A surreal história da mulher que levou “vivo-morto” pra contrair empréstimo no Itaú Unibanco

Há histórias reais que, de tão ficcionais — matéria-prima para autores do naipe de Edgar Allan Poe, Franz Kafka e Rubem Fonseca —, desconcertam o jornalismo. Repórteres colhem informações das fontes tradicionais, as mais “envolvidas” com o caso, e raramente vão atrás de fontes que, se não são esclarecedoras, ao menos podem expandir o entendimento dos acontecimentos. No geral, o jornalismo está muito tributário de informações apuradas pela polícia — como se a vida não fosse mais ampla que os ditos dos inquéritos.

Truman Capote escreveu um romance de não-ficção, “A Sangue Frio” (Companhia das Letras, 440 páginas, tradução de Sergio Flaksman; a versão anterior de Ivan Lessa confunde psicanalista com psiquiatra), que explicou uma história real de assassinato de maneira muito mais abrangente do que o inquérito policial e o processo judicial. O escritor conseguiu entender a abstrusa “lógica” dos criminosos com as luzes da ficção.

Pintura de Remedios Varo

Edgar Allan Poe escreveu um conto extraordinário, “O caso do sr. Valdemar”, que, não versando sobre assassinato, relata a história de um homem que, mesmerizado (ou magnetizado, como prefere a tradução de Oscar Mendes), parece que está morto, mas ainda está vivo — ou assim parece. Tem relativo parentesco com a história que se contará abaixo.

Paulo Francis comprazia-se em contar a história de que, no Brasil, equivocavam sobre a autoria da frase “o que é assaltar um banco perto de um banco”. Chegaram a sugerir que era do dramaturgo e poeta Bertolt Brecht. Mas o jornalista, que faz falta neste sertão-mundão tão certinho do bom Deus, esclarecia que Vladimir Lênin, o bolchevique russo, era o autor do aforismo.

Atribui-se ao banqueiro americano J. P. Morgan uma frase estupenda: “A minha fortuna, eu posso justificar. Mas não o meu primeiro milhão”. O texto é ligeiramente diferente, mas o conteúdo está registrado com precisão. Há riquezas “sujas” que, com o tempo, são “limpas”.

Pintura de Paul Edman

Mas digamos assim: será que, na raiz de uma grande empresa patropi (de produtos minerais) — em tempos idos —, não estaria o uso de trabalho escravo em engenhos e no tráfico e comércio de escravos? As biografias oficiais, ou hagiografias, não dão conta disso, é claro. O capitalismo moderno “alimentou-se” — e muito — nos ombros dos escravizados (sim, negros). A imprensa esqueceu, como de praxe, mas, há pouquíssimo tempo, uma vinícola, das mais refinadas, usou trabalho análogo à escravidão (eufemismo da terra de Macunaíma).

Volta de Poe: história do morto que pediu empréstimo

Pois, de acordo com a polícia, secundada pela imprensa — algo desnorteada e sensacionalista —, Érika de Souza Vieira Nunes tentou aplicar um golpe no Itaú Unibanco — uma das maiores casas financeiras da América Latina (criação dos Setúbal e dos Moreira Salles).

De repente, como se num passe de mágica, Érika de Souza brotou numa unidade do Itaú Unibanco (por sinal, o banco quase não é citado nas reportagens e recortagens), em Bangu, no Rio de Janeiro, acompanhada do tio Paulo Roberto Braga (quase o nome do cantor famoso: Roberto Carlos Braga), impávido na sua cadeira de rodas.

Pintura de Tommy Ingberg

Paulo Roberto Braga, de 68 anos, acabara de sair de uma unidade de saúde — internara-se com pneumonia —, e, certamente como aposentado (a imprensa nada verificou a respeito, mas suponho, pela idade, que já se jubilara), dos que ficam muito em casa, “tinha” um sonho: comprar uma televisão e fazer uma reforma em sua casa. Claro, é a versão de Érika de Souza, já que o homem, nem tão idoso assim, não pode mais falar — exceto se deixou alguma coisa escrita.

Érika de Souza e Paulo Roberto Braga não queriam muito dinheiro, não. “Pediram” um empréstimo ao banco no valor de 17 mil reais (leia de novo: não são 17 milhões de reais). Socorro-me na Amazon, com seus preços às vezes achatados — pelo useiro e vezeiro dumping (por isso não compro livros da empresa forjada pelo bilionário Jeff Bezos). Um televisor razoável — Smart TV Led 55’ 4K UHD TCL 55P6635 (não sei o que significa tantos “códigos”) — custa, na empresa americana, R$ 2.449,00. Com o empréstimo, a dupla — ou só Érika de Souza, sabe-se lá, mui amigo Ionesco — certamente queria comprar a televisão à vista. Mas poderiam tê-la comprado em dez prestações de R$ 244,90.

Os Setúbal e os Moreira Salles, a nossa fina aristocracia, deveria comparecer à Justiça e, num ato de filantropia, pagar a “fiança” de Érika de Souza. Afinal, caro Samuel Beckett, o que são 17 mil reais para banqueiros de tão alto quilate (sublinho que tenho o máximo de respeito pelos Moreira Salles — que escrevem poesia, editam revista, a “Piauí”, têm um fundo de pesquisa para cientistas e, Walter Moreira, faz cinema de qualidade. Me disseram que os Setúbal, ao lado dos Moreira Salles, também financiam, a fundo perdido, a “451”, a ótima revista de cultura, talvez excessivamente identitária).

Pintura de Igor Morski

A história é, de fato, impactante. No banco, ante funcionários estupefatos — Kafka sorriria com a “benevolência” dos burocratas —, um morto, Paulo Roberto Braga, aparece assim, do nada, e exige um empréstimo, pré-aprovado, de 17 mil reais. Não é qualquer dia que acontece uma “metamorfose” assim, mui amigo André Breton. Não sei, caro Lacan (o que “examinou”, além da prosa, o homem James Joyce, um gênio, digamos, “amalucado”), porque o Itaú Unibanco pré-aprovou o financiamento. Não se trata, claro, de filantropia.

Na verdade — e mal sabemos o que é “a” verdade, como talvez não soubesse o parça Platão (ghost-writer de Sócrates?) —, Paulo Roberto Braga, ao adentrar o banco, parecia morto. A imprensa deleitou-se com a história, amigos Campos de Carvalho e José J. Veiga.

Paulo Roberto Braga estava numa cadeira de rodas, empurrado por Érika de Souza, sua — supostamente — sobrinha. Lendo isto, na imprensa, fiquei a pensar: cadê os parentes da dupla? Ah, os jornais estão esperando a polícia localizá-los. Por que não saíram à caça ou cata de informações, jovelho amigo Kipling (devo escrever Rudyard, senão alguns leitores, atentos ao mercado, vão pensar que se trata da loja)?

Pintura de Andrew Wyeth

Érika de Souza tem passagem pela polícia, já aplicou outros golpes antes? Não sabemos, pelo menos até quinta-feira, 18, quando escrevo este arrazoado. A sobrinha diz que o tio entrou vivo no banco. Um mototaxista garantiu que, ao ajudar a colocá-lo no Uber, não estava morto — “ainda respirava e tinha força nas mãos”. O motorista de aplicativo sustenta que o viu segurar na porta do automóvel.

Não se deve brincar, eu sei — porém o trágico sem o riso, sem comédia, é uma tristeza só (o mundo só é suportável se pudermos rir do drama; aquele que só ri do cômico deve ser primo das hienas) —, mas não deixa de ser extraordinária a história de um morto sendo pressionado e pressionando para obter um empréstimo. “Tio, tá ouvindo? O sr. precisa assinar. Se o sr. não assinar, não tem como. Eu não posso assinar pelo sr., o que posso fazer eu faço. Assina aqui, igual ao documento. Assina para não me dar mais dor de cabeça”, ordena, com forte convicção, Érika de Souza. Não devia, mas, confesso, eu ri. Mas, num cantinho do meu cérebro, o da sobriedade, a história do morto e a história da viva, mui viva, me comoveu.

O caso de Érika de Souza não me parece de prisão (deve responder por estelionato e vilipêndio a cadáver; ah, linguagem pomposa). O que fará uma senhora como ela (perdoe-me o cacófato, pelo qual quem tenho apreço singelo), de 43 anos, numa penitenciária, se condenada? A dessintonia com a realidade parece estar presente no ser da sobrinha de Paulo Roberto Braga. Ou talvez não, quem sabe.

Pintura de Mike Davis

Quem é Paulo Roberto Braga, de nome tão bonito? Não sabemos nada sobre seus 68 anos de vida. Para a imprensa, a morte parece defini-lo. Mas a morte não define ninguém, porque é um pedacinho minúsculo da vida. Era dono de uma casa? (Tudo indica que sim, pois queria reformá-la). Trabalhou muito até se aposentar? Era inválido? Por que precisava de uma cuidadora — a presente e, talvez, despachada Érika de Souza? Quais foram suas paixões na vida: futebol (o Bangu?), mulheres, pescaria, cerveja, selos?

Não sabemos nada de Érika de Souza? Estudou? Trabalhava em alguma empresa antes de ser cuidadora do tio? Amou? Leu Dostoiévski, Artaud e Camus? Ou pelo menos Adelaide Carraro (que li, na infância, deliciado)? Como se sabe, os cuidadores de pessoas doentes — de Alzheimer e outras doenças — sofrem muito, às vezes ficam depressivos.

A advogada Ana Carla de Souza Corrêa deu algumas pistas sobre sua cliente Érika de Souza, que certamente não tem como pagá-la. Entre as duas, de comum, o sobrenome Souza. Seriam parentes? Não sabemos. A imprensa, à espera da polícia, não perguntou.

Pintura de Edward Hopper

Ana Carla de Souza assinala: “É uma senhora idônea, que tem uma filha especial que precisa dela. Sempre cuidou com todo o carinho de seu Paulo. Tudo será esclarecido e acreditamos na inocência da senhora Érica”.

Assim como não sei se tudo na vida pode ser esclarecido, também não tenho certeza — não há material suficiente para uma avaliação — da inocência de Érika de Souza. Ou de sua culpa. Bancos suíços financiaram o tráfico negreiro… uma selvageria tremenda… e, até agora, não assumida.

O ministro Kássio Nunes Marques (a Érika de Souza também é Nunes) — ao qual respeito e não me uno ao exército dos que o vilipendiam por uma questão mais ideológica do que jurídica — mandou retirar a tornozeleira do bicheiro Rogério de Andrade. Espera-se não seja para colocá-la em Érika de Souza. E não estou brincando, prezados Dalton Trevisan e Clarice Lispector.

Arte de Siron Franco

Ana Carla de Souza acrescenta que laudos indicam que Érika de Souza “sofre com questões psiquiátricas”. É possível. Porém, mais uma vez, a imprensa não correu atrás dos laudos. Porque estava e está “atrás” tão-somente das investigações policiais. Afinal, a imprensa é “escrava” dos fatos ou dos relatos ditos factuais das polícias? Só João Antônio, o escritor, pode responder. Não pode mais, pois, como Paulo Roberto Braga — seria Paulinho ou Paulão? —, morreu. Será que um gênio como João Antônio morreu mesmo ou, por ser eterno, permanece moderno? Ou seria o contrário: por ser moderno, se tornou eterno?

A imprensa estrangeira deu cobertura ao caso, por certo por considerá-lo kafkiano. O jornal inglês “Daily Star” chegou a compará-lo à história do filme “Um Morto Muito Louco”.

Tendo escrito este texto lacunar, fico a pensar: o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues (e os gregos antigos, como Sófocles, Eurípedes e Ésquilo) faria miséria com a história de Érika de Souza — que não me parece uma Tom Ripley de saia — e Paulo Roberto Braga. Porque se trata de uma grande história humana. Não se trata apenas de um caso policial. A vida descrita pela polícia é modorrenta, primária e vazia. Sempre há algo mais a narrar, a perceber e sentir.

(Ao leitor sempre esperto e expert: não coloquei fotografia de Érika de Souza Vieira Nunes para não execrá-la. Optei por ilustrar o texto com pinturas.)

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