai Tupã, eu consigo trabalhar com dignidade e não falta alimento na mesa para minha família”, disse à época ao jornal Sul 21.

Merong também se somou aos Guarani em outras ações de retomada no Rio Grande do Sul, como a Xokleng Konglui, de São Francisco de Paula, e a Guarani Mbya, de Maquiné. Em 2020, foi candidato a vereador em Porto Alegre, pela Unidade Popular (UP), recebeu 336 votos e não foi eleito.

Nascido em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a sua origem é o sul da Bahia, terra natal da mãe e dos avós. A mãe deixou a Bahia para acompanhar o irmão em um tratamento de saúde na capital mineira, conseguiu alguns trabalhos e seguiu morando em Minas Gerais.

“Vi ele crescendo. Um menino forte, lindo, estudioso, que tinha um orgulho imenso de ser indígena”, lembra Alenice Baeta, da ONG Cedefes. A organização participou da articulação dos indígenas que vivem nas cidades, fora das aldeias, em busca de direitos.

Desde criança, Merong acompanhava a mãe nas reuniões e protestos dos indígenas urbanos. “Sem sucesso, depois de anos de tentativa de negociação para conseguirem um território, eles decidiram iniciar a retomada”, conta Alenice.

O indigenista e educador social Luciano Marcos da Silva também lembra de Merong ainda adolescente, quando passou a se engajar nas lutas por direito e na reconquista de territórios indígenas. Para ele, a ocupação de uma fazenda da Vale foi uma maneira encontrada por Merong de “frear a destruição em curso da natureza”.

O irmão de Merong, Rogério, destaca o orgulho que ele sentia de ser indígena. Sempre que saía de casa, o irmão dizia para vestir o cocar e pintar o rosto. “Ele era natureza, era vida, era família e muito amigo. Às vezes eu perguntava qual era o objetivo dele. E ele sempre respondia: defender meu povo, defender a natureza, defender a vida”, lembra Rogério.

Desastre de Brumadinho

Na quarta, enquanto indígenas e apoiadores manifestavam a revolta, o Tribunal Regional Federal da 6a. Região (TRF-6), o mesmo que concedeu liminar para impedir o sepultamento do cacique Merong, votou favoravelmente ao pedido de habeas corpus do ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman.

O executivo é apontado pelo Ministério Público Federal como um dos responsáveis pelas mortes. Segundo acusação do MPF, apesar de supostamente conhecer os riscos de ruptura da barragem, ele não teria adotado as medidas necessárias para prevenir o desastre.

O desembargador Pedro Felipe Santos votou pelo trancamento da ação penal, somando-se ao voto do relator, desembargador Boson Gambogi. Ainda resta o voto do desembargador Klaus Kuschel, que pode ser proferido até 12 de fevereiro. Contudo, a segunda turma do TRF-6 formou maioria favorável ao pedido do ex-presidente da Vale. Os desembargadores entenderam que, até o momento, o MPF não apresentou indícios mínimos de envolvimento do ex-presidente da Vale no rompimento da Barragem.

Diversas organizações publicaram uma carta de repúdio com o título: Justiça que nega direito de sepultamento a cacique Kamakã é a mesma que deixa Vale impune. Entre os signatários estão entidades como Cimi (Conselho Indigenista Missionário), CPT (Comissão Pastoral da Terra), CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens). Procurado, o TRF-6 não se posicionou a respeito das críticas das entidades.

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