As flores não vão até as borboletas

Sou um consumidor contumaz da poesia de Manoel de Barros. Estou com obesidade poética manuelina. Meus batimentos cardíacos estão no compasso. Aprendi com ele a aprimorar o aparelhamento dos meus olhos na observação das coisas. Aprendi também a apanhar desperdícios em cesta de colher frutas. Isso tem me possibilitado muitos assuntos para minhas escrevinhações, as quais muitas vezes vêm acontecendo sem que os meus ombros suportem o peso do assunto. Fato que tem me obrigado a ir na contramão do que recomendou o poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.) numa carta encaminhada a uma família de amigos — os Pisões: “pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar”.

Horácio especificamente fez tal recomendação àqueles envolvidos no ofício poético. Eu, entretanto, (metendo o bedelho) entendo que essa recomendação pode ser estendida a tudo que envolva o mundo da escrita (e até da oralidade). As palavras ocas, sem boca, decorrem dessa falta de força nos ombros… E em se tratando de crônica, como bem sabe você, altaneiro leitor, faz-se necessário haver algumas pitadas poéticas para adoçar o texto. Do contrário, a crônica não pode ser tida como tal.

Poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.): dele vem o termo carpe diem: “carpe diem quam minimum credula postero”: aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã
| Foto: Reprodução

Nessa minha reparação das coisas, às vezes costumo colher alguma metáfora. É a minha figura de linguagem predileta. As demais também admiro, cada uma, portanto, dentro do seu contexto enquanto ferramenta estética. A metáfora, metaforicamente falando, possui o poder maravilhoso de tirar a roupa nominal de um objeto para vesti-la em outro e a este tornar mais belo que o objeto original. Li não sei onde que “a metáfora resulta de um olhar privilegiado”. Não sei. Enfim, a respectiva figura está por aí, “em todas coisas”, como disse Goethe. Os olhos para encontrá-la é que são elas. Para isso, ouvi de um poeta, é preciso ser alfabetizado em borboletas.

Observando as borboletas nas flores, disso extraí uma metáfora (se de valor estético não sei): as flores não vão até as borboletas, como também às abelhas, aos beija-flores. Temos de caminhar até a felicidade, buscá-la naquilo onde supomos que ela esteja, como fazem os bichos nectarívoros: se dirigindo às flores. E isso tem de ser jogo rápido, pois a vida voa, é um sopro. E a gente, afinal, já começa a morrer a partir do momento em que se nasce, conforme disse o poeta Cassiano Ricardo em seu poema doído “O Relógio”. Nos quatro versos iniciais, o poeta dá um toque de alerta existencial: “Diante de coisa tão doída / conservemo-nos serenos. / Cada instante de vida / nunca é mais, é sempre menos”.

A morte chegará a todos de qualquer modo, até não fazendo nada no sentido de “cumprir a vida (…) e ir tocando em frente”. No entretempo entre a nossa chegada e a nossa partida, deve ocorrer a nossa movimentação de busca ao néctar da vida, como fazem os bichos em relação às flores. O que não quer dizer que essa busca seja sempre bem-sucedida. Já vi muitos insetos serem devorados por aranhas que, ardilosamente, se escondem entre as pétalas das flores para dar o seu bote certeiro. Isso é uma metáfora sinistra. O inesperado, afinal, tem esquinas mais diversas, com pedras de todos os tamanhos. A pedra maior, no entanto, é a inércia, a prostração existencial, que faz com que deixemos a vida esvair sem que suguemos o seu tutano.

Pedras se burilam esfregando-se uma na outra ao serem arrastadas pelas águas dos rios
| Foto: Reprodução

Sobre a busca da felicidade, esta só cai do céu para os pastores astutos em tosquiar a algibeira dos fiéis ingênuos, que não conseguem ver o diabo na fala embusteira que lhes persuade a abrir a carteira sem receber nadica de nada em troca. Isso, na verdade, é uma prolongação das famosas vendas de indulgência, que o monge alemão Martinho Lutero denunciou numa carta de 1517. Carta esta na qual estavam anexadas as suas célebres 95 teses, cujo teor questionava e criticava a extensão do poder do papa. Agora piorou, pois há, de acordo com dados do Censo 2022, 580 mil igrejas de diferentes tipos de religião no Brasil. Uma quantidade que supera o número de hospitais e de escolas (ambos somados). Cabe, portanto, perguntar: Deus está onde mesmo nessa barafunda de religiões?

Deixando de lado o pertinente lado do escárnio, a chuva também é felicidade que cai do céu. Ela enche os rios, aplaca a sede das plantas, engravida as sementes que dormem sob a pele da terra. Dessa gravidez vem o alimento para todos os bichos. E assim a vida vegetal e animal vai se perpetuando, e o mundo, de modo trôpego, vai caminhando numa insanidade assustadora e letal, com homens querendo fazer ninhos nas estrelas, visto que já apodreceram a Terra, assassinaram rios, bichos, pessoas com suas guerras estúpidas movidas por uma avareza sem tamanho.

Aranha se alimentando de uma pequena abelha capturada dentro da flor
| Foto: Sinésio Dioliveira

Para nós, altaneiro leitor, que não somos pastores astutos nem religião temos (mas apenas espiritualidade), só nos resta pegar a estrada e correr os riscos constantes que são inerentes à vida: bater em portas fechadas, falar a ouvidos surdos, acenar a olhos cegos, oferecer flores a robôs, semear sementes entre pedras e espinhos… Isso, no entanto, é necessário, pois o nosso burilamento interior não acontece sem enfrentamento de reveses. As pedras se burilam esfregando-se uma na outra ao serem arrastadas pelas águas dos rios, os quais, sem as pedras, seriam mudos.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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