A Vila do Espanto, de Daniel Emídio, é um romance de profundo cunho psicológico

Marina Teixeira Canedo

“Para onde seguir quando o barco parece não ter um leme, e os ventos que sopram originam-se nos seios da morte?” — Daniel Emídio, in “A Vila do Espanto”.

A produção literária de Daniel Emídio de Souza é intensa. Escreveu, até o ano de 2022, 15 livros, entre contos, romances e minicontos, com a predominância dos primeiros.

Goiano de Nova Aurora, foi criado na zona rural de Nerópolis, onde permaneceu até os 16 anos, época em que se transferiu para Anápolis na intenção de prosseguir os estudos. Graduou-se em Farmácia pela UFG e em Medicina pela UnB. É psiquiatra, com formação em psicanálise, e membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília e do Núcleo de Psicanálise de Goiânia. É membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores-regional de Goiás (Sobrames).

Psicanalista renomado, com intensa atividade clínica e didática, encontra tempo para o fazer literário, que certamente o absorve de maneira lúdica, prazerosa. Também é uma forma de resgatar suas lembranças de infância, bem como consolidar seus conhecimentos científicos, na abordagem ficcional, com o estudo de seus personagens por meio da análise das reações e sentimentos ante a vivência cotidiana, tal como fizeram Afrânio Peixoto (1876-1947) e João Guimarães Rosa (1908-1967), dois médicos e grandes romancistas.

Seus contos e romances geralmente são ambientados em pequenas cidades do interior e no meio rural, ambientes onde viveu o autor durante sua infância e adolescência, e de onde ele extrai suas experiências remotas, que utiliza por meio da memória para compor suas narrativas. Daí a veracidade das cenas e grandeza das descrições, que passam pela memória do autor na revivescência de tudo que observou no alvorecer da vida.

Seu romance “A Vila do Espanto” não foge à regra. É sua segunda incursão no gênero romanesco, cuja edição é de 2014, e foi sucedido por outro não menos interessante, “Um Professor Rural”.

“A Vila do Espanto” é um romance de profundo cunho psicológico. Esta vertente interpretativa está presente na maior parte de sua obra. Como um psicanalista poderia fugir a esta visão analítica? Até que ponto se fundem o profissional e o ficcionista?

Seus profundos conhecimentos da mente humana o levam a perpetrar e a formular personagens cujos aspectos psicológicos se sobressaem na interação entre si, com o ambiente local e com o mundo, ao passo que se aprofunda na descrição de pensamentos e emoções, o que enriquece em muito a tessitura narrativa.

O aprofundamento na psique humana o leva a desvendar angústias, medos, superstições, crendices, e tudo aquilo que faz parte do imaginário popular, que se expressa por meio da interpretação muito peculiar dos fatos, sejam eles reais ou não.

As cidadezinhas do interior goiano, que têm suas atividades oriundas do meio rural, em sua maior parte, são prolíficas em histórias pitorescas e fantasiosas, com direito a fantasmas e outras manifestações espirituais. E o autor serve-se bem destes aspectos na construção de sua narrativa peculiar.

A linguagem utilizada é clara e linear, sendo de perfeita compreensão para os leitores, fazendo, algumas vezes, uma retroação no encadeamento do tema e na sequência do tempo, para a melhor compreensão da história.

O narrador é um observador atento e utiliza-se da terceira pessoa para descrever os acontecimentos, anonimamente. Mas o anonimato é mera aparência, um artifício literário. O narrador é alguém bem próximo, velho conhecido da Vila do Espanto, cenário da narrativa.

É, ao mesmo tempo, o menino e o psicanalista, na troca de informações e na elaboração das mesmas pelas lentes do profissional; assim é o narrador. Todos estes fatores levam o leitor a interessar-se pelo enredo do romance, cujos temas tornam-se cada vez mais instigantes com o desenrolar da trama.

Esta vila, chamada “do Espanto”, recebeu este nome devido a seus moradores serem portadores de histórias locais que espantavam e amedrontavam os visitantes do lugarejo. Era, de fato, um recanto perdido na imensidão do interior do Estado e que, a muito custo, podia ser visto como um pequeno ponto no mapa. Mesmo sendo um lugar fictício, traz resquícios de muitos lugares vivenciados pelo autor, bem como também pelos leitores, o que torna o cenário verossímil se comparado a qualquer outra pequena cidade do Estado de Goiás.

Daniel Emídio de Souza: escritor, psicanalista e psiquiatra | Foto: Facebook

Na trama, suas poucas e mal traçadas ruas convergiam para o largo da Matriz, onde se instalavam as principais atividades da vilazinha, como a Igreja Matriz de São Benedito, a Pensão Porto Seguro, a cadeia pública, o grupo escolar, o ginásio, a coletoria e parte do comércio. No desenho do traçado urbano, o autor descreve as minúcias de uma pequena comunidade daqueles tempos.

Mas, afinal, o que pode acontecer em um lugarejo acanhado, com poucos moradores, e que se avizinha de um lugar denominado “o fim do mundo”? Lugar este habitado por monstros e animais terríveis, totalmente desconhecidos do resto da humanidade, no entender de parte da população local? Isto é o que será possível verificar.

A sanidade mental dos habitantes da vila vai, pouco a pouco, sendo objeto da observação do narrador, tal qual Machado de Assis (1839-1908) em O Alienista. O narrador vai, devagar, analisando e detectando os fatores que causam a inquietude dos personagens. Boa parte deles é portador de transtornos mentais, que os levam a uma vida infeliz e insegura.

As causas de tais transtornos são, quase sempre, a ignorância e a crendice, sendo esta última filha da primeira. Também a pobreza se associa à ignorância e à crendice como fatores determinantes da penosa situação.

Dentre os moradores da vila, destaca-se o professor Arquimedes, homem inteligente e bem preparado, morador da Pensão Porto Seguro. O professor era sempre consultado para o entendimento dos problemas que afetavam a população. Arquimedes era professor de Ciências e, como tal, lutava sempre contra a ignorância dos habitantes da vila. Era um árduo inimigo das explicações com base nas superstições.

Mas nem ele estava livre de angústias, e costumava confundir a realidade com a imaginação, produzida por sua mente fértil. Escrevia um livro, supostamente de suas memórias, mas que, provavelmente, não passavam de fantasias. Seus pais, ao escolherem seu nome, Arquimedes, demonstraram um certo conhecimento de história e, certamente, eram pessoas de melhor nível intelectual do que o que a Vila do Espanto produzia.

Havia na vila um reduto de morféticos, que para lá foram desde o início do povoamento. Eram muitos, dezenas. Viviam afastados, à beira de um enorme paredão, e periodicamente iam à vila para recolher donativos para sua subsistência. O povo não negava ajuda, mas mantinha-se distante, sem contato físico com eles, sempre no temor de contrair a terrível doença. E assim era a convivência entre eles.

Dentre os acontecimentos espantosos e inusitados da vila. está o aparecimento de um corpo ressequido de uma jovem mulher, morta há muitos anos, e que surgiu, não se sabe como, encostado ao muro do cemitério. Daí para o surgimento de uma legião de devotos que peregrinavam até ali vindos de outros lugares, foi um pulo.

Bilhetes com pedidos de cura eram deixados diariamente no túmulo, que foi refeito. A crendice e a superstição transformaram a mulher morta em santa. A par deste fato, outros acontecimentos despertaram questões indecifráveis, como o desaparecimento de pessoas, a exemplo do secretário da prefeitura, que sumiu misteriosamente, e de Prudêncio, que se dizia perseguido por demônios. Ambos sumiram sem deixar vestígios.

Miriana, a filha de Prudêncio, professora na capital, transferiu-se para a vila a fim de descobrir o paradeiro do pai. Logo, o professor Arquimedes passou a interessar-se por ela, mas seus transtornos mentais, que o assediavam diariamente, tiravam sua tranquilidade e o levaram a fugir em direção à desconhecida mata da região do “fim do mundo”. Não seria uma metáfora?

Ao adentrar a mata, não estaria ele à procura de seu “eu” mais recôndito? Ao que tudo indica, sim. Ele foi encontrado dias depois e levado de volta à sua distante cidade para dar início ao tratamento psiquiátrico.

Por outro lado, o fim do mundo sempre esteve no imaginário dos povos, e atraiu os gregos e os portugueses que, em aventuras reais ou mitológicas, atiraram-se ao mar bravio e incógnito à sua procura. E, como fruto dessa curiosidade e ousadia também em outras áreas, a humanidade acabou descobrindo a infinitude do universo…

O professor Arquimedes seguiu, em parte, o destino de um outro famoso personagem da literatura universal: Dom Quixote, de Cervantes (1547-1616), que ficou com o “miolo mole” devido ao excesso de leitura… excesso de leitura, esta foi a explicação dada pelos vilaespantenses à triste sina do atormentado professor.

Na literatura nacional, tem-se Policarpo Quaresma, saído da pena de Lima Barreto (1881-1922), que teve um triste fim “porque se meteu com os livros”. Os livros passam de heróis a vilões quando não se consegue entender a gênese dos distúrbios mentais.

Após esses episódios, muita água rolou, literalmente, nessa vila espantosa. Antes que um verdadeiro dilúvio se precipitasse sobre a frágil vila, uma outra tragédia se abateu sobre ela.

Um violento incêndio devorou a casa que sediava o jornal “A Voz do Oeste”. Seu proprietário, arrasado, mudou-se para outra cidade com sua família no dia seguinte. Então veio a chuva, forte, intermitente, sem dar tréguas, por vários dias. As casas foram sendo destruídas e a população abrigando-se na escola. Muitas pessoas desapareceram.

Assim que as águas baixaram, Miriana partiu para a capital, deixando atrás de si os escombros da pobre vila. Neste momento, os morféticos, cobertos por curativos que protegiam seus aleijumes, invadiram a vila à procura de comida. Seu desespero foi tão grande que invadiram as vendas e o comércio em geral, pegando tudo o que podiam. Tal cena lembra a descrição de Érico Veríssimo (1905-1975) no romance Incidente em Antares, em que ele cria cenas macabras de mortos insepultos revoltados contra os vivos numa cidade imaginária.

Era uma multidão de leprosos, dezenas, em uma procissão macabra, na qual estava exposta toda a miséria humana. Assim termina essa melancólica história, cheia de dramas pessoais e de uma comunidade.

Esses dramas, nos quais há mistérios supostamente relacionados aos desígnios sobrenaturais do ser humano, compartilham, em uma escala microcósmica, da temática que se reporta às tragédias produzidas pelos antigos gregos. O que se passa em um reino pode se passar em uma pequena vila.

As vicissitudes humanas, claro, não se restringem às pessoas coroadas e seus acólitos, como sói acontecer nas tragédias gregas e igualmente nas shakespearianas. Daniel Emídio lhes confere veracidade nas camadas mais desafortunadas da população, nas quais, de fato, os dramas se avultam e tomam formas dantescas; porém passam, muitas vezes, despercebidos e à margem da sociedade, ou encobertos pela indiferença aos mais pobres.

Sua análise psicológica o leva a extrair da mente humana os fatores essenciais dos dramas humanos, tendo eles como fontes as crenças religiosas ou mesmo a descrença, as superstições, a ignorância, o desamparo, as enfermidades, as angústias existenciais e outros fatores que ele muito bem conhece.

O imortal goiano Bernardo Élis (1915-1997) também se aprofundou, em seus contos e romances, em uma leitura analítica dos povos do cerrado ao analisar suas mazelas a partir das desigualdades econômicas e sociais, notadamente em algumas obras como “André Louco”, “A Enxada”, “Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá”, e “A Virgem Santíssima do Quarto de Joana”. Nelas estão expostos, no corpus social, os preconceitos e as injustiças, em cidades também fictícias, mas facilmente reconhecíveis nos inúmeros municípios goianos.

Ambos os escritores, Daniel e Bernardo, apresentam análises literárias que se complementam no entendimento dos dramas humanos que eclodem, de maneira profunda, nos estratos mais primários da pirâmide social goiana.

Dessa forma, o romance urbano em Goiás configura-se com densidade na obra de Daniel Emídio de Souza, que de forma pretérita ou atual, apresenta narrativas fortes e inspiradoras, apresentando tipos humanos instigantes, tramas envolventes, e que reportam a uma realidade regional bem presente nos dias atuais. Sua obra apresenta-se como bastante representativa da literatura feita em Goiás.

Marina Teixeira Canedo é graduada em Geografia e História pela Universidade Federal de Goiás. Pianista. Marina ocupa a Cadeira número 8 do Instituto Cultural e Educacional Bernado Élis. É autora do livro de poemas “Olhos de Outono”, de 2015.

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