Agudeza de Itamar Vieira Júnior, em Salvar o Fogo, o faz trilhar as veredas da sutileza

Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

O fogo já tinha sido salvo, segundo nos informa a rica mitologia grega, pelo titã Prometeu, que pagou um alto preço por isso ao desobedecer às ordens de Zeus. Acorrentado que foi a um rochedo, no monte Cáucaso, seu fígado era devorado por uma águia que, para maior sofrimento, reconstituía-se e era novamente devorado, dia a dia, martírio quase interminável, tal como a Sísifo, ao rolar eternamente uma pedra montanha acima. O Mito de Prometeu deu origem a uma das principais tragédias gregas, “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, e continua a perseguir a imaginação de escritores.

As trágicas histórias gregas, aparentemente fantásticas, não são mais do que a representação fabúlica de uma realidade factível. O uso do fogo é um ato exemplarmente maniqueísta, e não se pode fugir desse fato; ou é para o bem ou para o mal. Mas não devemos supor racionalidade ao irascível Zeus…

Não é sem motivo que o fogo é tratado como um elemento do Hades grego e do Inferno cristão e, bizarramente, como o elemento propiciador da civilização. Em “Fausto”, do escritor alemão Goethe, Mefistófeles realizava festas, para gáudio do Doutor Fausto, nas quais a pirotecnia era a grande atração. Brincava-se alegremente com as perigosas chamas mefistofélicas.

Elos entre Torto Arado e Salvar o Fogo

Em 2024 o ganhador do disputado Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, foi o escritor baiano Itamar Vieira Junior (1979) com o romance “Salvar o Fogo” (Todavia, 320 páginas). Ele é o autor de “Torto Arado”, livro que recebeu o Prêmio Jabuti, em 2020.

Por que salvar o fogo? A importância do fator “fogo”, na trama, é desvendada no decorrer da leitura.

Quem leu “Torto Arado” encontrará verossimilhanças entre os dois romances. Ambos tratam de assuntos que remetem ao meio rural, tendo como partícipes famílias que vivem na extrema pobreza, analfabetismo, abusos econômicos e preconceitos social e racial. Os ambientes físicos e humanos têm a mesma paisagem, e remetem à desigualdade social existente na sociedade brasileira e às dificuldades inerentes à classe mais desfavorecida.

Itamar Vieira Junior: um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade | Foto: Divulgação

As similaridades entre os citados romances vão além dos elementos já citados: passam pelo protagonismo de dois irmãos, Bibiana e Belonísia e de Moisés e Luzia; passam por um defeito físico em Belonísia e também em Luzia. Itamar Vieira Junior segue um roteiro em “Salvar o Fogo” muito semelhante ao de “Torto Arado”, com foco nas questões sociais, na posse da terra e na precária condição humana, como consequência da miséria e ignorância, e com soluções esperadas. As estruturas da concepção criativa e seu posterior desenvolvimento se assemelham. A simbiose se completa com o surgimento de Belonísia também como personagem de “Salvar o Fogo”.

Itamar Vieira Junior é graduado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pela qual tem mestrado. Sendo servidor público do Incra, tem contato com a questão fundiária da posse da terra, o que lhe propiciou o conhecimento que embasa sua criação ficcional, dando-lhe a veracidade dos fatos. Pode-se dizer que nos dois romances está impresso o DNA do autor.

Também na música, como na literatura, percebem-se as impressões digitais dos compositores. Na música erudita reconhece-se Chopin pelos acordes majestosos, bem como o preciosismo barroco-classicista é característica de Mozart. No entanto, os traços que caracterizam as obras de grandes compositores musicais ou literários, dão-lhes certidão de paternidade sem tirar-lhes a singularidade criativa, peculiar a cada obra. Isto acontece também com “Salvar o Fogo”, de Itamar Vieira Junior.

Romance é uma obra polifônica

“Salvar o Fogo” é uma obra polifônica, narrada pelos dois personagens principais, os irmãos Moisés e Luzia, e por um narrador onisciente, em momentos distintos, como aconteceu em “Torto Arado”, narrado por Bibiana e Belonísia. Cada um dos dois irmãos, Moisés e Luzia, fornece sua experiência e visão particulares, ampliando o entendimento da história e enriquecendo-a com suas especificidades. O narrador onisciente encarrega-se de contar a vida da família como um todo, no passado e no presente, família de seis filhos, cujos pais são Mundinho e Alzira.

Moisés presta um emocionado depoimento de vida, inserindo-se como irmão caçula, criado por quem pensava ser sua irmã mais velha, Luzia, pois a acreditada mãe morrera pouco tempo depois de seu nascimento. Sente-se tratado com rispidez e dureza pela irmã. Esta o leva para estudar na escola do mosteiro. Os monges dominavam as terras, pertencentes à Igreja, e a eles era pago um imposto por todos os habitantes de Tapera. Lá Moisés estudou até a adolescência.

Todos os filhos abandonam o vilarejo à procura de um futuro melhor, mas Luzia permanece com o pai.

Luzia também vive seu inferno astral, uma vida de miséria e sofrimento, lavando a roupa do mosteiro e sendo humilhada pela população de Tapera, lugarejo onde viviam. Viu crescer em suas costas uma corcunda e passou a ser apontada como bruxa e acusada de feitiçaria. Aqui, o romance perpetua a moral transmitida pelas fábulas sobre bruxas corcundas, inserindo-lhe um viés mágico-fabulístico.

A sensibilidade do autor o leva por um caminho em geral pouco percorrido. Sua agudeza o faz trilhar as veredas da sutileza, encontrando nas atitudes e atividades de uma vida miserável a dignidade do ser humano. Nada lhe escapa, nem mesmo a relação de amor e respeito dos paupérrimos e quase insignificantes personagens para com a Mãe Natureza. O caudaloso Rio Paraguaçu significa seu sustento e fartura e o caminho para a liberdade.

A grande intimidade do autor com a ação, os personagens, o tempo e a trama do romance, resulta do fato de ele ser profundo conhecedor do interior da Bahia, onde é passada a história, e da vida dos despossuídos de terra. Sente-se à vontade e familiarizado com o assunto, lembrando Gabriel Garcia Márquez e suas histórias de cunho autóctone.

Itamar Vieira dá, a cada personagem, sua verdadeira dimensão humana, independentemente de serem analfabetos, ou miseráveis, ou pobres. São vistos com a inteireza de suas almas e inteligências.

Um segredo de família surpreende o leitor e mostra a engenhosidade criativa do escritor.

A forte crítica social é o ponto alto do livro: as questões agrárias referentes aos despossuídos de terra e explorados, mas ao mesmo tempo protegidos pela Igreja; sua expulsão das terras pelos ricos proprietários; a pedofilia, envolvendo a Igreja Católica; o desamparo, pelas autoridades, dos menos favorecidos. Enfim, é o mundo cão de vastas regiões do interior do país, representado pela narrativa de um autor que se dedica a denunciar as injustiças através de sua tocante obra ficcional.

Voltemos ao fogo. Onde ele se encaixa na história? O fogo é um personagem ardiloso e silencioso. O título teria sido mera frase de efeito se ele não estivesse presente no livro, do começo ao fim. Plantações queimadas, a igreja tragada pelas chamas, seu Mundinho morto e as peripécias de uma menina paranormal, que fazia o fogo surgir pela força do pensamento, lembrando a dança das labaredas, em “Fausto”.

Se solto, o fogo é destruidor, mas pode também ser purificador. Se controlado, é uma dádiva para a vida e o progresso. Sua ambivalência torna-o temido e desejado, servo de Deus e do diabo, mensageiro do Hades e propiciador da vida. Para o Velho Anhanguera o fogo foi símbolo de domínio.

Impossível não pensar no herói grego. Os sofrimentos de Prometeu repetiram-se na protagonista do romance, que também pagou um alto preço pelo fascínio pelo fogo, em um microcosmo tupiniquim. O livro reitera o poder devastador e purificador desse elemento. Contudo, ler “Salvar o Fogo” é uma tarefa extremamente prazerosa e enriquecedora. Quem o ler verá.

Marina Teixeira da Silva Canedo é crítica literária, poeta e cronista. É colaboradora do Jornal Opção.

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