Vento Vazio, de Marcela Dantés, é obra original que dialoga com diferentes tipos de leitores

Roberson Guimaraes

A determinação do valor literário de uma obra é sempre algo complexo mas é possível estabelecer critérios objetivos de análise que permitam identificar uma obra como “grande literatura”.

O primeiro critério fundamental para avaliar a qualidade literária de um texto é sua construção formal. Como defendido pelo linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), em seus estudos sobre a função poética da linguagem, uma obra literária de qualidade demonstra um trabalho consciente com a materialidade do texto. Isto se manifesta por meio de densidade semântica, domínio técnico da linguagem: é fundamental o uso preciso e inventivo do vocabulário, sintaxe e recursos estilísticos e, por fim, uma estruturação coerente, uma organização textual que contribui para a construção do sentido global da obra

Já o poeta e ensaísta americano T. S. Eliot (1888-1965), em “Tradição e Talento Individual”, explica que uma grande obra literária estabelece um diálogo produtivo com a tradição ao mesmo tempo em que inova. Isto significa retrabalhar elementos tradicionais de forma original para expandir as possibilidades expressivas da linguagem literária.

Marcela Dantés: uma voz promissora da literatura brasileira | Foto: Reprodução

O filólogo alemão Erich Auerbach (1892-1957) argumenta, em “Mimesis”, que obras literárias significativas conseguem articular questões universais através de representações particulares ao abordar temas fundamentais da experiência humana e construir personagens complexos e multidimensionais.

Também não se pode deixar de considerar, como nos ensina o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), em “Literatura e Sociedade”, a importância da dimensão social da literatura, a capacidade que o texto literário tem de dialogar criticamente com seu contexto histórico-social contribuindo para a ampliação da consciência social e histórica. A qualidade literária de uma obra não pode ser reduzida a uma fórmula simples, mas emerge da confluência destes diversos aspectos.

Conexão com regionalismo e realismo mágico

Marcela Dantés, 38 anos, mineira de Belo Horizonte consegue reunir essas características em seu romance “Vento Vazio” (Companhia das Letras, 224 páginas). A estória está ambientada na Quina da Capivara, “um fim de mundo esquisito, porque quase nada acontece, mas também tudo (…) as casas são tão escondidas, enfiadas nesse paredão de pedra (…) pedra imensa que não deixa o Vento Vazio ir embora”. É nesse lugar intenso, “quase absurdo”, geograficamente a Serra do Espinhaço, norte de Minas, que Marcela Dantés edifica seu romance: onde o vento é daqueles de virar a cabeça, mudar comportamentos e perturbar juízos.

O livro é conduzido por quatro diferentes vozes narrativas que trazem como característica comum “serem pessoas que operam num registro diferente do que a gente costuma chamar de normal, racional” e que de alguma forma foram afetadas pela instalação e depois fechamento de uma usina eólio-elétrica (esse é um registro factual, a usina do Carmelinho, em Gouveia, perto de Diamantina, construída em 1994 e desativada em 2015).

É nesse cenário de desalento com as pás metálicas gigantes e estáticas da usina abandonada ao fundo, o sol inclemente e a terra vermelha dominada pelo vento vazio, “esse maldito, acaba-vida, que consome nossas vidas e que deixa todo mundo exausto sem nem saber por quê”, que ouvimos as obsessões, os desatinos e as dores de Miguel Sem-Fim, Cícera, Alma e Maura.

Logo no início da obra, Marcela Dantés estabelece uma voz narrativa distintiva que merece atenção especial. É o trecho do livro que mais me agradou.

O narrador-protagonista, um homem centenário, apresenta sua história através de uma linguagem que mescla oralidade com profunda reflexão existencial. A aparente simplicidade do discurso (“É uma história boba a minha, é uma vida boba”) contrasta com a complexidade das questões existenciais que ele aborda, criando uma tensão narrativa significativa.

A descrição do espaço físico (“casas que são tão escondidas, enfiadas nesse paredão de pedra”) cria uma atmosfera visual potente que serve como metáfora para o isolamento existencial.

O espaço em “Vento Vazio” transcende sua função meramente descritiva para se tornar um elemento simbólico central: a “Quina da Capivara” é apresentada como um lugar que “talvez nem exista”, estabelecendo uma dimensão quase mítica para a narrativa; o paredão de pedra funciona como elemento ambivalente de proteção e de prisão. A geografia física reflete a geografia interior dos personagens.

Esta estruturação temporal complexa permite que a narrativa explore questões sobre memória, pertencimento e identidade: “Não sou daqui, mas também não vim de longe”; solidão e isolamento representados tanto física quanto metaforicamente; o peso da sobrevivência — “a pior parte foi que eu sobrevivi” — e a natureza do vazio existencial personificado no “Vento Vazio”.

O texto estabelece conexões com importantes tradições literárias como a literatura regionalista brasileira, pela ambientação e linguagem e o realismo mágico latino-americano, pela fusão entre real e mítico.

Fluxo de consciência mais fragmentado

Pintura de Hieronymus Bosch

A outra voz narrativa que destaco é de Maura no trecho que fecha o livro. Esta segunda voz narrativa revela um trabalho sofisticado de Marcela Dantés com a polifonia narrativa.

Em contraste com a voz reflexiva e cadenciada do narrador centenário, Maura apresenta uma narrativa que possui um fluxo de consciência mais fragmentado e demonstra uma percepção temporal distorcida manifestando uma relação diferente com a linguagem e a realidade. Também pudera: ela é louca (mas todos não são?). A voz de Maura é construída através de recursos estilísticos específicos: frases curtas e abruptas (“Sebastião morreu”), repetições que sugerem um pensamento circular (“longe, longe”) e quebras sintáticas que refletem a fragmentação mental. Em sua compressão temporal (“um dia, cem mil dias”) presente e passado se misturam de forma não-linear — algo que intensifica a dramaticidade.

Observa-se forte presença do corpo como elemento narrativo, a linguagem é sensorial e física com clara objetificação do próprio corpo (“as tetas de fora”, “bolina a boboca borboleta borrachuda”, “alguém que me coma eu quero, quero sim”).

O texto apresenta uma rica dimensão poética com uso de repetições como recurso rítmico que mimetiza o estado mental da personagem e quebras de linha que criam efeitos visuais interessantes, de inspiração na poesia concreta. A voz narrativa de Maura trabalha com a representação do trauma de forma sofisticada, sua fragmentação textual como reflexo do trauma e a dissociação como mecanismo de defesa (Maura é responsabilizada pela morte da mãe em seu parto).

“Vento Vazio” se apresenta como uma obra de considerável densidade literária. Por intermédio da construção narrativa sofisticada, aliando aparente simplicidade com profundidade temática, o texto consegue articular questões universais a partir de uma perspectiva particular e única.

A tessitura em quatro vozes é coesa sem que haja descaminho da coerência interna. O universo ficcional é convincente e os personagens apresentam conflitos que transcendem seu contexto histórico específico. Marcela Dantés nos entrega uma obra com originalidade criativa capaz de dialogar com diferentes tipos de leitores. É um belo livro.

Roberson Guimarães é médico e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção.

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