Hanna Arendt e Sócrates: as asas da liberdade

Carlos Russo Jr.*
Especial para o Jornal Opção

O Amor à sabedoria é a própria definição da filosofia. Sócrates tinha a vontade de conciliar as opiniões e isto não seria possível se cada um quisesse impor a sua como verdade aos demais; por isso ele colocava-se ao mesmo nível de todos.

Para Arendt deve-se distinguir a solidão do isolamento do “estar-se só”. Trata-se de afirmar o espaço da vontade diante do mecanismo do mundo. Este é o amor da vontade que emerge do amor à liberdade como condição. “A liberdade não pode ser desejada como um prêmio a ser alcançado somente no final de um processo histórico inevitável.”

A liberdade é como uma instituição permanente para um novo começo de vida, assim como o amor ao próximo é intrínseco ao se pronunciar sobre a política. Arendt diz que estar só é fundamental para que a atividade do pensamento se realize; “aquele que pensa encontra-se em sua própria companhia e vive a dualidade do diálogo do “eu consigo mesmo”, o diálogo socrático do dois em um”.

Estar só é um intervalo no estar junto da existência. A existência já é uma pluralidade, pois cada um de nós somos plurais.

De tal forma que o pensar não é algo posterior ao agir, nem na forma da crítica, e nem anterior a ela, pois são os momentos de um mesmo gesto. E é a ação guiada pelo amor ao mundo encontra seu fim em si mesma, de tal forma que a crítica não lhe tira o encantamento. Diz Arendt que, para Kant: “é belo o que agrada ao mero ato de julgar”.

O ato de julgar realiza-se como expressão do pensar e do querer, do conhecer criticamente e do encantar-se.

Todo o mundo precisa se reconciliar com um mundo em que nasceu como um estranho e no qual permanecerá para sempre um estranho, em sua distinta singularidade. É muito difícil se reconciliar com o horror.

Sócrates.

A busca de um modelo, que pudesse ser representativo de todo o mundo, de um homem que não se conte nem entre os muitos nem entre os poucos; que não tenha ambicionado o governo e nem reivindicado aprender como melhorar a alma dos cidadãos; que tão pouco tenha acreditado que os homens pudessem ser sábios e que não tenha invejado a sabedoria dos deuses (se é que eles a possuem), e que, portanto jamais formulou uma doutrina que pudesse ser ensinada e apreendida: para Arendt, esse homem é Sócrates.

Ela o coloca como a origem do pensamento crítico, modesto, não dogmático ou doutrinário, que coloca em questão o próprio pensar. “Sócrates apostava na phylia entre indivíduos diferentes, a qual instauria a parceria de iguais ao nível da comunidade”. “Ele desejava criar um espaço em que as diferentes maneiras de compreender o mundo aflorassem; quando dizia “sei que nada sei”, estava dizendo que sabia não possuir uma verdade comum para todos, e por isso estimulava cada cidadão a expressar a sua doxa(opinião).

Sócrates era contra aquela que acreditava ser a pior forma de governo, a do demos, pois a democracia foi assim cunhada pelos que se negavam a reconhecer a isocracia, de tal forma que a organização política não diferenciasse governados de governantes.

Os gregos socráticos apreenderam a compreender- não um ao outro como pessoas individuais- mas a olhar o mundo da perspectiva do outro, a ver o mesmo em aspectos muito diferentes e frequentemente opostos. “Para o cidadão grego a palavra polis guarda o segredo da política como aprendizado espontâneo do espaço público-político.”

Logo, a política, no senso de Arendt, nada tem a ver com a forma pervertida de ação comum por influência e pressão de pequenos grupos; depende, sim, da convivência humana, do acordo incerto e apenas temporário de grande número de vontades e intenções, onde a palavra e o ato não se divorciam, onde as palavras não são vazias e os atos brutais, onde aquelas não são usadas para ocultar intenções mas para revelar realidades e os atos não para violar e destruir, mas para estabelecer relações e criar novas realidades.

As experiências da atualidade apontam para o divórcio entre liberdade e política, soando com um velho truísmo a afirmação de que a liberdade é a razão de ser da política. As experiências de hoje revelam a falta de elos entre ética e política.

“Como, da noite para o dia, os indivíduos podem trocar um código de ética por outro? ” Interroga-se Arendt.

O ser livre, a tirania e Platão.

O homem não nasceu livre, como acreditava Rousseau, mas nasceu para a liberdade.

Ser livre na Antiguidade era possuir a capacidade da novidade. Na polis, os chefes de família que haviam conquistado o domínio sobre suas necessidades, podiam realizar a travessia entre o obscuro espaço privado e o luminoso espaço público. Começar algo e ser livre é o mesmo.

Para Arendt, Platão buscou ordenar o mundo no sentido de eliminar a imprevisibilidade humana, separando o ato de começar do de realizar. O início seria do governante e a realização dos governados, inspirado na figura do tirano, um rei- filósofo.

Tanto ele quanto Aristóteles admitiam a coerção como forma de governo e o despotismo dos dias de hoje bebem deles e não do autoritarismo romano.

Platão usa a autoridade para substituir a persuasão, que na polis era a base do convencimento político. Ele usa a sabedoria como base da coerção, uma cisão do saber- do governante- e do fazer- do governado.

Foi Platão que ao introduzir este conceito para eliminar a desordem na polis, racionalizou o comando da maioria pela minoria, numa evidência de que o espaço público- político somente pode ser ordenado às custas da liberdade.

Ao contrário de Platão, Sócrates buscava através da atividade de pensar o significado e não a verdade.

Para o filósofo que ama o saber, as interrogações são mais importantes que as respostas. Para Arendt, o pensar representa um perigo se nasce do desejo de se encontrar resultados que tornem desnecessário qualquer pensamento, e crítica, posteriores.

*Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.

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