De Jango a Castelo Branco: o caminho da República, ditadura e redemocratização no Brasil

“Atenção, atenção, todas as emissoras de televisão em cadeia com a Agência Nacional”, anunciava o mestre de cerimônia em 13 de março de 1964, diretamente da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. “A palavra de sua excelência, o presidente da República João Goulart, acompanhado da sua excelentíssima esposa, a senhora Maria Teresa Goulart, a primeira-dama do Brasil”. O que viria depois daquela sexta-feira 13 de março em que Jango, inflamado pelas crises políticas e o plano das reformas de base e estrutura, que envolvia mexer na Constituição de 37 e principalmente pela reforma agrária e bancária, marcaria para sempre a história política brasileira.

Jango discursa na Central do Brasil em 13 de março de 1964 | Foto: Biblioteca Nacional

Na gravação da Agência Nacional de Justiça e Ministérios Interiores, os cerca de 200 mil trabalhadores que ocupavam a praça ouviam o presidente dizer que em 48h enviaria ao Congresso Nacional as propostas de reformas. Jango tentava mostrar apoio popular, após assumir o governo do populista Jânio Quadros, o do jingle, da vassourinha. Marcou comícios para Belo Horizonte (21 de abril, Dia de Tiradentes) e em São Paulo (1º de maio, Dia do Trabalhador). “O nosso lema, trabalhadores, é progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”, exclamou Jango em um mais de 65 minutos do discurso.

Ainda ontem eu afirmava no Arsenal de Marinha, envolvido pelo calor dos trabalhadores de lá, que a democracia jamais poderia ser ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as praças que são do povo – João Goulart em discurso na Central do Brasil, no Rio de Janeiro fonte: Documentos

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Principais anúncios de Jango no comício:

  • Decreto da reforma agrária – Desapropriação de terras improdutivas próximas a rodovias e açudes federais.
  • Decreto da encampação das refinarias privadas de petróleo – Nacionalização de refinarias ainda não controladas pela Petrobras.
  • Defesa das Reformas de Base – Discurso contra “forças reacionárias” que impediam a modernização do país.
  • Críticas aos opositores – Jango atacou setores da elite, imprensa conservadora e militares insatisfeitos.

Goulart foi acompanhado de perto por militares e, segundo o biógrafo Jorge Ferreira no livro João Goulart: Uma biografia, havia temores de disparos contra o palco ou “que bombas explodissem o palanque”. Jango defendeu a representação  de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações ideológicas ou religiosas. Discursou contra a liquidação da Petrobrás, monopólios nacionais e internacionais e “democracia que possa lutar contra o povo”. Citou Getúlio Vargas como um homem que se sacrificou pelo Brasil.

Presidente João Goulart acompanhado da primeira-dama e de um militar na Central do Brasil | Foto: Reprodução

As propostas de Jango ascendiam os trabalhadores e o temor comunista, nas forças militares brasileiras e americanas, que temiam um efervescer comunista em mais um país da América Latina, à exemplo de Cuba. Ao citar o tão temido comunismo que rondava o imaginário da elite política, já desconsagrado pela esquerda e direita no país, diz que a ameaça à democracia não era a confraternização do povo na rua.

Maria Tereza e João Goulart, no Comício da Central do Brasil | Foto: Arquivo/Agência O Globo

O presidente dizia que a ameaça à democracia era enganar o povo e “explorar os seus sentimentos cristãos, na mistificação de uma indústria do anticomunismo, insurgindo o povo até contra os grandes e luminosos ensinamento dos últimos Papas”. Menos de uma semana depois do comício ao lado do deputado Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, um dos principais articuladores da sua posse após a renúncia de Quadros, Miguel Arraes, de Pernambuco, Luís Carlos Prestes e ministros, as manifestações conservadoras da Marcha para Jesus sai às ruas contra as reformas.

Do comício de Jango à primeira Marcha foram seis dias | Foto: Biblíoteca Nacional

O discurso de Jango fez com que o principal aliado, do Partido Social Democrático (PSD), retirasse apoio ao governo três dias após aquela sexta-feira, 13. Tancredo Neves, que havia sido um dos principais articuladores da solução parlamentarista para garantir a posse de Jango em 1961, percebeu que o governo caminhava para um confronto com as Forças Armadas e setores conservadores. Ele rompeu publicamente com Jango e passou a se aproximar dos opositores do governo, contribuindo para o isolamento político do presidente.

O PSD, que era um partido de centro e base do governo, também passou a se dividir internamente, e esse afastamento contribuiu para o enfraquecimento de Jango nos momentos finais antes do golpe de 31 de março de 1964.

O Comício da Central do Brasil foi visto pelos militares e elites conservadoras como um “passo definitivo” rumo à radicalização do governo. Em seis dias, os movimentos conservadores, empresarial, industrial e dos setores do agronegócio deram corpo à marcha em resposta aos atos de Jango na Central do Brasil. Em 19 de março, dia da Padroeira da Família, cerca de 500 mil pessoas saíram da Praça da República em direção a Praça da Sé, em contrariedade à Goulart. Não se passaria dali, nem 23 dias e a cadeira de presidente da República seria declarada vaga pelo então presidente do Senado e do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade.

Deposição e posse do novo presidente

Em 1º de abril de 1964, Auro de Moura Andrade, na presença de 152 deputados e 26 senadores, foi convocada “a fim de que esta presidência pudesse fazer uma comunicação e uma declaração que passa a enunciar”. Entretanto, Andrade foi interrompido por Bocaiuva Cunha (PDT-RJ), que anunciava: “O governador do estado do Rio de Janeiro foi hoje presos oficiais da Marinha”.

Sessão plenária do Congresso Nacional em 1º de abril de 1964 | Foto: Arquivo Câmara dos Deputados

A sessão, que duraria até a madrugada de 2 de abril, foi encerrada aos gritos e pedidos de atenção por parte de Andrade até que a calma voltasse ao plenária. Havia sobre a Mesa Diretora um ofício do chefe da Casa Civil do governo de Goulart, Darci Ribeiro, lido pelo primeiro secretário da mesa que dizia: “O senhor presidente da República incumbiu-me de comunicar a Vossa Excelência que, em virtude dos acontecimentos nacionais das últimas horas, para preservar desbulho criminoso o mandato que o povo lhe conferiu, investindo na chefia do poder executivo, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul”.

Ouça a sessão que tornou vaga a presidência da República:

Goulart foi se encontrar com as tropas militares legalistas, ainda com exercício pleno dos poderes constitucionais ao lado do seu ministério, escreveu Darci Ribeiro.

No Congresso, ao reabrir a sessão plenária, Aldo finalmente pronunciou: “Comunico ao Congresso Nacional que o senhor João Goulart deixou por força dos notórios acontecimentos de que a nação é conhecedora, o governo da República”.

Jornal do Brasil: 1 de abril de 1964 | Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

A vacância é suprida pelo deputado Paschoal Ranieri Mazzilli que ocupou a presidência em duas ocasiões. Quando Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961 e o vice, Jango, estava em viagem oficial à China, Mazzilli foi quem sentou-se à mesa. Novamente, mas dessa vez em 64, Mazzilli voltaria a ocupar o cargo, em breve mandato meramente institucional, já que o poder de fato, seria exercido pelo “Comando Supremo da Revolução”, formado pelos três comandantes das Forças Armadas.

Capa do Jornal do Brasil um dia após a vacância da presidência da República | Foto: Hermeteca Nacional

Ranieri Mazzilli elegeu-se deputado pela primeira vez em 1950, pelo PSD. O partido fez parte da coalizão que governou o país nos mandatos de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubistchek e do próprio Jango. Com o acirramento da tensão política, os principais nomes do PSD se somaram à UDN e passaram a fazer oposição ferrenha ao presidente.

1ª medida formal: cassação de mandatos e restrição às liberdades

Recorte de jornal no dia da assinatura do AI-1

No dia 11, numa eleição de candidato único, o Congresso Nacional elege para a Presidência da República o marechal Castelo Branco. O Vice-Presidente eleito é José Maria Alkmin, Deputado Federal (PSD) e Secretário de Finanças de Minas Gerais. Castelo Branco assumiu o poder em 15 de abril e prorrogou seu mandato até 1967. No dia seguinte, é divulgada a primeira lista dos atingidos pelo AI-1, à qual seguiriam várias outras nos dias e meses seguintes, cerca de 3.500 pessoas entre deputados federais e estaduais, oficiais das Forças Armadas, lideranças políticas, funcionários públicos e dirigentes sindicais.

Deputados goianos que assistiram a posse de Castelo Branco:

Lista de presença dos deputados goianos na sessão de Posse de Castelo Branco | Foto: Arquivo Câmara

Sua primeira medida formal foi o ato institucional nº 1, que determinou que o próximo presidente seria escolhido através do voto indireto do Congresso Nacional, sob a tutela dos militares no poder. Além disso, o AI-1 permitiu que o Castelo Branco cassasse mandato de parlamentares, governadores e prefeitos considerados de oposição ao novo regime que se impusera nos Estados Unidos do Brasil.

Com o AI-1, presidente da República recebeu autoridade para alterar a Constituição de 1946 sem necessidade de aprovação do Congresso, abriu caminho para a perseguição a adversários políticos, que se intensificaria nos anos seguintes e a imprensa começou a sofrer restrições, embora ainda não houvesse a censura formal como nos anos de chumbo.

O AI-1 teve validade temporária de seis meses, mas foi sucedido por outros Atos Institucionais ainda mais rígidos, como:

  • AI-2 (1965): Extinção dos partidos políticos e criação do bipartidarismo (ARENA e MDB).
  • AI-3 (1966): Eleições indiretas para governadores.
  • AI-4 (1966): Imposição da Constituição de 1967, que institucionalizou o regime militar.
  • AI-5 (1968): O mais repressivo de todos, fechando o Congresso e intensificando a censura e a repressão política.

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Se o governador Mauro Borges não tivesse renunciado, eu teria cumprido a ordem. E a ordem era bombardear a praça – Coronel Paulo Rubens Pereira Diniz

Demoraria para que o governador de Goiás, Mauro Borges, fosse enfim cassado e retirado do Palácio das Esmeraldas, mas não sem a típica violência militar. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2014, coronel, ex-engenheiro militar, Paulo Rubens Pereira Diniz, confessou que se a ordem para bombardear a Praça Cívica, mesmo com mais de 10 mil pessoas protestando pela permanência do governador, ele teria “executado a missão”. “Se o governador Mauro Borges não tivesse renunciado, eu teria cumprido a ordem. E a ordem era bombardear a praça”.

Diniz era lotado no Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) e recebeu a ordem para assumir um pelotão de “morteiro e arma curva”. A missão era explodir três pontes que passavam sobre o Rio Meia Ponte. “Nossa missão era destruir as pontes sobre o Rio Meia Ponte, ainda estavam construindo o centro administrativo de Goiânia. O tiro foi regulado para a Praça Cívica, com mais de 10 mil pessoas ali”, disse.

Em entrevista ao Jornal Opção em 1998, Borges falou sobre a operação para retirá-lo do poder. “Acho que havia uns cinco batalhões e a brigada de paraquedistas em Brasília, pronta para agir. A força aérea tinha os caças a jato. Um deles tinha o napalm, uma gasolina gelatinosa que pegava fogo em todo mundo, uma coisa horrível”, disse à época.

Mauro Borges governou goiás de 1961 a 1964, sendo deposto pelo regime militar | Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

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