A demolição de um ícone da arquitetura moderna; entenda o contexto da antiga sede da Celg

O prédio da antiga sede das Centrais Elétricas de Goiás (Celg), situado na Avenida Anhanguera, no Setor Oeste de Goiânia, foi inaugurado no final dos anos 1950 e se destacava como um ícone da arquitetura modernista. Projetado pelos engenheiros Oton Nascimento e Gustav Ritter, o edifício representava a modernização da cidade e se tornou um dos marcos da arquitetura do período. Sua localização estratégica, cercada por outros edifícios de relevância histórica, consolidava a importância do imóvel na paisagem urbana goianiense.

Após a desocupação pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc) em 2019, o prédio entrou em um processo de abandono, sofrendo com infiltrações, depredações e atos de vandalismo, como o caso do afresco de Frei Nazareno Confaloni, que foi danificado em 2020. Sem manutenção adequada, o edifício se deteriorou rapidamente, tornando-se um símbolo da negligência urbana. Apesar de seu valor histórico, o imóvel foi sendo gradualmente apagado da memória coletiva de Goiânia.

Em 2019, iniciou-se o processo para o tombamento do prédio, com a intenção de preservá-lo como um patrimônio histórico. No entanto, em 2023, o Conselho Estadual de Cultura (CEC) rejeitou o pedido, argumentando que o avançado estado de degradação da estrutura impossibilitava uma restauração fiel e autêntica, o que caracterizaria um “falso histórico”.

A partir de 2021, os proprietários solicitaram permissão para demolir o edifício, gerando protestos do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO) e outras entidades, que defendiam a preservação do patrimônio arquitetônico. Mesmo com a oposição, a demolição foi finalmente autorizada em 2024.

Prédio em processo de demolição | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Com o início das obras de demolição em fevereiro de 2024, Goiânia perde mais um importante exemplar de sua arquitetura modernista. A cidade, que já enfrentou a substituição de outros edifícios históricos ao longo dos anos, se despede de um ícone que marcou uma fase de crescimento e inovação.

O debate sobre a preservação do patrimônio arquitetônico moderno se intensifica, especialmente em um momento em que a cidade precisa refletir sobre a valorização de seus espaços culturais e históricos, que são fundamentais para a construção de uma identidade urbana sólida e representativa.

O que dizem especialistas da Universidade?

A antropóloga Izabela Tamaso, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro do Conselho Consultivo do Iphan, discute os impactos da demolição da antiga sede da Celg, um marco da arquitetura modernista em Goiânia. Para Tamaso, embora o edifício fosse amplamente reconhecido por especialistas como um ícone da arquitetura local, sua ausência de reconhecimento formal impediu sua proteção.

O fato de ele ser considerado ícone da arquitetura modernista em Goiânia não faz dele um patrimônio. O que faz dele um patrimônio é o reconhecimento oficial.

Izabela Tamaso, antropóloga e professora UFG

Izabela Tamaso, antropóloga e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro do Conselho Consultivo do Iphan | Foto: Arquivo pessoal

Segundo a antropóloga, essa falta de proteção jurídica torna qualquer edifício vulnerável à especulação imobiliária, especialmente em cidades com grande potencial de desenvolvimento, como Goiânia, onde os interesses privados frequentemente prevalecem.

A demolição da antiga sede da Celg, para Tamaso, é um reflexo de uma tendência maior de perda do patrimônio arquitetônico modernista de Goiânia. “A implicação dessa demolição é gerar mais demolições, é o fato também de provocar uma aceleração das demolições de arquitetura modernista, com receio de que elas venham a ser tombadas”, adverte.

A cidade, que foi projetada no século XX com uma forte influência da arquitetura modernista, está perdendo suas referências estéticas e históricas. Para ela, esse processo não apenas empobrece a paisagem urbana, mas também apaga uma parte importante da identidade cultural da cidade.

Tamaso também destaca a responsabilidade do empresariado na preservação do patrimônio, sugerindo que, caso os proprietários do prédio da Celg tivessem se sensibilizado, poderiam ter evitado sua destruição. “A proteção especial poderia vir do empresariado, que poderia se sensibilizar e transformar o prédio em um centro cultural, por exemplo”, propõe.

Embora o tombamento seja a principal ferramenta de proteção, a antropóloga aponta que a iniciativa privada tem um papel importante na preservação do patrimônio. Quando as empresas demonstram interesse em conservar edificações de valor histórico, elas podem garantir a preservação sem depender exclusivamente das ações do Estado, o que, infelizmente, é uma raridade na prática.

Mudda, o Museu do Depois do Amanhã

Em Goiânia, o Mudda (Museu do Depois do Amanhã) se tornou um projeto singular ao ocupar as ruínas da antiga sede da Celg, um edifício carregado de simbolismo e de história para a cidade. Criado por Glauco Gonçalves e Luiz da Luz, o Mudda propôs uma nova maneira de ver a arte e o patrimônio, transformando o que parecia ser um espaço abandonado em um ponto de vivência cultural.

Ocupação artística do Mudda | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Segundo Luiz da Luz, “encontramos nesse prédio uma oportunidade de resgatar a história e transformar um local em desuso em um lugar de convivência e de arte”, destacando o caráter de reapropriação e transformação do espaço.

Glauco Gonçalves, que além de cofundador do Mudda é professor e professor na UFG, destaca a autonomia do projeto, que não depende de apoios institucionais e segue uma linha independente de atuação. “O Mudda não é vinculado a nenhuma secretaria ou órgão público, sendo uma ocupação artística autônoma, com total liberdade para interagir com o espaço e com a cidade”, explica Glauco.

Ele frisa que o museu busca abrir um debate sobre a preservação do patrimônio e sobre o que se perde quando esses espaços são descartados sem uma reflexão mais profunda.

O projeto vai muito além de um espaço físico; é uma iniciativa que busca trazer à tona a discussão sobre o uso e o destino dos edifícios históricos e do patrimônio urbano.

Glauco Gonçalves, cofundador do Mudda e professor UFG

Glauco Gonçalves, cofundador do Mudda, pesquisador e professor na UFG | Foto: Arquivo pessoal

A escolha do edifício da Celg, no entanto, não foi casual. Para Luiz, o antigo prédio, que já foi um marco da modernização do estado de Goiás, carrega consigo um simbolismo único. “Esse prédio foi um dos principais responsáveis pela entrada da energia elétrica nas casas de Goiás, representando um avanço tecnológico e social. Ao ocupar esse espaço, queríamos fazer com que as pessoas olhassem para ele não como um simples prédio antigo, mas como um lugar com uma memória coletiva a ser preservada”, conta Luiz.

O Mudda não apenas reabre o diálogo com o passado, mas também dá nova vida ao edifício, com intervenções artísticas que, de acordo com ele, transformam o espaço e ressignificam sua existência:

Transformamos o que parecia ser um prédio abandonado em um museu vivo, pulsante e cheio de histórias para contar

Luiz da Luz, cofundandor do Mudda e Jornalista

Ocupação artística do Mudda | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Por fim, Glauco reflete sobre os desafios da preservação do patrimônio e sobre a fragilidade das iniciativas de conservação diante das pressões econômicas. “A demolição desse edifício não é apenas a perda de uma estrutura, mas a destruição de um ícone da arquitetura moderna em Goiás”, lamenta.

Para ele, o Mudda serve como um exemplo de como a arte pode ser uma poderosa ferramenta de preservação e de transformação, ao mesmo tempo que provoca a cidade a repensar seu futuro e o legado que deseja deixar. “O projeto vai continuar, independente do futuro do prédio. O Mudda é uma ideia que vai além dos muros de qualquer edifício, é um movimento em prol da memória e da arte urbana”, conclui, reafirmando que o legado do Mudda é maior do que qualquer estrutura física.

Avaliação do CAU/GO 

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU/GO), sob a presidência de Simone Buiate, manifesta forte preocupação com a iminente demolição da antiga sede da Celg, um dos marcos da arquitetura modernista em Goiânia. Em suas declarações, Simone lamentou profundamente a decisão, destacando que o edifício da Celg é parte integrante de um circuito histórico da cidade, ao lado de outros espaços significativos, como o Lago das Rosas e o Estádio Serra Dourada. 

“A demolição desse prédio é uma perda irreparável, pois ele não é apenas um exemplo de arquitetura modernista, mas um símbolo da construção e da identidade de Goiânia”, afirmou a presidente. Ela frisou ainda que a destruição de construções históricas tem sido um processo recorrente na cidade, prejudicando a preservação da memória urbana e enfraquecendo os laços com a história de seu desenvolvimento.

Simone também enfatizou a necessidade de estratégias mais eficazes para proteger e valorizar o patrimônio arquitetônico, além do simples tombamento de edifícios.

A preservação pode e deve coexistir com o crescimento urbano, mas é fundamental que adotemos políticas públicas, como incentivos fiscais e financeiros, para garantir a manutenção desses imóveis

Simone Buiate, presidente CAU/GO

Simone Buiate, presidente CAU/GO | Foto: Redes Sociais

Ela sugeriu, por exemplo, a utilização de mecanismos como a Transferência do Direito de Construir (TDC), que permite a venda do potencial construtivo de um imóvel histórico em troca de sua preservação.

A presidente destacou ainda a importância de um esforço coletivo para conscientizar a população e envolver os órgãos competentes na criação de soluções sustentáveis para a conservação de bens culturais, evitando assim o apagamento gradual da história de Goiânia.

A colaboração da Secult

A Secretaria de Estado de Cultura de Goiás (Secult) encaminhou ao Conselho Estadual de Cultura (CEC) um parecer detalhado sobre o tombamento da antiga sede da CELG e do painel de Frei Confaloni, localizado no mesmo imóvel. A análise foi realizada pela Câmara Técnica nº 3, especializada em Ciências Humanas, Memória e Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural. O parecer abrangeu diversos aspectos, desde a avaliação do valor histórico e cultural dos bens até a condição de preservação, visando orientar decisões sobre sua preservação ou eventual tombamento.

Durante a análise, a Câmara Técnica considerou o estado de deterioração dos bens. Após visitas técnicas e uma análise minuciosa dos documentos, concluiu-se que tanto o imóvel da antiga sede da CELG quanto o painel de Frei Confaloni estão em grave estado de conservação. O painel, em particular, sofreu danos significativos devido a vandalismo, com a aplicação de tintas e outros materiais que comprometeram sua integridade.

Além disso, a parede que sustenta o painel está fragilizada. O imóvel também se encontra deteriorado, sendo necessária uma reconstrução completa que resultaria em um “falso histórico”, sem garantir a preservação das características originais do edifício. Com base nesse diagnóstico, a Câmara Técnica opinou pelo não tombamento definitivo dos dois bens, argumentando que sua preservação, nas condições atuais, não é viável.

Apesar de não recomendar o tombamento, a Câmara Técnica reconheceu a importância do painel de Frei Confaloni como uma obra de valor histórico significativo e apoiou sua doação para o Estado. A doação, no entanto, deve ser acompanhada de um conjunto de exigências técnicas, incluindo um processo adequado de restauração, remoção e transporte da obra.

A Câmara também ressaltou que, após a restauração do painel, um novo processo de tombamento poderá ser iniciado, caso as condições de preservação se mostrem adequadas. O parecer foi assinado pelos conselheiros Antônio Celso Ramos Jubé, Aguinaldo Caiado de Castro Aquino Coelho, Allyson Ribeiro e Silva Cabral, e Carlos Willian Leite, presidente do CEC.

Decisões Conselho Estadual de Cultura (CEC)

O Conselho Estadual de Cultura (CEC) decidiu não proceder com o tombamento definitivo do prédio da antiga sede da CELG, em Goiânia, com base em uma análise técnica detalhada sobre o estado de deterioração do imóvel. A decisão foi tomada após uma avaliação minuciosa conduzida pela Câmara Técnica de Ciências Humanas, Memória e Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural. De acordo com os pareceres técnicos e laudos periciais, o prédio se encontrava em avançado estado de degradação, a ponto de necessitar de uma reconstrução completa. 

Contudo, a reconstrução seria um processo que resultaria em um “falso histórico”, descaracterizando o valor original da edificação. O estado de conservação do imóvel foi considerado irreversível, e a preservação, com as condições atuais, seria inviável. A análise também incluiu o painel de Frei Confaloni, que, além de ter sofrido severos danos devido ao vandalismo, não apresentava condições de restauro eficientes devido à fragilidade da parede que o sustentava.

O parecer da Câmara Técnica, além de corroborar a deterioração estrutural do imóvel, destacou a ausência de consenso sobre o valor histórico e arquitetônico da antiga sede da CELG. A Superintendência de Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico (SUPHA), responsável pela análise técnica, também manifestou-se contra o tombamento definitivo, evidenciando que a condição física do prédio e do painel tornava inviável sua preservação.

A decisão do CEC foi unânime, com todos os conselheiros concordando que a reconstrução do imóvel representaria um alto custo e não garantiria a preservação das características originais. O Conselho também ressaltou que a responsabilidade pela preservação de bens privados cabe aos seus proprietários, e que, mesmo com o tombamento provisório, não houve a devida manutenção do imóvel, o que contribuiu para sua degradação.

Embora o prédio da CELG não tenha sido tombado, a preservação do painel de Frei Confaloni foi considerada uma prioridade. O CEC optou por apoiar a doação do painel ao Estado de Goiás, garantindo que a obra seja restaurada de acordo com exigências técnicas rigorosas.

Essa solução foi considerada mais viável, já que o painel possui valor cultural reconhecido, e sua restauração pode ser realizada em condições adequadas. O CEC também ressaltou que, uma vez restaurado, o painel poderá ser submetido a um novo processo de tombamento, caso as condições se mostrem favoráveis.

Em relação ao tempo de tramitação do processo de tombamento, iniciado em 2019 e concluído em 2023, o CEC reconheceu que o período foi longo. A demora foi atribuída a diversos fatores, como disputas jurídicas, reavaliações técnicas e o complexo trâmite administrativo que envolve a legislação sobre o patrimônio histórico. Apesar disso, o Conselho explicou que o processo de tombamento precisa garantir o contraditório e o direito de defesa dos proprietários, o que naturalmente aumenta a duração da análise.

Por fim, o CEC reafirmou que a preservação de edificações em estado de deterioração deve ser analisada caso a caso, levando em consideração a viabilidade técnica do restauro e o valor histórico e cultural da edificação. O Conselho adotou uma abordagem flexível para a preservação, propondo alternativas como a doação ou realocação de bens que, apesar da degradação, possuem relevância cultural. No caso da antiga sede da CELG, a deterioração avançada impediu o tombamento, mas o painel de Frei Confaloni será preservado por meio da doação e futura restauração.

A decisão foi assinada pelos membros da Câmara Técnica de Ciências Humanas, Memória e Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural: Antônio Celso Ramos Jubé, Antônio César Caldas Pinheiro e Allyson Ribeiro e Silva Cabral. O parecer reflete o compromisso do Conselho com a proteção do patrimônio histórico de Goiás, dentro dos limites legais e das condições técnicas apresentadas.

Predio demolido MUDDA | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

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