Livro de Michel Lago e Thomás Zicman mostra o caráter autoritário do populismo brasileiro

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

O populismo é frequentemente visto como o “patinho feio” da política brasileira. Essa metáfora não é gratuita: o populismo estabelece um canal direto com um conceito difuso — o povo —, conferindo-lhe um caráter nebuloso e, muitas vezes, manipulável. Por isso, sua prática tende a enfraquecer as instituições democráticas, corroendo os princípios do debate público e do pluralismo.

O livro “Do Que Falamos Quando Falamos de Populismo” (Companhia das Letras, 160 páginas), Miguel Lago e Thomás Zicman de Barros, tem sido elogiado pela crítica especializada por abordar essa temática de maneira profunda e crítica. Os autores analisam como o populismo tem sido empregado na política contemporânea, investigando suas características, consequências e impacto sobre a democracia.

Antes de avançarmos na avaliação da obra, vale refletir sobre o conceito de populismo. O ex-senador gaúcho e sociólogo Alberto Pasqualini (1901-1960), ideólogo do trabalhismo no Brasil, alertava: “Tenho a impressão de que o termo populismo está sendo empregado como um rótulo político pejorativo. Atrás dele, enxergam adversários políticos que se pretende combater, não propriamente ideias com as quais se está em oposição”. Essa definição ressalta a ambiguidade do termo e sua instrumentalização política, algo que persiste até hoje.

O ponto central desta resenha é destacar que o populismo não apenas carece de um conteúdo ideológico bem definido, mas também se configura como um verdadeiro deserto de ideias. Sua principal característica é a capacidade de driblar a crítica racional, substituindo o embate de argumentos pelo apelo emocional e pela personalização do poder. Os líderes populistas se apresentam como os únicos representantes legítimos do povo, desqualificando qualquer contestação como expressão de uma elite corrupta ou de inimigos do bem comum.

Getúlio Vargas, Lula da Silva e Jair Bolsonaro: três matizes do populismo brasileiro | Fotos: Jornal Opção, divulgação e reprodução

Essa prática reforça o caráter autoritário do populismo, pois desestimula o diálogo democrático e promove uma lógica de confronto constante. Em vez de fortalecer a participação cidadã, ele constrói uma relação de dependência entre líder e massas, tornando as instituições secundárias e vulneráveis ao personalismo. Como bem demonstra Do que falamos quando falamos de Populismo, essa estratégia pode ter consequências graves para a estabilidade democrática.

Ao longo do livro, os autores analisam casos concretos e exemplificam como o populismo, ao se apresentar como um discurso de ruptura com o status quo, muitas vezes reforça estruturas autoritárias e aprofunda desigualdades. A obra se torna, assim, uma leitura fundamental para compreender os desafios que esse fenômeno impõe à política contemporânea.

Contribuição de Hélio Jaguaribe e Celso Lafer

Hélio Jaguaribe (1923-2018)e Celso Lafer são dois intelectuais brasileiros cujas reflexões são fundamentais para a compreensão do populismo, especialmente no contexto da política latino-americana.

Jaguaribe enfatizava a distinção entre massa e classe social para entender o populismo. Ele via esse fenômeno como característico de sociedades em modernização, onde a mobilização política precede a institucionalização democrática. Para ele, a presença de líderes carismáticos e a forte relação direta entre governantes e governados poderiam gerar instabilidades, ao mesmo tempo que incluíam setores antes marginalizados.

Já Lafer abordava o populismo sob a ótica do Estado de Direito e da institucionalidade democrática. Ele alertava para os riscos da concentração excessiva de poder nas mãos de líderes populistas, o que compromete a segurança jurídica e a previsibilidade política. Além disso, refletia sobre os desafios que o populismo impõe à diplomacia e às relações internacionais, especialmente no que diz respeito à imagem do Brasil e à segurança dos investimentos.

As visões de Jaguaribe e Lafer se complementam: enquanto um analisa o populismo do ponto de vista da modernização política e da inclusão social, o outro enfatiza os riscos institucionais e democráticos que ele pode representar.

Evolução do populismo no mundo ocidental

Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas: populistas da Argentina e do Brasil | Fotos: Reproduções

O populismo teve origem na Rússia, como uma insurreição dos intelectuais contra o poder dos czares. Thomás Zicman e Miguel Lago destacam que “a libertação do país se daria pelas mãos dos camponeses”. Na prática, esse movimento representava a revolta de pequenos e médios agricultores, prejudicados pelo processo de modernização.

Nos Estados Unidos, cerca de três décadas depois, o populismo também se estruturou em defesa dos pequenos e médios agricultores, excluídos da dinâmica capitalista. Segundo os autores, “enquanto as cidades prosperavam, esses produtores rurais estavam endividados e se sentiam deixados para trás”. Essa lógica de exclusão e ressentimento ressurge no sucesso eleitoral de Donald Trump, cujo discurso mobilizou vítimas da globalização, especialmente em regiões como Detroit, outrora um polo da indústria automobilística.

Na França, o populismo manifestou-se de forma peculiar através da arte. O “Prêmio Romance Populista” premiava anualmente obras que retratavam os marginalizados da sociedade, mostrando como esse fenômeno pode assumir diferentes formas conforme o contexto regional.

Já na Argentina, o populismo consolidou-se com o peronismo, movimento liderado por Juan Domingo Perón (1896-1974), que mesclava um discurso de inclusão social com ampliação dos direitos trabalhistas. No Brasil, teve grande destaque durante a Era (ou Eras) Vargas, com forte apelo à classe trabalhadora urbana e a construção de uma identidade nacional baseada em leis trabalhistas e proteção social.

Lula e Bolsonaro: para onde vai o populismo?

O populismo estrutura-se a partir da contraposição entre um “povo virtuoso” e uma “elite corrupta”. No Brasil contemporâneo, Lula e Bolsonaro exemplificam essa lógica, mas com nuances distintas.

Lula se apresenta como o defensor dos trabalhadores, contrapondo-se às elites econômicas e midiáticas. Bolsonaro, por sua vez, constrói um “povo” baseado em valores morais e tradicionalistas, combatendo globalistas, intelectuais e progressistas. Ambos adotam discursos polarizadores e constroem inimigos para reforçar sua base de apoio.

O resultado é um Brasil cindido, onde o populismo, longe de ser passageiro, tornou-se o motor da política nacional. O desafio é romper com essa lógica de antagonismo e fortalecer as instituições democráticas, promovendo um ambiente político mais equilibrado.

Goiás: clientelismo e destruição do Estado-empresário

Ao longo desta resenha, analisamos como o populismo tem sido um fenômeno recorrente na política brasileira e mundial, adaptando-se a diferentes contextos e exercendo influência tanto na mobilização política quanto na gestão do Estado. Como argumentam Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago em “Do Que Falamos Quando Falamos de Populismo”, esse fenômeno não se limita a uma ideologia específica, mas se manifesta na forma de uma relação direta entre um líder carismático e um povo difuso, frequentemente em detrimento das instituições democráticas.

Nesse sentido, é pertinente examinar o caso de Goiás, onde o populismo se consolidou de maneira particular, especialmente a partir das eleições diretas para governador nos anos 1980. O Estado vivenciou um ciclo de populismo clientelista que transformou a administração pública em um instrumento de favorecimento para grupos políticos e empresariais. Esse padrão resultou na fragilização da estrutura estatal, promovendo privatizações desastrosas e uma gestão patrimonialista que comprometeu a qualidade dos serviços públicos.

Ronaldo Caiado, governador de Goiás, não é populista | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

A chegada de Ronaldo Caiado ao governo representou uma tentativa de romper com esse modelo de governança, afastando-se do populismo predatório e buscando restaurar a ética na gestão pública. No entanto, como ressaltam os autores, o populismo é um fenômeno que se adapta às circunstâncias políticas e sociais, prometendo certezas diante das incertezas contemporâneas. Assim, a superação desse modelo exige mudanças estruturais na cultura política do Estado, promovendo maior transparência e compromisso com o interesse público.

A experiência histórica de Goiás exemplifica como o populismo pode minar as instituições democráticas e comprometer a gestão racional do Estado. Como observado ao longo desta resenha, o populismo pode assumir diversas facetas, desde a inclusão social atrelada a um projeto nacional de desenvolvimento, como no caso de Getúlio Vargas, até um modelo predatório, que sacrifica a eficiência administrativa em prol da perpetuação no poder, como ocorreu em Goiás e em muitos outras unidades da federação. Dessa forma, compreender esse fenômeno torna-se essencial para formular estratégias que fortaleçam a democracia e garantam uma governança mais responsável e eficaz.

A reflexão sobre a história recente do Estado também revela o impacto do populismo na administração de empresas estatais. Um exemplo emblemático é a Companhia Energética de Goiás (Celg), que, entre 1956 e 1980, teve um modelo de gestão baseado na racionalidade e na eficiência técnica. No entanto, após esse período, a empresa tornou-se refém de um populismo que enfraqueceu sua estrutura administrativa, priorizando interesses políticos em detrimento da gestão profissional.

Esse ciclo resultou em uma degradação progressiva da qualidade dos serviços prestados, culminando na privatização da empresa em condições adversas. Essa experiência demonstra que, quando utilizado como ferramenta de governança, o populismo pode levar à destruição de instituições essenciais para o desenvolvimento regional.

Diante desse cenário, a leitura da obra de Zicman de Barros e Lago oferece um referencial teórico valioso para analisar a dinâmica do populismo e suas consequências. Para os interessados em política como ciência, a compreensão desses padrões é essencial para promover um debate mais qualificado sobre o futuro da democracia brasileira.

Trechos do livro sobre o populismo

1

“Ao estudarmos o uso do termo “populismo econômico” na imprensa ,logo perceberemos que essa expressão também foi usada para descrever políticos dos mais diversos na história do país. Na verdade, foram poucos os poupados dessa acusação. Os ataques de Brizola a Sarney se deviam às insustentáveis políticas econômicas[o uso constante dessa palavra desprovida de ideologia foi amplamente usada para desconsiderar políticos, seja de direita, seja de esquerda].

2

A elite que Bolsonaro se propõe a combater é essencialmente a administrativa-cívica. Não existe nenhuma oposição às burguesias financeira, industrial, eclesiástica, a cívica e a intelectual [ os demônios bolsonaristas diferem dos demônios lulistas]

3

Populismo é um fenômeno de massa. Para Marx, massa é diferente de classe. Classes sociais são orgânicas e organizadas, têm interesses determinados, uma identidade clara. As massas, pelo contrário, são amorfas — um amontoado de gente, sem vínculos

Orgânicos e organizadas, têm interesses determinados, uma identidade clara.”

[O populismo é um chamado de seus líderes as massas e não as classes sociais. Por essa razão, os autores procuram definir, objetivamente, a separação entre dois conceitos que parecem iguais ,mas são diferentes]

Professores em Paris e nos Estados Unidos

Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago: experts em populismo | Fotos: Divulgação

Thomás Zicman de Barros, professor e pesquisador associado do Centro de Pesquisas Políticas da Sciences Po em Paris. Doutor em teoria política pela mesma instituição. Dentre outras coisas, ele é diretor do Grupo de Especialistas de Populismo da Political S Association de Londres.

Miguel Lago é, dentre outras coisas, cientista político e leciona atualmente na Universidade de Columbia e na Sciences Po de Paris.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e crítico literário. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.

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