Superbactérias emergem como consequência do alto uso de antibióticos em carnes

O uso crescente de antibióticos na agropecuária industrial transformou-se em uma grave ameaça à saúde pública e ao meio ambiente. De acordo com  um estudo publicado na Science, cerca de 70% dos antibióticos produzidos globalmente são destinados à criação de animais, impulsionados por práticas que priorizam lucros imediatos em detrimento da cautela científica. Essa tendência contribui diretamente para o surgimento de superbactérias resistentes a medicamentos, o que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), figura entre os dez maiores desafios de saúde global.

A produção industrial de carne baseia-se no que o professor Ricardo Abramovay, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, disse ao Jornal USP, que se chama de “tríplice monotonia”. A monotonia genética dos animais, o confinamento intenso e a uniformidade alimentar criam condições ideais para a proliferação de doenças. O uso massivo de antibióticos aparece como solução imediata para prevenir surtos, mas alimenta um ciclo perigoso: as bactérias menos resistentes são eliminadas, permitindo que as mais robustas proliferem sem concorrência.

Abramovay ressalta que “é muito fácil administrar antibióticos a animais, mesmo em países com legislações restritivas, como o Brasil”. Pesquisas recentes revelam o aumento no uso desses medicamentos em polos produtivos, contrariando regulamentações que proíbem a prática desde 2020.

Da revolução avícola à resistência bacteriana

Os antibióticos foram inicialmente promovidos na agroindústria devido à descoberta de que pequenas doses poderiam acelerar o crescimento dos animais. No entanto, essa prática, que revolucionou a produção avícola no século 20, contradiz os alertas de Alexander Fleming, descobridor da penicilina, sobre os perigos da resistência antimicrobiana. A consequência é um sistema onde a inovação tecnológica, embora eficiente, compromete a saúde pública global.

Segundo estimativas do Banco Mundial, as infecções causadas por superbactérias já resultam em cerca de 5 milhões de mortes anuais e podem gerar custos superiores a US$ 1 trilhão até 2050.

Impactos além da saúde humana

Os danos causados pelo uso descontrolado de antibióticos na pecuária vão além das infecções humanas. “Os antibióticos vazam para o solo, a água e o ar, agravando a contaminação ambiental”, destaca Abramovay. Além disso, a uniformidade genética torna os animais mais vulneráveis a vírus e bactérias, perpetuando a dependência de medicamentos antimicrobianos.

Enquanto países como a Noruega usam apenas 8 miligramas de antimicrobianos por quilo de carne produzida, o Brasil chega a 434 miligramas. A ausência de transparência nos dados nacionais e a facilidade de acesso a antibióticos nas zonas rurais intensificam o problema.

Uma abordagem eficaz para mitigar os efeitos nocivos do sistema agroalimentar passa pela redução no consumo de carne. Segundo Abramovay, “se não é verdade que a humanidade vai precisar cada vez mais de carne, então os métodos produtivos têm que ser métodos de desintensificação. Evidentemente isso tem um custo, mas permite que se coloque o patamar de consumo de antibióticos pelos animais em um nível muito mais baixo do que nós fazemos no Brasil e se faz em algumas partes do mundo”. Guias alimentares internacionais, incluindo o brasileiro, recomendam diversificar a alimentação com mais frutas, vegetais e grãos, reduzindo a dependência de produtos de origem animal.

Um caminho pela saúde e sustentabilidade

A resistência antimicrobiana destaca a necessidade de uma transformação profunda na agropecuária industrial. Para Abramovay, é indispensável estabelecer limites globais para o uso de antibióticos e cumprir prazos para atingir metas realistas. De acordo com um estudo publicado na Science, uma redução de 60% no uso desses medicamentos seria possível se países da OCDE e a China limitassem a prática a 50 miligramas por quilo de carne.

Além disso, o fortalecimento de políticas públicas e a ampliação de pesquisas são um dos pontos-chave. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) tem contribuído ativamente, articulando com organizações internacionais e lideranças políticas para fomentar um plano de ação baseado na abordagem “Uma Só Saúde”, que integra saúde humana, animal e ambiental.

Apesar dos avanços em discussões internacionais, como a Assembleia Geral das Nações Unidas, compromissos concretos ainda são escassos. O painel de alto nível sobre resistência antimicrobiana de 2024 optou por recomendações vagas, sem metas específicas para reduzir o uso de antibióticos na agropecuária.

Essa inação contrasta com a urgência do problema. O professor enfatiza que, sem mudanças estruturais, a crescente demanda global por carne e a intensificação das práticas industriais continuarão a comprometer o progresso científico e o bem-estar da população mundial.

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