Marcos Antônio Ribeiro Moraes
Especial para o Jornal Opção
A série “Adolescência” da Netflix, tem causado muitas e diferentes reações, mesclando a possibilidade de uma experiência do estranho familiar. Estranho, porque desvela algo que está em potência, mas recalcado dentro de cada sujeito, a possibilidade de matar ou morrer. Sinalizando, no mais profundo de nossa condição psíquica, a presença da pulsão de morte, no caso em questão, na forma de ira e agressão, dirigida ao outro. Familiar porque nos coloca bem dentro de um drama, de uma experiência de horror, vivida por uma família. E quem de nós não se vê nesse modelo de laço afetivo, para o bem ou para o mal? Tudo se passando no contexto de questões que estamos vendo e vivendo o tempo todo, em nosso cotidiano. Questões relacionadas aos desafios que as telas digitais impuseram no seio da cena familiar, da interação pais e filhos, bem como nas escolas, entre professores e alunos. Questões referidas ao poder que os meios digitais possuem de fisgar sujeitos por essa via pulsional mortífera, com desfechos fatais, mudando a rotina e os rumos da vida de quem aí se encontra implicado.
Sim, é contra esta dimensão pulsional potencializadora da agressão humana, que se impõe, ou ao menos deveria se impor a cultura e suas traduções em forma de pacto civilizatório. Mas em cada período histórico, tal força pulsional se reveste de diferentes expressões, por vezes legitimadas até mesmo pelo referido pacto. No caso de Jamie Miller, personagem central da série Adolescência, seu ato agressivo parece ser extraído de um concentrado caldo cultural de masculinidade tóxica, no qual ele se encontrava banhado, no universo das redes sociais digitais, por ele frequentadas.
Dentre as diferentes reações a esta série, faço um recorte, para aquelas que vem expressando espanto ao constatar que seja possível a um adolescente, nascido e criado numa família normal, se manifestar assim com tamanha violência. Sem ter nenhum histórico anterior de crueldade ou agressividade que indicasse uma estrutura perversa. Neste sentido me parece importante considerar que esta série nos faz pensar o quanto cada um de nós, ou seja, qualquer sujeito, pode passar ao ato perverso, movido por esta instância de agressão, que nos é tão estranha e familiar. Esta passagem ao ato é determinada por significantes em circulação nos discursos que sustentam, no laço social, um pacto perverso, cada vez mais perverso, que nega e invalida os marcos civis. E se tratando dos meios digitais, ai de fato é terra sem lei. Onde se torna natural e mesmo normal, violar, violentar e agredir todas as formas de diferença. Legitimando a misoginia, a homofobia, transfobia e as diferentes formas de racismo.

Nesse sentido, vale pensar que não é possível retirar a responsabilidade da escola ou da família de Jamie. Uma vez que se tratam de instituições que também se encontram inseridas nesta mesma lógica discursiva, sustentando passivamente, como algo natural, uma visão de mundo excludente das condições de diferenças. Pois, escolas e famílias estão inevitavelmente inseridas nesta lógica imaginária que fundamenta nosso pacto social. Isto parece ser indicado em diferentes momentos do desenrolar das cenas de Adolescência.
É neste contexto que se passa este drama, que se abre com uma cena impactante, em que um garoto de 13 anos é retirado, durante a noite, do aconchego familiar, preso, acusado de assassinar sua colega de classe, Katie Leonard. A partir de então, no decorrer dos episódios, nos são apresentadas as circunstâncias que levaram ao crime. A dinâmica familiar de Jamie parece sim normal, mas há questões, inseguranças acerca do papel masculino, sustentado pelo pai. Questões que norteiam o papel social que ele tenta transmitir ao filho. Isto vem se somar às pressões escolares, as influências da obscura cultura online, com seus diferentes fóruns, Incel, Red Pill, entre outros.
Me parece interessante a escolha de um adolescente, para protagonizar o sujeito do ato agressivo, como presa do modelo de masculinidade tóxica. Posto que, a adolescência é antes de tudo o marco decisivo de como se dará a entrada de um sujeito no laço social. Mas o imaginário social idealiza a adolescência, como expressão apenas da beleza e liberdade. E a adolescência é um fenômeno muito mais complexo, que comporta uma suspensão transitória da lei, numa etapa feita de riscos, dor e sofrimentos de grandes proporções. Com questões especificamente diferentes para o menino e a menina. Que pivoteiam entre ser e ter o objeto do desejo.
De tal forma, esta série lança luz sobre importantes questões, nos permite pensar, sobretudo a masculinidade contemporânea, que parece fixada na onipotência adolescente, resistindo a prosseguir rumo as etapas seguintes da constituição do sujeito, que comporta conceber em si a inscrição da castração e seus efeitos. Caso contrário, o que resta é o que estamos vendo, masculinidades que se manifestam paradoxalmente frágeis e ao mesmo tempo embrutecidas, presas de ideologias questionáveis, resultando em consequências trágicas, num preocupante e crescente flerte com a lógica fascista, que toma como alvo o feminino, entre outras condições de diferenças. Algo do recalcado que tem retornado em diferentes formas de reação rancorosa e agressiva. Presente em muitas expressões sustentadas pelo retorno do fascismo, em forma de movimentos radicais de direita, em todo mundo. Bem como no cenário político brasileiro dos últimos anos.
Neste sentido, acredito ser importante propor o debate desta série em diferentes instâncias, mas sobretudo nas escolas. O assassinato de uma colega é por demais metafórico. Pois não é apenas o horror da morte de uma jovem com tanta vida pela frente, que se encontra em questão. Este fato se refere a tantas outras formas de cancelamentos e agressões, sobretudo das condições femininas, nas relações sociais e virtuais. Agressões movidas pela negação da possibilidade de que as diferenças existam e possam circular num mesmo espaço social e digital. Recusa em aceitar que “não é não”. Pois a mulher pode não aceitar ser tomada como objeto do desejo fálico. Neste lugar, Jamie reflete, como num espelho rachado, uma boa parcela da masculinidade contemporânea, com seus limites em simbolizar a castração e a falta, sempre em busca de um lugar no Outro, sucumbindo ao fracasso, aprisionado pelo gozo mortífero que pode desencadear diferentes formas de barbárie.
Os diferentes campos e espaços de educação sempre terão, por tanto, uma possibilidade de enfrentamento da barbárie. Nesta ordem, como pensar uma educação que viabilize a relação de respeito as diferenças, sobretudo à altura de conceber lugar e respeito à mulher. Esta é uma dívida que as sociedades, ditas civilizadas, carregam por séculos. Pois nesse percurso dito civilizatório, entre tantas perdas sofridas, destaco a que se refere a este lugar de respeito e veneração ao papel e poder do feminino. Lugar esse que ainda é reconhecido legitimamente nas comunidades primitivas e tradicionais. Como se encontra expressado no universo cultural religioso dos saberes de matriz africana, “A mulher é a mãe do mundo”. Função especular presente na origem de cada Eu, no equilíbrio e continuidade da vida. Com papel fundamental no laço social, na educação formal e familiar. Portanto, parte relevante na constituição de um sujeito.
Marcos Antônio Ribeiro Moraes, psicanalista, é colaborador do Jornal Opção.
O post Série da Netflix: Adolescência, espelho rachado da masculinidade contemporânea apareceu primeiro em Jornal Opção.