A reverência ao clássico na poética de Getúlio Targino

Jô Sampaio*
Especial para o Jornal Opção 

O Dr. Getúlio Targino Lima é uma voz do Parnaso ecoando entre nós. Seus poemas demonstram toda a devoção de um monge, isolado numa clausura de palavras solenes, bem ao estilo do que disse Olavo Bilac no soneto “A um poeta”:

“Longe do estéril turbilhão da rua/ Beneditino escreve! No aconchego/ do claustro, na paciência e no sossego/ Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua.”

Em Literatura, o poeta Getúlio Targino vive “A arte pela Arte”. Seus sonetos são tipicamente parnasianos quanto à perfeição formal, ao esmero e ao burilamento. Não se nivela a estes, entretanto, na impassibilidade e na contenção dos sentimentos (ainda bem). Tampouco se vê em GT a obsessão (quase voyeurista) por retratar suntuosidades, descritas com requintes de formalismo, como templo grego, vaso chinês, objetos da dinastia Ming, leques de odaliscas etc.

À mulher, de modo especial, nosso poeta parnasiano dá sublime relevo e despeja o que há de mais elevado em sua carga afetiva. Em muitos versos de GT, predomina a visão romântica da mulher idealizada e virtuosa, santa e pura, como nas trovadorescas Cantigas recheadas de amor cortês e muita admiração.

No prefácio feito por Tânia Resende, ela diz sobre o soneto “Sem Rainha não há completo rei”, no “Dia da Mulher”:

“O soneto evoca a narrativa bíblica, em que a mulher – a rainha – é necessária para completar o homem – o rei. A mulher, nesse soneto, é a típica musa do Romantismo: é divinizada e sublimada para que permaneça em seu lugar no mundo e na sociedade – ao lado do homem, a quem deve servir – comportando-se como uma dama, femininamente”.

Embora o citado soneto resgate a visão bíblica da mulher, engana-se quem pensar que GT professa a ideia de mulher servil, apenas “santa, prendada, recatada e do lar”.

Há sonetos em que o citado poeta reforça a sensualidade e o erotismo que emanam do ser-feminino, assim como Camões, ao sublimar Dinamene no plano eterno, não deixou de se lembrar do halo sensual que dela emanava, como se vê nos versos abaixo:

“Alma minha gentil, que te partiste/ tão cedo desta vida, descontente/ repousa lá no Céu eternamente/ e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,/ memória desta vida se consente,/ não te esqueças daquele AMOR ARDENTE/ que já nos olhos meus tão puro viste.”

Os ideais platônicos são visíveis nos versos de Camões aqui já citados. Neles, vemos a mulher amada, após a morte, em um universo puro (assento etéreo onde subiste). Embora haja todo esse contexto de espiritualidade em que a alma se encontra, a nota sensual existe “daquele amor ardente”, impetuosidade erótica suavizada, contudo, em “que já nos olhos meus tão puros viste”.

Lançado no dia 21/11 na Academia Goiana de Letras, o livro Passageiro e Eterno, possui 64 sonetos, com temática variada. Ao lê-lo, o leitor sente-se com uma passagem de ida ao Renascimento, ao Classicismo, ao Parnasianismo e, com longa estadia em Luís Vaz de Camões, com quem comparo a poesia de GT.

Assim, nesse cotejo entre os dois poetas, Camões e Getúlio Targino, ressalto as seguintes características comuns a ambos.

PLATONISMO

À semelhança do grande lusitano, o poeta Getúlio Targino também retrata a mulher amada com pureza e sensualidade, como se vê abaixo:

“Beijo teu beijo inerme no papel/ Lançado com carinho e reverência./ E mesmo assim percebo a grata ardência/ De um vivo amor, constante, puro fiel.

Teus lábios rubros deixam-me revelar,/ Sem defesa qualquer para a carência/ De senti-los nos meus, na convivência/ De fruir seu favor, provar seu mel” (p. 17).

“Ninguém como você foi tão perfeita/ No artifício do amor incontrolável/ Nunca o prazer foi tão palpável/ Nem a paz do alcançado tão aceita” (p. 21).

A DIALÉTICA DAS ANTÍTESES

Além do platonismo já citado, as antíteses se constituem em figuras principais dos sonetos Camonianos. Aliás, discursos (poéticos ou não) apoiados em polos opostos são anteriores a Camões, até os trovadores da Idade Média já os usavam, e Petrarca disseminou essa prática. Entretanto, está em Camões a expressão máxima das contradições e perplexidades humanas.

Na poética de Getúlio Targino Lima, não são poucos os poemas em que vemos o homem dividido entre a esfera do ser e do parecer.

“Sonhar… para sonhar é necessário/ Um mundo de abstração/ De fogo e luz, egoísmo e desapego.

Somente quem tiver fé, na amargura/ E, na guerra finez, crer na brandura/ Criará, no sonho, este aconchego” (p. 69).

Falar em polos antitéticos, hoje, é papo obsoleto. Segundo os filósofos atuais, Zygmunth Bauman (Modernidade Líquida) e Gilles Lipovetsky, o homem atual, da hipermodernidade, vive uma realidade extremamente paradoxal, acima de todos os polos antitéticos e contraditórios. Significa que superamos Deus e o diabo, superamos o dualismo, o maniqueísmo. Somos, hoje, servos de muitas forças, mitos, dentre esses são citados o consumismo, o excesso de informações, a constante busca pelo novo etc.

O DESCONCERTO DO MUNDO

Percebe-se, também, na temática do poeta Getúlio Targino, versos reveladores do conceito de que toda a existência é constituída por contínuas contradições. Essa ideia de eterna guerra de conflitos e mudanças surge a partir do título do livro Passageiro e Eterno. Essa certeza do efêmero, do transitório é igualmente forte em Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Tomando sempre novas qualidades.”

Getúlio Targino: “Tudo passa na vida: fama, glória/ poder, ostentação, nome e dinheiro/ De seus donos sequer deixa a memória” (p. 25).

Temos, nos fragmentos poéticos acima, a herança do filósofo Heráclito. Para ele, “o mundo não passa de uma eterna guerra de contradições que se transformam mediante o passar do tempo”.

SAUDOSISMO

Saudade, termo considerado um idiotismo da nossa língua, está presente na literatura portuguesa desde os primeiros trovadores: “Que soidade de mia Senhor, ei!” (D. Dinis).

Na lírica camoniana, a paixão da memória lhe desperta o sentimento da saudade cantado em muitos poemas, como nos versos:

“Aquela triste e leda madrugada/ Cheia toda de mágoa e piedade/ enquanto houver no mundo uma saudade/ quero que seja sempre lembrada.”

O poeta Getúlio Targino também busca na saudade a celebração de momentos felizes, a presença de pessoas com quem manteve fortes laços afetivos, a infância, a juventude, além de outros fatores que, com o tempo, transformaram-se em recordações boas e, às vezes, dolorosas.

“Até que enfim do túnel, no final/ Antevejo, talvez, felicidade/ Vem dos olhos lindos, sem igual/ Este nascer do dia da saudade” (p. 57).

“[…] Em ondas de um querer que é só saudade” (p. 69).

FINGIMENTO POÉTICO

Esse artifício vem como consequência da capacidade de idealização, do desejo de fuga do real, da fantasia exacerbada e do escapismo. Essa característica consiste, sobretudo, na expressão de emoções simuladas e na imitação de sentimentos baseados em modelos clássicos e renascentistas.

Na poética de GT, não faltam momentos em que seu eu-lírico se ausenta da realidade para se refugiar no mundo sonhado e imaginado.

“DANÇO sozinho e finjo ser contigo/ Ouço canções e finjo ouvir tua voz/ Olho para a imensidão, mas não consigo/ Pensar de outra maneira: é sempre nós.

[…]

É por isso que sofro e sofro tanto/ Afogado no oculto do meu pranto/ Por te amar e fingir que apenas cismo.”

O fingimento poético dá à dor, à angústia, à frustração um valor imensurável, setenta multiplicado por sete mil vezes maior, como bem disse Fernando Pessoa no célebre “Autopsicografia”:

“O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”.

O fingimento poético, com maior ênfase no Arcadismo, a partir do uso dos pseudônimos pelos poetas dessa época, é também uma característica bem visível nos versos de GT.

ASPECTOS FORMAIS

Movimentos Narrativos

Lendo os sonetos de Getúlio Targino, é impossível não se perceber que, em muitos deles, há a construção mediante os três movimentos narrativos, uma estrutura poética bem camoniana.

“Quando você partiu e, decidida,/ falou-me da presença de outro encanto/ a lhe dar novo alento para a vida,/ pus da cabeça aos pés funéreo manto.

Senti que ia morrer. Jorrou-me o pranto/ pela face e embaçou-me a mais vívida/ das ilusões e triste foi meu canto/ da hora derradeira a despedida.”

Nos dois quartetos acima (Não morri, p.103), temos um acontecimento, um fato (uma partida, um caso de amor perdido, uma desilusão, uma saudade). Nos tercetos a seguir, temos o efeito espiritual do citado acontecimento: “Hoje, reflito, vejo o universo,/ a dádiva de Deus e fico imerso”.

Em terceiro lugar, vem a conclusão: “Vim para ser feliz, vou consegui-lo/ Pois, pela fé em Deus, com classe e estilo/ não morri, mas você morreu em mim”.

Percebemos que o acontecimento e o efeito são particulares, e a conclusão é universalizante.

ConceptismoJogo de ideias

Vezes há em que os poemas de Getúlio Targino vêm recheados de conceitos, de exposição de ideias com extremado raciocínio lógico, marcado por coesão e coerência. Essa característica conceptista nos remete ao Barroco, com Francisco de Quevedo, na Espanha; e Padre Vieira, em Portugal, os quais deram grande valor ao raciocínio objetivo, com o fim de convencer o leitor, surgindo assim o conceptismo, em oposição ao rebuscamento formal, tendência cultista. Destacamos aqui o soneto “O Bem da Vida” (p. 95):

“O bem da vida está na própria vida/ Que, exuberante, exige seu fulgor,/ Mesmo quando reabre uma ferida/ Do que antes nos fora um grande amor.

O bem da vida está na perseguida/ Conquista que buscamos com ardor/ Também está na nota colorida/ Com que a natureza canta seu louvor.”

Segundo o raciocínio do poeta GT, a vida é conquista e aprendizagem, se tais valores nos são dados pela vida, logo, o bem da vida está na própria vida.

Com esse silogismo em que as premissas (maior e menor) estão nos quartetos, os dois tercetos nos apresentam a conclusão:

“E é assim que, após tanto conceito/ O que se tira é que, de qualquer jeito,/ O bem da vida está na própria vida.”

Inversões

O uso de orações em que os termos aparecem fora da ordem direta, dá origem à figura denominada hipérbato, uma das características marcantes da poesia camoniana. Em GT, também, há o uso desse recurso estilístico, como nos exemplos abaixo:

“COM seus passos gigantes decididos/ Vai o tempo voraz dilacerando” (p. 47).

“Sei que esperas, do ontem redivivo/ no hoje, a sagração para o amanhã (p. 49).

Descritivismo

Há em GT certa predileção pelo descritivismo pictórico, em que são retratadas paisagens na natureza, pessoas, virtudes, a mãe, o pai, os jovens. Os parnasianos antigos optaram pela descrição de objetos inertes, numa revelação da tendência de retorno aos temas clássicos.

Versos de GT:

“Mãe é o mar ou a terra; a morte e a vida/ É o carinho do unguento na ferida/ É o amor sem limite ou evasiva” (p. 61).

“Fico vendo estes corpos, as molduras/ E as diversas feições de cada rosto/ Destes jovens alunos que as alturas/ Hão de alcançar um dia, por suposto”

Uns são simples, humildes quais planuras/ Mas de vegetação de raro gosto./ Outros, picos de orgulho das alvuras/ Da neve estéril antes o sol posto” (p. 51).

Estrutura dos versos e das estrofes

Os sonetos do poeta Getúlio Targino são todos decassílabos e estes, conforme o ritmo e a cesura, podem ser heroicos, sáficos e provençais. As rimas são alternadas (ABAB) em algumas estrofes e cruzadas ou entrecruzadas (ABBA) em outras. Todas são ricas, formadas por palavras de classes gramaticais diferentes e soantes, quanto à identidade sônica (tonicidade). Há, ainda, em grande quantidade as rimas preciosas, como exemplos a seguir:

“Se nem um cacho destes teus cabelos/ Mereço ter comigo, que ironia!/ Nesta vida sonhar não ousaria/ Teus carinhos, sequer, um dia tê-los.” (p.101).

“Deus te fez Deusa e fê-lo, com certeza/ Com tal carinho e tão imenso zelo/ Que se tornou difícil concebê-lo” (p. 133).

Há casos de enjambement, recurso muito usado por GT. Nessa prática, o poeta faz uma quebra na linearidade frásica e, assim, numa ruptura sintática, sem exigir complementação, conserva o fluir da corrente lírica.

“Não sei como dizer meu pensamento/ A seu respeito, claro e inconfundível” (p. 87).

OS CAMINHOS DO SONETO

O soneto surgiu no Renascimento, com a presença do “Dolce Stil nuovo”. Chamado de Medida Nova, introduzido em Portugal por Francisco Sá de Miranda. Com essa novidade Renascentista, Luís Vaz de Camões, embora sem ter abandonado totalmente a medida velha (as redondilhas), deixou para a humanidade o que há de melhor em seu lirismo: os sonetos.

Com o Maneirismo (ponte de transição entre o Renascimento e o Barroco) e no Romantismo, por pregar a liberdade formal, o soneto teve um período de hibernação, mas renasceu forte, glorioso, no Parnasianismo, como rejeição ao cientificismo do Realismo/Naturalismo e reação ao pieguismo romântico. Surgindo daí um grupo de poetas franceses comprometidos apenas com o respeito pela arte, pelo ofício, pelo artifício, nascendo assim o Parnaso Contemporâneo, com rejeição à imagem do homem fisiológico.

Aqui, no Brasil, tivemos altas expressões do Parnasianismo, como Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa, Teófilo Dias, Vicente de Carvalho, entre outros.

Essa forma Literária nunca foi, contudo, abandonada. Hoje, quase quinhentos anos do seu nascimento, ainda há verdadeiros cultores do soneto. Em Getúlio Targino Lima, nós o vemos em toda a sua pompa e realeza.

O poeta GT é reconhecido, à distância, por seu alto nível intelectual, embora sempre se mostre modesto, discreto, avesso a holofotes. Sua produção Literária, a maioria composta por sonetos, possui também obras jurídicas, crônicas, discursos, ensaios e conferências.

Nelly Alves Novaes, Moema de Castro Olival e a professora Ecléa Campos são algumas das pessoas de grandes conhecimentos literários e linguísticos que já prefaciaram e estudaram as obras do poeta GT, dando o merecido destaque ao seu real valor literário. Ele, porém, nunca mencionou sua fortuna crítica.

O livro Passageiro e Eterno traz, no próprio título, a única certeza absoluta que o homem tem sobre si mesmo: Tu és pó e ao pó retornarás.

Com essa consciência de que somos passageiros, o poeta GT, enquanto chama fumegante, mantém acesa a luz, cuja centelha se eternizará nas partículas do eterno, do infinito, do imaterial.

Julgo que meu trabalho poderia ter um fecho de ouro, caso o soneto “A um poeta”, de Olavo Bilac, viesse como epílogo.

Longe do estéril turbilhão da rua/ Beneditino escreve! No aconchego/ do claustro, na paciência e no sossego,/ Trabalha, e teima, e Lima, e sofre, e sua.

Mas que na forma se disfarce o emprego/ Do esforço; e a trama viva se construa/ De tal modo, que a imagem fique nua,/ Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostra na fábrica o suplício/ Do Mestre. E natural o objeto agrade,/ Sem lembrar dos andaimes do edifício.

Porque a Beleza, gêmea da Verdade/ Arte pura, inimiga de artifícios/ É a força e a graça na simplicidade.

*Jô Sampaio é poeta, contista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.

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