O clamor dos deserdados da terra no livro As Fomes Inaugurais, de Whisner Fraga

Adelto Gonçalves

Histórias dos deserdados da terra que habitam as ruas de São Paulo compõem As fomes inaugurais (Editora Sinete, 2024), o mais recente livro de Whisner Fraga, autor de mais de uma dezena de obras nos gêneros romance e contos, algumas premiadas. Desta vez, são 55 minicontos sobre personagens que se acostumaram a viver à margem de uma sociedade que não só não tem interesse em acolhê-los como faz questão de enxotá-los de suas calçadas.

Para tanto, o autor, já experimentado no ofício, vale-se de vários recursos de estilo, como o realismo mágico, o fluxo de consciência e as narrativas em terceira e primeira pessoas, sem deixar de recorrer, às vezes, à linguagem do teatro, em textos sempre entremeados por prosa poética.

No miniconto “brasões, flâmulas, insígnias”, o autor observa que “mendigo é diferente de morador de rua e pessoa em situação de rua é pior, morador de rua escolhe morar na rua, e pessoa em situação de rua pousa no abrigo, sem o cachorro, pois não recebem bichos lá”. E acrescenta que os burgueses “estão se lixando se dormem na rua ou no asilo ou o modo que são denominados, dependendo do lugar em que pernoitam”.

Se se pode acrescentar alguma coisa a esse miniconto, é para lembrar que, segundo depoimento ouvido recentemente de um sem-teto, muitas vezes, é melhor dormir na rua, de preferência debaixo de uma marquise, do que pernoitar num asilo público, correndo o risco de ser roubado por aqueles que lá também pernoitam e precisam de seu parco dinheirinho para alimentar o vício das drogas. Eita, que mundo cão!

O canto aos excluídos

Em alguns minicontos, aparecem o dono de um bar, conhecido como Seu Manuel, e Helena, sempre dialogando com o narrador. Em outros, mulheres em situação de rua buscam dinheiro em lives eróticas e uma família que mora em um carro abandonado e começa a adaptá-lo para transformá-lo em uma casa. No miniconto “usualmente a heresia”, há um flagrante da vida de um casal de excluídos: “a aguardente brilha debaixo do holofote mirrado do poste, a mulher espera que ele desembuche e deposite o litro em seu colo: não é capaz de despertar sem uma talagada (…)”.

Whisner Fraga, contista e romancista: um dos mais criativos escritores brasileiros da atualidade | Foto: Divulgação

Já no miniconto “seiva”, o leitor vai se deparar com o drama de uma excluída, procedente de Manari, município de Pernambuco que, no início deste século, foi considerado o mais pobre do Brasil. Ela está grávida e procura assistência médica em unidades públicas: “quatro meses? , não acompanha, estava aflita porque não descia, decide ir ao postinho, sorte que uma enfermeira de plantão a examina, recomenda pré-natal, chispa, se ela pede endereço, diz o quê?, não, não retorna, prefere o relento de são paulo à laje de manari, não adianta teimar: não avisa a mãe, o que fará daquela lonjura, na escassez irrepreensível?, vive, com a soberania dos brutalizados, a altivez dos autodenominados puros? quer distância de santos, essas beatas que adoram operar o chicote, terá o filho, amará o filho (…), afaga o ventre e admira os edifícios com suas fachadas brutais, deglutindo famílias, acobertando tanto egoísmo e desigualdade: o que oferecerá ao filho?, a cidade enlaça suas quimeras, como um parasita atocaiando a presa”.

Por aqui, como ressalta o escritor Hugo Almeida, no posfácio que leva o título “Cântico aos excluídos”, vê-se que o leitor irá se deparar nesses contos com “um filme atual da exclusão dos desassistidos, párias de uma sociedade egoísta e cruel”. Mas, acrescente-se, o que torna esta obra singular é exatamente a intenção do autor de não romantizar seus personagens, sem deixar de imprimir em tudo “um toque de poesia, ainda que dolorosa”, como observa Almeida, igualmente romancista, contista e ensaísta, autor de Vale das ameixas (romance) e A voz dos sinos (ensaio), ambos também publicados pela Editora Sinete.

Para Almeida, Whisner Fraga é, hoje, “um dos mais vigorosos e criativos escritores brasileiros em atividade”, sempre preocupado em “denunciar a desigualdade socioeconômica, sem, contudo, dispensar o apuro estético”, cumprindo o papel de todo verdadeiro escritor, que é o de denunciar as mazelas do mundo. É o que o autor faz, pois, os seus contos, na maioria, trazem um fecho que “é um susto, o soco de nocaute da receita cortaziana”, como define Almeida, citando a técnica de escrita do autor argentino Julio Cortázar (1914-1984).

O engenheiro que constrói prosa

Nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 1971, Whisner Fraga é formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Uberlândia. Em Engenharia Mecânica, fez também mestrado na mesma universidade e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Mas, atraído pelas Letras, curso que iniciou, mas não concluiu, ainda durante o mestrado, publicou o livro de contos Seres e sombras (edição de autor, 1997). É formado também em Pedagogia e Marketing Digital.

Durante o doutoramento, publicou o seu segundo livro de contos, Coreografia dos danados (Edições Galo Branco, 2002), título inspirado em verso de Augusto dos Anjos (1884-1914). Concluiu o doutoramento em 2003 e, desde então, prestou concurso para a docência e vem lecionando para jovens e adultos. Ao mesmo tempo, atua como crítico literário em jornais impressos e sites dedicados à literatura. Também resenha obras de literatura contemporânea no canal Acontece nos Livros, no YouTube, e é editor na Sinete.

Nos últimos tempos, publicou Usufruto de demônios, contos (Ofícios Terrestres Edições, 2022) e O que devíamos ter feito, contos (Editora Patuá, 2020). É autor ainda de A cidade devolvida, contos (Editora 7 Letras, 2005); As espirais de outubro, romance (Nankin, 2007), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; Abismo poente, romance (Ficções Editora, 2009), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; O livro da carne, poemas (Editora 7 Letras, 2010); Sol entre noites, romance (Ficções Editora, 2011), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; Lúcifer e outros subprodutos do medo, contos (Editora Penalux, 2015), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; A verdade é apenas uma versão dos fatos (Editora Penalux, 2017); e O privilégio dos mortos, romance (Editora Patuá, 2019).

Participou de antologias como Os cem menores contos brasileiros do século (Editora Ateliê, 2018), organizada por Marcelino Freire; e Geração zero zero: fricções em rede (Editora Língua Geral, 2011), organizada por Nelson de Oliveira. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, alemão e árabe e publicados em antologias.

Adelto Gonçalves, jornalista e crítico literário, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. É autor “Gonzaga — Um Poeta do Iluminismo”, “Bocage — O Perfil Perdido” e “O Reino, a Colônia e o Poder — O Governo Lorena na Capitania de São Paulo: 1788-1797”. E-mail: [email protected]

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