“Misericórdia”, romance de Lídia Jorge, aborda com sensibilidade a velhice e o cotidiano de uma casa de repouso

Mariza Santana

O Hotel Paraíso, na fictícia cidade portuguesa de Valmares, não é um local de hospedagem comum, e não o paraíso que o seu nome sugere. Mas sim uma casa de repouso, ou como se diz no Brasil, uma instituição de longa permanência (ILPI). Nela reside Maria Alberta, Dona Alberti como é conhecida pelos internos e funcionários da casa. Com dificuldade de locomoção (ela utiliza uma cadeira de rodas, que, na versão portuguesa, é chamada de charrete), tem movimentos das mãos comprometidos, porém esta senhora ainda tem uma mente ágil.

Observadora, Dona Alberti registra em gravador os relatos do cotidiano da clínica geriátrica — quem chega e quem parte, os cuidadores e suas diversas nacionalidades (inclusive brasileira), assim como os eventos que mexem com a tranquilidade do local. Todas essas impressões são romanceadas pela sua filha escritora e se torna um testemunho emocionante do final do ciclo de um ser humano. O livro “Misericórdia” (Autêntica, 384 páginas), da escritora portuguesa Lídia Jorge, aborda, com muita sensibilidade, esse momento derradeiro da vida que é a velhice, mostrando sua fragilidade e fortaleza, sua beleza e sua face hedionda.

Dona Alberti está sempre às voltas com os desafios da Noite, que lhe apresenta charadas geográficas e filosóficas. Ela, que é proprietária de um Atlas e possuía também um globo terrestre luminoso, precisa responder as perguntas da funesta inquiridora. “Baku é capital de qual país?”, questiona a Noite, que, na minha avaliação, se apresenta como a figura da morte, sempre a espreitar e atormentar a personagem nos períodos noturnos insones, talvez apenas um recurso literário utilizado pela escritora.

Lídia Jorge: escritora portuguesa | Foto: Reprodução

A descrição dos companheiros da casa de repouso, do ponto de vista de Dona Alberti, reflete uma humanidade profunda. Uma interna que está sempre em busca do amor; a outra, se diz nobre e tem um filho piloto de avião; o sargento, do qual ela guarda com carinho um simples bilhete; o revolucionário que conseguiu por meio do seu protesto que todos tivessem direito a um ovo estrelado adicionado à refeição do almoço; o pianista com dificuldade de locomoção que divertia os demais com suas apresentações musicais; o advogado que não abria mão de ler diariamente as notícias dos jornais; os colegas do carteado.

A cuidadora brasileira de Marabá

Dona Alberti apresenta ainda os cuidadores e cuidadoras que passam pela casa, com suas características, esperanças e vivências. Dois deles foram considerados especiais: o marroquino Ali, homossexual que foi vítima da intolerância e do preconceito de um interno malvado, o senhor Tavares, causando a repulsa da protagonista; e a jovem brasileira, paraense de Marabá, Lilimunde, com seu cheiro de bergamota, que se apaixona por um jovem cientista húngaro.

Tudo é relatado com muita sensibilidade e empatia, mas também às vezes com um misto de ironia e visão crítica, nessa dualidade tão comum ao ser humano. Um dos episódios interessantes é quando um fotógrafo profissional visita a casa, causando a revolta de Dona Alberti, que considera o trabalho dito artístico dele uma afronta à dignidade dos idosos, e se nega a colaborar, angariando a adesão de outros internos.

Outro episódio que vale destacar é a invasão das formigas ladra, aquelas formiguinhas domésticas que recebem este nome pelo hábito de fazer ninhos perto e, em alguns casos, dentro dos ninhos de outras formigas, das quais roubam comida Por um milagre, ou uma simples medida preventiva da cuidadora, mera obra do acaso, Dona Alberti foi uma das poucas pessoas da casa que não foi atacada por esses insetos que saíram das profundidades devido ao forte calor do verão alentejano (sim, a fictícia cidade de Valmares estaria localizada em algum lugar no Algarve, à beira mar), para cobrir roupas e corpos dos internos, trazendo doença e morte.

Dona Alberti fala de sua filha escritora e do genro, e do sedutor Edgar de Paula, que seria o pai de sua progênita. No final, o leitor acompanha a celebração da chegada de 2000, escolhido pelos internos do Hotel Paraíso como o Ano do Carro, mas que na realidade se tornaria o Ano da Covid-19, pandemia que paralisou o mundo e ceifou milhões de vidas no planeta.

“Misericórdia” mostra que existem vida, emoções, acontecimentos e tudo o mais dentro de uma casa de repouso, onde as pessoas ficam sob cuidados paliativos. Mais do que isso, o livro nos convida a refletir sobre os últimos instantes da vida e como pensamos passar por eles.

Lídia Jorge, de 78 anos, nasceu no Algarve, em Boliqueime. É autora de romances, contos, crônicas, ensaios e poesias. O livro “Misericórdia”, publicado em 2022, é uma homenagem a sua mãe, Maria dos Remédios, que morreu durante a pandemia de Covid-19. Por essa obra, a escritora recebeu um conjunto de prêmios literários.

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. Email: [email protected]

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