Dois Apolos: um deus, o outro um cachorro

“Eu não o vi chegar. Só o percebi quando ele colocou sua cabeça em meu colo e me olhou com um olhar de sofrimento, um olhar de pedido de socorro. (E ele realmente necessitava de ajuda.) Nunca me esquecerei desse dia.” Este relato é da minha amiga de trabalho. Seu nome é Ivonete de Abreu Honorato Ramos. O nome é um pouco grande, mas não do tamanho de sua amabilidade. O que lhe é algo natural. Ivonete passa longe do perigo da traição e maledicência das pessoas demasiadamente educadas e lisonjeiras. Vale lembrar que Judas Iscariotes, em conluio com os sacerdotes, beijou Jesus em troca de 30 moedas de prata.

Essas características dessa laia de pessoas é meramente uma estratégia com o intuito de esconder o seu veneno. Essa laia é diferente da cobra cascavel, que, antes do seu bote, balança o seu chocalho e assim emite um alerta de perigo. O riso de amizade dessa turba desalmada é tão verdadeiro como uma nota de quinhentos reais. Você, altaneiro leitor, certamente conhece alguém desse time que joga contra a boa relação, contra a camaradagem, como certamente também conhece alguém com a candura de Ivonete.

O veneno dessa malta malvada no fim sempre aparece. É como consta na fábula “O Sapo e o Escorpião”, que não é de Esopo (620 a.C. – Delfos, 564 a.C.), mas de um autor desconhecido. Por um bom tempo pensei que era de Esopo, cujo final de vida foi abominável. Injustamente, ele foi jogado do alto de um rochedo sob a acusação de ter roubado uma taça de ouro do interior do templo dedicado à adoração a Apolo, filho do todo poderoso Zeus e Leto. Apolo está entre os deuses mais importantes da mitologia grega: era o deus do sol, das artes, da medicina… Segundo o historiador e filósofo Plutarco (46 d.C. – Delfos, 120 d.C.), a morte de Esopo veio de uma tramoia arquitetada por sacerdotes do templo, cujas mutretas foram denunciadas pelo fabulista. Mutreta é coisa que conhecemos bem nos dias de hoje e que vai chegar aos dias de amanhã como ocorreu nos dias de ontem.

Voltando a Apolo, porém não o deus grego, mas o que colocou a sua cabeça no colo da minha amiga Ivonete e, num olhar de sofrimento, pediu socorro. Este Apolo é um cachorro pastor-alemão. Tem sete anos. Seu pedido de socorro tinha a ver com algo em seu pescoço: um abcesso grande e soltando pus. Ivonete, então, sensibilizada com o sofrimento do cachorro, mobilizou outros colegas, e Apolo foi levado a um veterinário. Houve um gasto de quase mil e quatrocentos reais. Valor que foi rateado.

Não entrei nessa vaquinha. Teria entrado de boa. Eu sabia da história do Apolo por alto, mas não desses detalhes de sua doença. Inclusive tenho um bom entrosamento com ele, pois constantemente vou à garagem em que vive. É bem cuidado por todos, sobretudo pelo Divino, um dos motoristas. O cão é um grandalhão dócil. Foi recentemente que tomei conhecimento detalhado de sua vida. Comentando com o Divino sobre o porquê de o dono não ter procurado o cachorro, ter divulgado imagem dele em redes sociais, em postes, ele acha que o animal pode ter sido abandonado. E isso, segundo ele, pelo fato da infecção no pescoço, talvez pela falta de dinheiro do dono ou do seu desamor para com o animal num momento tão necessário. A razão disso agora é algo secundário. O essencial é que Apolo é um cachorro especial para muitos.

Nem todos os animais abandonados têm, portanto, um final feliz como o de Apolo: de ser adotado coletivamente. Domingo passado pela manhã, vi três gatinhos abandonados dentro da mata do Bosque dos Buritis. Pelo fato de não aparecer ninguém para adotá-los, eles vão crescendo por lá. Há gatos adultos no parque. Já vi uns três. Além da comida que uma senhora (que chega de madrugadinha) coloca para eles, as aves do parque também entram na alimentação dos felinos, principalmente as saracuras. Tais aves são as presas mais frequentes pelo fato de elas mais andarem no chão do que voarem. Os bichanos, ao vê-las, vão se rastejando até ser possível um bote fatal. Havia muitas nos parques, antes da chegada dos gatos.

Gatos abandonados no Bosque dos Buritis, eles são predadores das aves do parque | Foto: Sinésio Dioliveira

Foi-se o tempo de visitação do Bosque dos Buritis em que a gente chegava lá e ouvia o canto de muitas saracuras. Uma cantando ali, outra acolá, enfim em várias partes do parque.

Saracura-três-potes no Bosque dos Buritis; seu nome é onomatopaico: vem do seu canto | Foto: Sinésio Dioliveira

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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