A Dama do Lago mostra Raymond Chandler escrevendo com elegância e estilo direto

Edmar Monteiro Filho

A adivinha ou charada, forma conhecida de pergunta enigmática, que exige elaboração mental para encontrar sua solução, é hoje relegada à condição de mero divertimento leve ou infantil. Entretanto, como antiga forma literária, traz interessantes possibilidades de discussão a partir da análise de seu formato.

A adivinha, assim como o mito, parte de um sistema de pergunta e resposta. Mas enquanto no mito o foco recai sobre a resposta dada a uma questão prévia, a adivinha é uma pergunta que pede uma resposta. Também diferentemente do mito, a adivinha não é uma interrogação lançada ao universo, trata-se de um homem que possui um saber, interrogando outro que o procura.

Na adivinha, se há o decifrador, há o cifrador, aquele que propõe a questão. Assim, se a adivinha se apresenta na forma de pergunta, o que vale não é uma resposta específica, mas o processo de resolução por parte do adivinhador; trata-se de uma prova para que o adivinhador se mostre tão capaz quanto aquele que questiona, ou seja, que se mostre digno de um certo saber. A solução da adivinha, em sua forma mais profunda é uma palavra mágica, que permite acesso a um círculo restrito. Do lado do interrogador, a adivinha oferece uma porta de acesso a esse círculo e do lado do iniciado pode mostrar que ele é digno de pertencer ao grupo.

As antigas charadas, surgidas com esse caráter de testar os candidatos a determinado universo de saber, sobrevivem em formas que pouco têm a ver com a original. Uma delas é o romance policial. Quando indivíduos se fecham em torno de um saber inacessível aos demais, a tendência é a desconfiança, ou seja, aquilo que se oculta deve ser necessariamente perigoso, contrário à moral ou à lei. O criminoso também carrega um enigma, do qual apenas ele conhece a solução – sua identidade, ou os motivos que o levaram a cometer o crime –, cabendo ao detetive, por meio do raciocínio, buscar as chaves para esse mundo exclusivo, a fim de revelá-lo ao mundo.

O romance policial clássico, inaugurado por Edgar Allan Poe, com seu “Os Crimes da Rua Morgue”, teve ilustres representantes dentro da boa literatura, como: Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, entre tantos outros.

Cada um desses autores criou seu detetive-modelo, seja Dupin, de Poe, Poirot, de Agatha Christie, ou Sherlock Holmes, de Doyle. Mas a figura do investigador particular cínico e durão, vivendo às turras com a polícia ou envolvido com mulheres fatais está fortemente associado ao Sam Spade, de Hammett, ou a Philip Marlowe, personagem criado por Raymond Chandler.

“A Dama do Lago” (Abril Cultural, 1984, 236 páginas) talvez seja o livro mais importante de Chandler, autor que trouxe refinamento e técnica a um gênero cujo espaço literário estava reservado, em princípio, apenas às revistas baratas.

A trama possui os conhecidos elementos do romance de detetives, ou seja, um crime cuja solução está a cargo do protagonista, devendo este fazer uso de sua engenhosidade e de sua habilidade em escapar às armadilhas que vão surgindo durante a investigação – às vezes colocando em risco sua vida – até solucionar o mistério.

Chandler escreve com elegância, em estilo direto, mas com atenção para as descrições detalhadas, como se o leitor fosse conduzido pelo olhar tarimbado do detetive, procurando pistas por toda parte, enxergando suspeitos em cada pessoa que cruza seu caminho.

A riqueza dos personagens é outro diferencial do autor, que busca fazer com que sejamos envolvidos não apenas pela trama engenhosa, mas igualmente pela infinita complexidade humana. Assim, ocultos na paisagem ou nos detalhes do ambiente, estão os vestígios deixados pelo criminoso. Disfarçado em atitudes inocentes, encontra-se o assassino que é preciso desmascarar.

Philip Marlowe, buscando a solução para o enigma que envolve sua dama desaparecida, transita por um mundo carregado de desconfiança e desalento, que não é outro senão o do sonho americano posto em cheque pela Grande Depressão e pela guerra. Talvez a melhor imagem para representar esse universo seja aquela escolhida para a capa da edição da Abril Cultural de “A Dama do Lago”: a tela “Nighthawks”, de Edward Hopper, retrato de notívagos solitários, perdidos numa esquina qualquer de uma cidade americana.

Edmar Monteiro Filho, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.

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Leia mais sobre Raymond Chandler no Jornal Opção (https://tinyurl.com/76fp3p28).

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