Quatro décadas após surgimento da epidemia de AIDS, tratamento avançou, mas estigma e desinformação persistem

Um comprimido por dia, visitas trimestrais ao Sistema Único de Saúde para retirada da medicação gratuita e acompanhamento semestral com infectologista, também no sistema público: é disso que Diego Kraus, ator e produtor, precisa para seguir seu cotidiano normalmente convivendo com o HIV. A infecção causada pelo vírus da imunodeficiência humana traumatizou uma geração na década de 1980, mas, nos dias de hoje, o tratamento e a profilaxia evoluíram de forma a possibilitar que aqueles que têm um diagnóstico positivo possam dar sequência em suas vidas sem grandes empecilhos. 

Diego recebeu seu diagnóstico quando tinha 26 anos, pouco depois de terminar uma relação. “Inicialmente, foi um baque muito forte. Eu não tinha informação nenhuma sobre o HIV”, comentou. A ausência de qualquer tipo de educação sexual na família e na escola foi um ponto mencionado pelo ator. “Talvez se eu tivesse mais informação, eu teria me protegido mais”, afirmou. Longe de eximir sua responsabilidade em ter relações desprotegidas, ele coloca o combate ao tabu do sexo como fundamental para evitar todo e qualquer tipo de infecção sexualmente transmissível. Para ele, o diálogo é ferramenta poderosa, eficiente e necessária.  

Hoje, com 34 anos, ele se coloca publicamente como pessoa que vive com o HIV e serve como apoio para muitos que passam por situação semelhante à dele. “Eu vejo nos jovens de hoje uma repetição do que foi a minha educação sexual”, lamenta. Diego compartilha que “toda semana, tem uma, duas, três, dez pessoas que estão querendo fazer o seu teste, estão com medo, ou fizeram o teste e deu positivo, e precisam de um acolhimento”. Por mais que os meios para detecção, prevenção e tratamento se façam disponíveis, ainda falta informação. 

Diego Kraus | Foto: Arquivo pessoal.

Seu tratamento se dá 100% pelo SUS, nunca houve falta de medicação. Após o diagnóstico, sua rotina teve de se tornar mais saudável, tanto na alimentação, quanto nos exercícios. Seus amigos, familiares e parceiros aceitaram com tranquilidade seu diagnóstico. “Essa sorte que eu tenho também é porque eu me posiciono de certa maneira”: para Diego, se colocar abertamente como militante pela causa serve como “peneira” para suas relações. Eventualmente, entretanto, o estigma surge. 

Pensando nos tabus e preconceitos que pessoas que convivem com o HIV enfrentam, ele desmistifica o maior deles: “as pessoas precisam entender que uma pessoa que vive com HIV pode ter uma vida normal. O HIV faz parte de mim, ele não sou eu, na minha totalidade”.

Dados

O relatório mais recente da Unaids (braço da Organização das Nações Unidas dedicado ao monitoramento, prevenção e combate do HIV globalmente) mostra que, em 2023, cerca de 39,9 milhões de pessoas convivem com o vírus mundialmente. Apesar disso, apenas 30,7 milhões de pacientes tinham acesso à terapia antirretroviral, o que indica uma falta de acessibilidade para milhões. O uso de antirretroviral é fundamental já que, após certo período de uso, garante que o paciente seja “indetectável”, ou seja, mesmo que ele conviva com o vírus, a quantidade circulando em seu organismo é mínima, portanto, não há efeitos diretos na imunidade e nem transmissão. 

Neste mesmo ano, em média 1,3 milhão de pessoas representaram novas infecções com o vírus, segundo o relatório. Desde o início da epidemia do HIV, em 1981, a Unaids estima que aproximadamente 88,4 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus.  

Pensando em pessoas que morreram de doenças relacionadas à AIDS (infecção decorrente do vírus do HIV), foram aproximadamente 630 mil em todo o planeta, em 2023. Desde o início da epidemia, na década de 1980, foram cerca de 42,3 milhões de mortes relacionadas ao vírus, até 2023. 

No Brasil, segundo o Boletim Epidemiológico organizado pelo Ministério da Saúde, “de 2007 até junho de 2023, foram notificados no Sinan 489.594 casos de infecção pelo HIV no Brasil”. Desse montante, 41.5% está concentrado na região Sudeste, 21.3% na região Nordeste, 19.1% na região Sul, 10.2% na região Norte e 7.9% na região Centro-Oeste. Somente em 2022, foram 43.403 novos casos da doença e, quando comparamos os anos de 2022 e 2020, houve aumento de 17,2% nas taxas de infecção, o que reforça a importância do trabalho de conscientização e prevenção. 

Veja abaixo alguns gráficos do Boletim Epidemiológico HIV/AIDS do Ministério da Saúde de 2024 especificando o perfil dos pacientes no Brasil: 

Perspectiva profissional 

O infectologista Guilherme Gama explica, ao Jornal Opção, que existe uma série de medidas que servem como prevenção. A profilaxia pré-exposição (Prep, medicamento de uso recorrente que evita a infecção pelo vírus caso ele entre no organismo), a profilaxia pós-exposição (Pep, medicamento de uso pontual para casos de exposição de risco, como rompimento de preservativos ou violência sexual), distribuição de preservativos interno e externo, testagem regular e pré-natal são algumas das ferramentas que compõem a chamada ‘Mandala da Prevenção’. “Somadas, elas conseguem atingir mais pessoas”, explica o especialista.

As políticas públicas voltadas para prevenção do vírus estão disponíveis para toda a população no SUS, mas elas se concentram nas populações chave, grupos “ em que se concentram a maior parte das infecções”. Entre eles estão: profissionais do sexo, homens que fazem sexo com outros homens, pessoas trans e travestis, pessoas em situação de rua e a população privada de liberdade. 

Pensando ainda nas táticas de prevenção, o infectologista destaca o papel da testagem regular daqueles que possuem vida sexual ativa para diagnóstico precoce, em caso de infecção. “Quanto mais rápido a gente fizer o diagnóstico, menor vai ser essa inflamação, menor vai ser a queda da imunidade, e menor os riscos de ter complicações”, resumiu. A recomendação geral é que pessoas com vida sexual ativa devam se testar regularmente, para o HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s) semestralmente ou, no mais tardar, anualmente. 

Infectologista Guilherme Gama | Foto: Arquivo pessoal.

Agora, pensando no contexto pós infecção, o uso do antirretroviral é fundamental. Como o HIV é uma doença crônica, seu uso deve ser permanente. Guilherme explica que o tratamento tem apresentado evoluções, diminuindo os efeitos colaterais e a quantidade de medicação necessária. O cenário é promissor, inclusive, quando pensamos nas pesquisas sendo desenvolvidas. Medicações injetáveis com necessidade de aplicação menos recorrente do que os remédios orais atualmente disponíveis despontam no horizonte. “A medicina tem caminhado”, afirmou, reforçando a necessidade de mais investimentos para acelerar essa trajetória. 

Por fim, o infectologista é categórico ao afirmar: “Falar de prevenção ao HIV também é falar de combate à pobreza”. As desigualdades entre classes e regiões do país influenciam diretamente no acesso à informação e no tratamento, sendo os grupos mais vulneráveis os que apresentam maior número de infecções e casos mais avançados da doença. 

Em Goiânia

A infectologista do Centro de Referência em Diagnóstico Terapêutico (CRDT, unidade do sistema público de saúde de Goiânia especializado no HIV), Nadya Maciel Bomtempo, reforça que a rede de atenção da capital consegue oferecer prevenção e tratamento para a população. Atualmente, segundo a médica, que também é professora da UFG, são quase quatro mil pacientes regulares na unidade em que atua. “Se ele [paciente]  tem endereço em Goiânia, ele faz [o acompanhamento] no CRDT. Se ele é do interior de Goiás, ele vai fazer no HDT”, explica.

Nadya reforça que o HIV é um vírus que “prejudica a defesa do nosso organismo contra infecções bacterianas, virais e por parasitas, como também diminui a defesa contra cânceres”, além de propiciar “um estado inflamatório crônico do corpo que pode levar até uma prevalência maior de distúrbios cardiovasculares, ósseos, renais e cerebrais”. Como os vírus se instalam no interior, principalmente, das células do sistema nervoso central, dos linfonodos, a cura ainda não é algo concreto e o interrompimento do tratamento com o antirretroviral pode acarretar num agravamento do quadro de saúde do paciente. Portanto, o acompanhamento médico regular e o compromisso com a regularidade do tratamento se fazem fundamentais.  

Para acessar a profilaxia e o tratamento em Goiânia é preciso ser regulado para o CRDT em qualquer unidade de saúde da capital, seja em Cais ou em UPA. A exceção está nos casos de exposição à situação de risco, quando se faz necessário uso da PEP. Nessa situação, são três as unidades de referência: bairro Goiá, Campinas e Vila Nova. 

Infectologista Nadya Maciel Bomtempo | Foto: Arquivo pessoal.

Quando pensa em preconceitos e estigmas, tanto por parte da comunidade em geral, mas também dos profissionais da saúde, Nadya reforça que houve muito avanço. “ No início, eu me lembro que, por exemplo, cirurgião não queria operar paciente com HIV”, pontuou. 

Apesar das evoluções, alguns tabus sobre o HIV perduram. Diagnóstico em jovens por falta de adesão ao uso do preservativo, mulheres que tomam pílula para controle do ciclo menstrual e ignoram formas de proteção contra IST’s e a associação do uso da Prep com “promiscuidade” são alguns preconceitos que, apesar de menos recorrentes, a médica ainda encontra no dia a dia do consultório. 

Por fim, Nadya chama atenção para a baixa adesão de mulheres trans e de profissionais do sexo ao acompanhamento. “É um público que a gente precisa estudar estratégias para atraí-las e cuidar”, finalizou. 

Na rede estadual 

A infectologista  Cassia Godoy, do Hospital Estadual de Doenças Tropicais Dr. Anuar Auad (HDT), explica que a unidade da Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO) segue os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde no tratamento e prevenção do HIV. “ Nós temos protocolos de diretrizes terapêuticas e de prosseguimento que têm sido atualizadas continuamente no país”, afirmou. Os protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas (PCDT) para a infecção com HIV foram atualizados em 2024, com especificações para a atenção em adultos, gestantes e crianças. Por mais que a via sexual seja a forma de transmissão mais comum, existem outras formas, e uma delas é a transmissão vertical durante a gestação, daí a importância de especificar cuidado para gestantes e crianças. 

Para além da conformidade com as diretrizes do ministério, Cassia destaca o compromisso com as metas estabelecidas pela Unaids, conhecidas como 95, 95, 95. Esse objetivo em específico coloca o ano de 2030 como meta para alcançar 95% das pessoas que vivem com o HIV diagnosticadas, dessas, 95% devem estar em tratamento, e, desse grupo, 95% deve estar indetectável.   

Infectologista  Cassia Godoy | Foto: Arquivo pessoal.

“A gente tem pouco mais de um milhão de pessoas vivendo com HIV e AIDS no Brasil. Dessas, 10% não sabem que têm HIV”, exemplificou a importância das metas. Desse grupo, em torno de 750 mil estão em uso da terapia antirretroviral, e desses, 87% estão com carga viral indetectável, compartilhou. “São números bastante importantes, mas que precisam melhorar”, concluiu. 

A forma mais efetiva de atingir esses objetivos está na vinculação dos pacientes ao SUS. Uma vez que a pessoa que vive com HIV ou que realiza alguma profilaxia entra no sistema de saúde, existe um acompanhamento não apenas do vírus, mas de toda a vida sexual de uma forma geral, com instrução da população, testagem regular, vacinação (hepatite e HPV, por exemplo), além da distribuição de lubrificantes e preservativos.

O HDT realiza todo esse acompanhamento, especificamente para a população que vem regulada pelo SUS do interior do estado. O único objetivo estabelecido pelas autoridades de saúde que ainda precisa ser trabalhado é o intervalo máximo de sete dias entre o diagnóstico e o início do tratamento. Esse delay se deve, segundo Cássia, ao tempo da “regulação da consulta especializada”. 

“10% dos pacientes que sabem que têm HIV, eles não foram vinculados em lugar nenhum. Quando vai aparecer para você, às vezes aparece muito grave, ou doente, ou morrendo”, lamenta episódios que eventualmente encontra. 

Apesar do espaço para melhora, a infectologista é categórica ao afirmar que o SUS fornece um atendimento ligado às IST’s mais eficiente do que a rede particular. “Nós temos testes mais rápidos, nós temos diagnóstico não só do HIV como teste rápido para tuberculose, teste rápido para criptococose, sífilis… se eu tropeçar e cair lá dentro da emergência do HDT, você faz tudo quanto é teste”, brinca a médica. 

Por fim, Cássia reforça a importância da testagem regular, a fim de garantir um diagnóstico precoce: “quanto mais fazer o diagnóstico, menos complicações e menos óbitos”.

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