Biografia revela paixão entre o poeta Mario Quintana e a jornalista Eloí Calage

“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.” — Mario Quintana

Mario Quintana é um dos principais poetas brasileiros. Entretanto, não é tão famoso quanto Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Ferreira Gullar. Por ter se mantido “isolado” em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, não se tornou canônico? Talvez. Drummond e João Cabral se tornaram mais “brasileiros” e menos mineiro e pernambucano ao se tornarem, por assim dizer, “cariocas”. Suas famas foram construídas no Rio de Janeiro de Machado de Assis.

Por ser menos canônico, Mario Quintana não ganhou biografias alentadas, como as de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues. A mais conhecida é “Mario Quintana — Vida e Obra”, de Nelson Fachinelli. Em 2024, pela Editora Tordesilhas, saiu “O Passarinho do Contra — Uma Biografia de Mario Quintana” (240 páginas), de Gustavo Grandinetti. Doutor em Direito e pós-doutor em Teoria das Ideias, o autor é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Gustavo Grandinetti: biógrafo examina a vida de Mario Quintana de maneira respeitosa | Foto: Facebook

Não há biografias definitivas a respeito de nenhum autor ou político. O tempo vai ampliando a história de um indivíduo. Mesmo os mortos e seus livros são “obras” em construção.

Grandinetti sabe que a vida de Mario Quintana contém mistérios que a razão não consegue decifrar (“por que o poeta teria dito que em ‘Orlando’”, de Virginia Woolf, “estaria metade de sua biografia?”). Mas o pesquisador fez um estudo sério e amplo. Seu livro é a porta de entrada para outros que quiserem escarafunchar a vida do bardo… inclusive de maneira menos pudica. Não será possível contorná-lo.

Eloí Calage havia sido convocada por Mario Quintana para escrever sua biografia. A jornalista e escritora, que, tendo nascido em Alegrete, como o bardo, e feito uma carreira profissional bem-sucedida no Rio de Janeiro, na TV Globo, estava morando em Goiânia, numa chácara.

Em 2005, depois de uma AVC, Eloí Calage não teve mais condições de pesquisar e escrever a biografia do amigo gaúcho. Aliás, bem antes disso, havia informado a Mario Quintana que, como a professora Tania Franco Carvalhal, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, havia reunido material para escrevê-la, havia desistido da empreitada. Na verdade, talvez lhe faltasse independência crítica, dada a forte amizade. A jornalista era de uma inteligência aguda.

Eloí Calage: relacionamento de grande doçura com Mário Quintana | Foto: Reprodução

Porém, Tania Franco Carvalhal morreu em 2006 e a biografia não saiu. A sobrinha preferida de Mario Quintana, Elena Quintana, incentivadora da biografia — autorizada —, morreu em 2019.

Cecília Meireles e Clarice Lispector: paixões

Mario Quintana e Eloí Calage se tornaram amigos. Sabendo de suas frequentes crises financeiras, a jornalista disse ao poeta que a Editora Globo poderia remunerá-lo mensalmente, “caso aceitasse relançar toda a sua obra pela editora, o que efetivamente foi feito”.

Como Mario Quintana “nunca se casou” chegaram “a cogitar de sua assexualidade”. Dulce Helfer, que o conheceu bem, afirma que o poeta não se relacionava com homens.

Apesar de ter se apaixonado por algumas mulheres, Mario Quintana não apreciava revelar seus nomes. Até porque algumas eram casadas. “Eu sempre me apaixonei e a paixão é incompatível com o amor. O apaixonado é ciumento, insuportável e o amor não vê razões sempre.”

Cecília Meireles e Clarice Lispector: paixões não correspondidas de Mario Quintana | Fotos: Reproduções

Clarice Lispector, Gilda Marinho e Lila Ripoll foram paixões do poeta. Mas ele não revelou a nenhuma delas, aparentemente, o que sentia.

Cecília Meireles influenciou a poesia de Mario Quintana e chegou a “corrigir” alguns de seus poemas. “O único poeta puro que conheci. Ela era a poesia em pessoa. Ela era muito bonita, todo mundo era apaixonado por ela, todos nós. Ela é muito minha amiga, foi quem publicou meus sonetos e poemas lá no Rio.” O bardo disse que gostaria de se casar com a poeta, mas não teve coragem de se declarar.

O amor entre Mario Quintana e Eloí Calage

Grandinetti relata que uma das paixões de Mario Quintana era a jornalista que planejava biografá-lo. “Outra paixão de Quintana foi Eloí Calage, confirmada por Paula Quintana Biazus, sobrinha-bisneta do poeta e sobrinha de Elena Quintana. Paula ouviu essa versão da própria Elena.”

Eloí Calage e Elena Quintana eram amigas. “A análise do acervo de correspondência do poeta leva a insinuar um amor talvez proibido, talvez furtivo, com Eloí Calage. Há um grande volume de cartas de Eloí. Tratava-se de uma jornalista conceituada, casada, nascida em 1942, ou seja, 36 anos mais nova que ele. Suas cartas ao poeta são testemunhos de um amor sincero e bonito, verdadeiros poemas em prosa, dignos de comporem uma obra poética. Foram escritas de 1966 até a morte de Quintana”, anota Grandinetti.

Numa carta de 1966, quando tinha apenas 22 anos, Eloí Calage escreveu: “Tu és os meus vidros… coisa tão funda que transparente. Mas eternamente frágil. (…) Gostei de andar ao teu lado, só nós dois, pela rua. Da próxima vez gostaria de tomar um café sentado, tenho saudades de nós dois. Não há nada como estar a sós e a dois”.

Noutra carta, Eloí Calage diz: “Te amo despudoramente” (não há data). “Hoje (…) disse que você e eu somos uma maneira de eu ser infiel a ele. Fiquei quieta, como devia. Mas, amigo, se o meu amor por ti vai ser só uma nesga de um outro amor… o amor que vos tenho, meu senhor, tem o gosto de minha vida. Não dessa vida vivida, que é tão contrária ao amor, mas da vida sonhada, desta vida eu vivemos, em outro mundo.”

Em agosto de 1986, Eloí Calage escreveu para Mario Quintana, então com 80 anos (ela com 44): “Ontem, à noite, fiquei pensando que louco amor é este que nós sentimos por nós. Às vezes, acho que não é a ti que eu amo, mas a nós”. Fica-se com a impressão que se trata mais de uma paixão de sensibilidades — de espíritos complementares, digamos —, de pessoas altamente afins, mas não necessariamente em termos do que se convencionou entender por “sexualidade”. Um amor, por assim dizer, romântico, mais de alma do que de corpo. Talvez. Porque nunca se tem certeza sobre amores alheios.

Noutra carta, Eloí assinala: “fiquei muito pensando em nós e como eu sempre te quis, dum jeito único, como só quero a ti. em geral, as pessoas confundem único com um só. como se o único amor se confundisse com esta coisa menor, que exclui todos os outros amores. tu és, duma maneira mais livre o único amor que eu tenho. tem uma Eloí que só existe contigo, estejas tu por perto ou não, não preciso sequer de uma foto, tu existes dentro de mim”. A pontuação diferenciada é da missivista.

Mario Quintana: um poeta não engajado mas com um olhar atento para o cotidiano | Foto: Reprodução

Em 1994, quando Mario Quintana morreu, aos 87 anos, Eloí escreveu uma carta para Elena Quintana: “E eu continuo amando esperançadamente o Mario Quintana, que não teve outro amor tão grande quando o que entregou à poesia, o menino louco… Nunca acreditei ser a grande amiga, nunca. Aí estava a beleza da gente. Quando ele escreveu que todos os poemas são de amor e me falou de um amor especial, único, me lembro que respondi: ‘Que bobagem, Mario; todos os amores são de acácias-mimosas na praça’. Quando me deixou na parada do bonde, ele deu uma gargalhada: ‘Guriazinha, estamos perdidos! Tu estás deixando de ser burrinha…’. E citou o poema ‘As estrelas’”.

Talvez tenha sido, sugere Grandinetti , o poema “Das utopias” (de 1945), “um dos mais bonitos de Mario e que pode muito bem explicar o relacionamento deles: “Se as coisas são inatingíveis… ora!/ não é motivo para não querê-las…/ Que tristes os caminhos, se não fora/ a mágica presença das estrelas!”

A Augusto Meyer, Mario Quintana disse que Eloí Calage (de fato, uma mulher exuberante, que exalava simpatia) era parecida com a atriz Claudia Cardinale, o que a agradou. O poeta “a teria definido como ‘um bicho solitário, mas com inquietantes tendências para gente”.

Grandinetti escreve que, “seja qual tenha sido o sentimento e seja qual tenha sido a sua possibilidade, foi algo muito profundo, a julgar pela beleza e leveza das cartas”. São poéticas. De uma delicadeza e doçura ímpares.

Não se sabe o que Mario Quintana respondeu para Eloí Calage. “Mas pode-se suspeitar que o amor era correspondido. Há cartas de Quintana para Eloí que estão com sua irmã Aurea Marisa Duarte Calage, contudo, não é possível consultá-las”, esclarece Grandinetti.

“No amor, uma pessoa inventa a outra”

Artífice de fragmentos amorosos, no formato de poemas, Mario Quintana posicionou-se: “As pessoas insistem em saber para quem são os meus poemas de amor. Não são para ninguém. A gente ama no ar”.

Numa entrevista, Mario Quintana disse: “No amor, uma pessoa inventa a outra. Ninguém pode ter as qualidades que o amador sente na pessoa amada. O amor é a vitória da imaginação. (…) Quem ama inventa as coisas a que ama”.

“Amar é mudar a alma da casa./ Os que fazem amor não estão fazendo amor: estão dando corda/ ao relógio do mundo”, disse, num poema, Mario Quintana.

Quem mais trocava cartas com Mario Quintana eram Eloí Calage, Liane dos Santos e a atriz e poeta Bruna Lombardi.

Num texto sobre Mario Quintana, publicado no “Correio do Povo”, Eloí Calage conta que o poeta era “incapaz para as coisas práticas da vida, guichês, formulários, talões, direitos, tudo isso o deixa tonto”.

“Esse jeito meio trôpego, esse andar à deriva, não é coisa de velho, ele sempre andou assim, meio fora do esquadro, lembrando um pouco o seu Anjo Malaquias”, escreveu Eloí Calage.

Como todo mundo, Mario Quintana teve um primeiro amor, “supostamente não correspondido”. O nome da mulher era Malsi. A revelação foi feita unicamente a Eloí Calage. “Quintana teria feito um trocadilho com o nome: ‘A vida é um ai que malsoa’”, diz Grandinetti.

O bardo gaúcho (que havia sido militar) “gostava de um café preto bem forte, que ele chamava de ‘café sentado’, pois não aceitava bebê-lo em pé no balcão de um bar. Gostava também de quindins. Adorava filmes, principalmente de terror”.

Grandinetti lista os autores preferidos de Mario Quintana: António Nobre, Cecília Meirelles, Camões, García Lorca, Apollinaire, Verlaine, Racine, Shakespeare e Dostoiévski. Não são citados Proust e Virginia Woolf, que ele traduziu tão bem.

A biografia não trata evidentemente apenas de seu relacionamento com Eloí Calage. Destaquei um trecho.

Falhas corrigíveis na próxima edição

Há falhas, que não empalidecem a qualidade do excelente livro: o índice remissivo deixa de fora várias pessoas — ao menos setenta — que são citadas no livro. E há pessoas listadas no índice, mas não em todas as páginas.

Grandinetti lembra que Mario Quintana não apreciava que se acentuasse seu prenome. Mas o biógrafo escreve Érico Veríssimo, e não, como o prosador queria, Erico Verissimo. O escritor português António Nobre vira Antônio. Manuel Bandeira perdeu o “u” e ganhou um “o” — “Manoel”.

O biógrafo diz que Eloí Calage morreu em 2005, em decorrência de problemas intestinais, “após um AVC anterior”. Na verdade, o acidente vascular cerebral, do qual se tratou no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, ocorreu em 2005. Mas a jornalista e escritora morreu em julho de 2018. Curiosamente, Grandinetti cita o Jornal Opção, que deu a informação correta, mas o biógrafo comete o erro.

Leia sobre a morte da escritora e jornalista Eloí Calage

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