Bradbury tempera a ficção científica com investigações sobre os conflitos interiores de seus personagens

Edmar Monteiro Filho

Não faltam livros e autores novos a conhecer, mas a estante sempre envia um aceno desde determinada prateleira, quando os olhos desavisados percorrem as lombadas como quem faz um carinho. Claro que falo para aqueles que entendem a leitura como um prazer, uma descoberta, um aprendizado, um momento mágico, uma aventura, um tipo refinado de amor. No canto direito, próximo à parede, ali estão os tão apreciados livros de ficção científica. Dali, é Ray Bradbury quem sempre me acena, e atender a esse chamado é, invariavelmente, uma grande satisfação.

No início da década de 1970, já seduzido por Jules Verne e H. G. Wells, descobri Isaac Asimov e Arthur Clarke. Bradbury veio depois, e o universo das viagens espaciais, dos planetas e seres exóticos, das descobertas espantosas de uma ciência avançadíssima, ganhou dimensão nova: o vasto território da alma humana.

Claro que os heróis de Wells ou de Asimov não são criaturas desprovidas de personalidade, mas penso que ninguém antes de Bradbury soube temperar com tanta mestria a ficção científica clássica com investigações sobre os conflitos interiores de seus personagens. E o fez com um tipo de ternura, usando uma linguagem que por vezes soa como um encantamento. A memória, as saudades, a nostalgia são seus instrumentos de trabalho; sua escrita reside em outubro – o outono no hemisfério norte –, numa cidade pequena, onde as pessoas se reconhecem nas ruas; seus personagens de eleição são os meninos, ciosos de suas brincadeiras sérias, suas fantasias e sonhos, como também os adultos de características semelhantes.

Várias editoras brasileiras vêm publicando as obras de Ray Bradbury há décadas. Títulos diversos trazem contos escolhidos aleatoriamente, muitos presentes em distintas coletâneas, o que faz do reencontro com esses livros um misto de releitura e descoberta. Seu romance mais conhecido, “Fahrenheit 451”, adquiriu status de clássico da ficção científica. Já o menos conhecido “Algo Sinistro Vem Por Aí”, que ganhou versão digna para as telas, na direção de Jack Clayton, opta pelo registro do mistério para tratar de alguns dos temas preferidos do autor: o fim da infância e a amizade.

A história se passa, claro, em outubro. Os amigos inseparáveis Jim e Will vivem na pacata cidade de Green Town, na região centro-oeste dos EUA. Sua rotina de correrias pelos campos, pequenas travessuras inconsequentes e leitura de livros de aventura é quebrada quando chega à cidade um parque de diversões: o “Show Pandemônio das Sombras”.

Entre as atrações, uma bizarra trupe de artistas: o Esqueleto, a Bruxa do Pó, o Sr. Elétrico, O Homem Tatuado, Mademoiselle Tarot, o Bebedor de Lava, todos comandados pelo misterioso Sr. Dark. Nada mais sedutor para dois meninos de treze anos de idade que um parque de diversões. Mas uma aura de estranheza parece envolver os recém-chegados e os dois garotos passam a observá-los secretamente. Afinal, o labirinto de espelhos revela não ser um labirinto convencional; o carrossel exibe algumas fantásticas propriedades. Que sinistra atração exercerá o parque sobre as personalidades de alguns habitantes de Green Town, como a solitária professora, o vendedor de para-raios, o nostálgico Sr. Crosetti?

Livro de um mestre da ficção científica | Foto: Jornal Opção

Bradbury narra com passos cuidadosos, recheando cada intervalo de cena com gotas de suspense. As personagens vão adquirindo nuances, à medida que a narrativa cresce em emoção. Porque o que está em questão nesse misterioso jogo são justamente os poderes de sedução do mal, que insidiosamente penetra nos corações atormentados pelo automartírio, sob a forma dos mais inocentes desejos. Jim e Will, vivendo o conflito entre os apelos da infância e a poderosa atração da juventude, parecem escolher lados distintos numa luta que pode destruir para sempre sua até então inabalável amizade.

“Algo Sinistro Vem Por Aí” (Bertrand Brasil, 266 páginas, tradução de Jorge Luiz Calife), anuncia Ray Bradbury. Mas o confronto dos personagens contra os poderes malignos que ameaçam suas existências foge ao mero embate entre o bem e o mal, entre os poderes da lealdade e do amor ante a autêntica substância do pesadelo, é essencialmente o encontro com seus próprios demônios: o vazio que se abre a partir das dores da adolescência e do crescimento, o custo dos medos e desejos secretos, as frustrações, a maldade dormente, que aguarda um sopro para tornar à vida.

“E assim, aquele primeiro homem percebeu o que sabemos agora: nossa existência é curta e a eternidade é longa. E com esse conhecimento vieram a piedade e a misericórdia, para que poupássemos os outros para os benefícios mais intrincados e misteriosos do amor.”

Edmar Monteiro Filho é escritor e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção. Email: [email protected]

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