Fábio Giambiagi: democracia exige eleição, descentralização e respeito aos freios e contrapesos

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

[Primeira parte da resenha do livro “A Vingança de Tocqueville — A Importância do Bom Debate”. Alta Cult, 384 páginas, de Fábio Giambiagi]

Há muito não lia um livro de diagnóstico político e econômico tão lúcido quanto provocador. “A Vingança de Tocqueville — A Importância do Bom Debate”, do economista Fabio Giambiagi, não é uma obra escrita para agradar, e sim para despertar — e está aí sua maior qualidade. Com estilo elegante, mas contundente, o autor formula o que considero uma das mais lúcidas leituras contemporâneas do atraso brasileiro: a incapacidade de levar a sério as bases institucionais da democracia.

Giambiagi não escreve como um panfletário, nem como moralista. Escreve como quem conhece profundamente os dados, os ciclos históricos e, sobretudo, o fracasso recorrente das elites nacionais em consolidar instituições sólidas. Ao evocar Alexis de Tocqueville, não o faz por mero recurso de erudição, mas para nos lembrar que a democracia, para funcionar, exige mais do que eleições: exige cultura cívica, descentralização efetiva, respeito aos freios e contrapesos. Onde essas engrenagens falham, a vingança vem. E ela se dá em forma de crises recorrentes, populismo travestido de redenção e estagnação econômica crônica.

Ao longo da leitura, me veio à memória outro intérprete do Brasil — Roberto Mangabeira Unger, muitas vezes incompreendido (e até ridicularizado) por setores da academia nacional. Mangabeira, que se tornou o mais jovem professor titular em Harvard aos 27 anos, sempre denunciou o dualismo estrutural que marca o país: uma economia dividida entre setores modernos e arcaicos; e uma política que gira em falso, num ciclo de reformas anunciadas, mas nunca institucionalizadas. Giambiagi parece dar continuidade, em linguagem mais econômica e menos teórica, a essa crítica estrutural.

O que mais me impressionou, no entanto nesse livro, foi a forma como Giambiagi conecta diferentes períodos da nossa história política — da Era Vargas aos governos mais recentes — sob um mesmo fio condutor: a falta de compromisso verdadeiro com a construção de instituições duráveis. Em vez disso, preferimos atalhos, lideranças personalistas, rupturas e improvisações. E pagamos caro por isso. A “vingança” a que o título se refere é essa: quando se negligência Tocqueville, colhem-se os frutos de sua ausência — instabilidade, desconfiança e atraso.

Fábio Giambiagi: o economista é um dos melhores intérpretes do Brasil | Foto: Reprodução

Não se trata de um livro que impõe certezas. Ao contrário, ele nos provoca a pensar. E isso, em tempos de ruído e simplificação, já é um grande feito. Ao terminar a leitura, percebi que A Vingança de Tocqueville não apenas me deu respostas — mas me fez refinar as perguntas. O que é, afinal, o progresso em uma democracia? Qual é o preço da negligência institucional? Por que repetimos tanto o erro, como se fosse parte do nosso destino?

A vingança de Tocqueville e a estagnação

Em “A Vingança de Tocqueville”, Fábio Giambiagi oferece uma análise crítica da trajetória econômica brasileira, destacando como a negligência às instituições democráticas e à responsabilidade fiscal resultou em ciclos de estagflação que comprometeram o desenvolvimento do país.

Desde a Era Vargas, o Brasil adotou políticas de desenvolvimento que priorizavam a intervenção estatal e o crescimento econômico rápido. Embora tenham promovido a industrialização e a infraestrutura, essas políticas frequentemente ignoravam os limites fiscais, levando a desequilíbrios macroeconômicos. O resultado foi a estagflação: um período de estagnação econômica combinado com alta inflação, que corroeu o poder de compra da população e minou a confiança nas instituições.

Giambiagi argumenta que essa estagflação é a manifestação da “vingança de Tocqueville” no Brasil. O francês Alexis de Tocqueville, ao estudar a democracia americana, enfatizou a importância de instituições sólidas, responsabilidade fiscal e participação cívica para o sucesso de uma nação. No Brasil, a falta de compromisso com esses princípios resultou em políticas populistas de curto prazo que sacrificaram o desenvolvimento sustentável.

A década de 1980, conhecida como a “década perdida”, exemplifica esse fenômeno. Planos econômicos como o Cruzado, Bresser e Verão falharam em controlar a inflação e restaurar o crescimento, devido à falta de reformas estruturais e ao desrespeito às restrições fiscais. A hiperinflação corroeu a confiança na moeda e nas instituições, demonstrando como a negligência aos princípios democráticos pode levar ao colapso econômico.

A estabilização só foi alcançada com o Plano Real em 1994, que introduziu o tripé macroeconômico: metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante. Essa abordagem, alinhada aos princípios de Tocqueville, promoveu a estabilidade econômica e fortaleceu as instituições democráticas.

No entanto, Giambiagi alerta que o Brasil ainda enfrenta riscos de repetir os erros do passado. A adoção de políticas econômicas insustentáveis e a negligência às instituições podem reverter os avanços conquistados. Para evitar a recorrência da “vingança de Tocqueville”, é essencial que o país mantenha o compromisso com a responsabilidade fiscal, a transparência e o fortalecimento das instituições democráticas.

Assim, a história econômica brasileira serve como um lembrete de que o desenvolvimento sustentável depende da adesão aos princípios democráticos e da rejeição de soluções populistas de curto prazo.

A culpa é da ortodoxia?

No capítulo 13 de “A Vingança de Tocqueville”, intitulado “Fracasso da Ortodoxia”, Giambiagi analisa criticamente como o debate ideológico em torno da política econômica no Brasil tem sido marcado por polarizações que comprometem a eficácia das políticas públicas. Ele observa que a ortodoxia econômica, frequentemente associada à direita, é combatida por setores da esquerda, o que impede a construção de consensos necessários para o avanço do país.

Mario Henrique Simonsen, economista | Foto: Reprodução

Giambiagi argumenta que essa dicotomia ideológica tem levado a decisões equivocadas e oportunidades perdidas, contribuindo para a estagflação — um período de estagnação econômica combinado com alta inflação. Esse cenário compromete a democracia, pois, como Tocqueville destacou, instituições sólidas e debates públicos qualificados são essenciais para o funcionamento democrático.

O autor destaca que, ao longo da história brasileira, desde a Era Vargas até os dias atuais, houve uma tendência de culpar inimigos externos pelos problemas internos, desviando o foco das reformas estruturais necessárias. Essa retórica populista, presente em diversos governos, tem dificultado a implementação de políticas econômicas sustentáveis.

Giambiagi enfatiza a importância de um debate público baseado em fatos e na busca por soluções de longo prazo, independentemente de alinhamentos ideológicos. Ele alerta que, sem esse compromisso, o Brasil corre o risco de repetir os erros do passado, comprometendo tanto a estabilidade econômica quanto a qualidade da democracia.

Em resumo, o capítulo “Fracasso da Ortodoxia” serve como um chamado à superação das divisões ideológicas estéreis em favor de um diálogo construtivo e fundamentado, essencial para o progresso econômico e o fortalecimento das instituições democráticas no Brasil.

Produtividade: a palavra esquecida

“A grande ausente”, do debate nacional foi e é prioridade para países bem-sucedidos na construção de suas democracias. Falo da produtividade. A respeito desse assunto o autor mostra que, enquanto o Congresso se ocupa de pautas que muitas vezes tratam apenas dos sintomas da estagnação econômica, a causa principal segue ignorada. O país não cresce porque trabalha mal, com baixa eficiência, pouca inovação e uma lógica que premia o improviso, não o mérito.

Dois exemplos ajudam Giambiagi a ilustrar esse ponto. O primeiro é uma anedota clássica atribuída a Milton Friedman. Durante uma visita à China, o economista se deparou com dezenas de trabalhadores escavando manualmente o terreno de uma usina hidrelétrica. Ao perguntar por que não usavam máquinas, ouviu que isso eliminaria empregos. Friedman respondeu com ironia: “Se o objetivo é gerar empregos, então deem colheres a eles”. A frase pode soar provocativa, mas toca num ponto crucial: trabalho improdutivo não é sinônimo de desenvolvimento.

Outro exemplo citado no livro vem do ex-ministro Mario Henrique Simonsen. Em tom crítico, ele perguntou: “O que seria da humanidade se os governos do século XIX tivessem protegido os fabricantes de velas contra a concorrência da luz elétrica?” A provocação revela a armadilha do protecionismo mal direcionado: quando o Estado protege ineficiências, ele freia o avanço da tecnologia e da competitividade.

A comparação com a Coreia do Sul é inevitável. Nos anos 1960, Brasil e Coreia tinham níveis de renda parecidos. Hoje, a Coreia está à frente em praticamente todos os indicadores de inovação, educação e produtividade. A diferença? Enquanto os coreanos apostaram em produtividade como motor de crescimento, o Brasil se acomodou em modelos que distribuem renda sem criar riqueza.

No fundo, o que Giambiagi mostra é que o Brasil vive um paradoxo: discute-se crescimento, mas evita-se falar daquilo que realmente o impulsiona. E aqui entra a “vingança de Tocqueville” mencionada no título da obra: quando a política se desconecta da eficiência e da responsabilidade, a democracia paga o preço. A conta vem em forma de estagnação, desemprego e frustração social.

A grande lição do capítulo é clara: sem produtividade, não há futuro. E sem coragem para enfrentá-la como tema central, o Brasil continuará a repetir velhos erros — com consequências cada vez mais custosas.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. É autor de nove livros relacionados aos temas energia, política, economia e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.

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