Conheça histórias de pessoas trans que estudam na UFG 

A Universidade Federal de Goiás (UFG) aprovou na última sexta-feira, 22, uma alteração no Programa UFGInclui. Anteriormente destinado apenas ao atendimento de indígenas e quilombolas, o programa passará a incluir também pessoas transexuais, transgêneras e travestis. Uma pesquisa realizada pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil apontou que 82% das pessoas trans abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos. Além disso, apenas 0,02% dessa população teve acesso ao ensino superior. Os números mostram ainda que muito desta violência é praticada por docentes e gestoras (es) da instituição, além das situações vividas entre estudantes.

Integrantes do Coletivo Xica Manicongo falaram ao Jornal Opção sobre a necessidade de ações de inclusão de pessoas Trans e travestis na Universidade, apresentando dados que apontam para o cenário vivenciado hoje e para a importância de mudanças. “A gente estava numa situação em que pessoas trans travestis negras estavam vivendo em situação de prostituição compulsória para não desistirem dos seus cursos. Pessoas de baixa renda, oriundas de escola pública, mas que são de uma cidade considerada da região metropolitana de Goiânia, tinham, por exemplo, o acesso à bolsa moradia negado”, explicou Larissa Engelmann, coordenadora do Coletivo Xica Manicongo. 

Xica Manicongo foi a primeira travesti que temos registro no Brasil. Uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro, habitava a atual cidade de Salvador em 1591. Xica usava um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbanda de sua Terra Natal. Manicongo era, originalmente, um título para governantes do Reino do Congo, que foi transformado na corruptela que conhecemos pelos portugueses, para designar pessoas oriundas da região. 

O pró-reitor de Graduação Israel Elias Trindade afirmou que a UFG já possui um extenso histórico de promoção de ações afirmativas e que continua buscando maneiras de promover cada vez mais a inclusão. “Precisamos colocar esses estudantes dentro da UFG e depois cuidar também da permanência e do êxito estudantil”, afirmou Israel. A secretária de Inclusão, Luciana Dias, afirmou ainda que discussões aprofundadas sobre a alteração em questão no UFGInclui estão sendo feitas há algum tempo com integrantes do Coletivo Xica Manicongo, para que tudo possa ser encaminhado da melhor maneira possível.

Embora as organizações da sociedade civil possam trabalhar para preencher uma lacuna do Estado, a falta de dados estatísticos oficiais prejudica o desenvolvimento de políticas públicas eficazes para essa parcela da população. A falta de mecanismos de produção, sistematização e publicização de dados sobre grupos específicos no interior da máquina estatal tem contribuído para a invisibilização e a impunidade nos casos de violência. A invisibilização estatística impulsiona a própria sociedade civil a exercer esse papel, como é o caso da sociedade civil organizada Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Segundo levantamento da Antra, há em torno de 4 milhões de pessoas trans no Brasil. À época, essa aproximação estatística foi desacreditada. Em 2021, a Universidade Estadual Paulista (UNESP) publicou um estudo inédito em que mapeou 1,9% da população autodeclarada como trans, o que dá em média 4 milhões de pessoas. Foram entrevistadas 6.000 pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país.

Pelo 15º ano consecutivo, o Brasil tem sido o país que mais reporta assassinatos de pessoas trans, que o coloca como o que mais assassina pessoas trans do mundo considerando os países onde essas informações têm sido produzidas. “A extrema direita institucionalizou sua agenda antigênero e antitrans no Brasil, e tem relações substanciais com a ascensão do neofascismo. Esses mesmos grupos e seus discursos, além de não terem qualquer compromisso em melhorar a vida das pessoas trans ou produzir informações relevantes sobre o enfrentamento da transfobia, ajudam a radicalizar ainda mais as violências destinadas às pessoas trans”, explica a Antra.

Para a Associação, o IBGE não tem demonstrado o devido interesse com a realidade material da população trans, uma vez que o Instituto tem atuado contrariamente à inclusão de informações sobre essa parcela da população em suas pesquisas e bases de dados. Mesmo diante de vários diálogos com a sociedade civil, ações judiciais da Defensoria Pública da União (DPU) e Ministério Público Federal (MPF), tem sido travada uma verdadeira batalha pelos movimentos LGBTQIA+ desde os anos de 1990 para que tenham dados estatísticos sobre pessoas LGBTQIA+. Em pesquisa publicada no ano de 2022, o órgão não apresentou qualquer dado sobre pessoas trans e travestis. O campo “identidade de gênero” sequer foi considerado ou mencionado, e as respostas têm sido vagas e frágeis.

A questão central é que a expectativa de vida média da população trans é consideravelmente menor do que a da população em geral. Por essa razão falamos em “estimativa”. O dado dos 35 anos é uma estimativa média constituída como um dado relevante e real após anos de análises de contextos e observação de informações que denunciam o impacto da transfobia no direito à vida de pessoas trans, e as condições materiais em que estão inseridas. Destaca-se que em média, 79% das pessoas trans assassinadas tem menos de 35 anos entre 2017 e 2023.

“A Universidade Federal de Goiás, com a aprovação da inclusão de pessoas transgeneras, travestis e transexuais no UFG-Inclui e a publicação do edital de moradia para pessoas trans, se coloca novamente como pioneira nesse tipo de política, a favor do direito à educação qualificada”, explica Caiene Reinier, integrante do Coletivo Xica Manicongo.

Para saber mais sobre as trajetórias das alunas transgêneras, transexuais e travestis da UFG, o Jornal Opção ouviu Larissa Engelmann, Marte Wirthmann e Caiene Reinier. 

Larissa Engelmann

Larissa Engelmann. | Foto: Arquivo

Larissa Engelmann é uma mulher travesti negra, graduada em Linguística, Mestra em Antropologia Social e doutoranda em Letras e Linguística pela UFG. É membro do Conselho de Política Linguística-UFG (Reitoria); do OBIAH – Grupo Transdisciplinar de Estudos Interculturais da Linguagem; fundadora e atual coordenadora-geral do Coletivo Xica Manicongo-UFG.

Ela esteve à frente da luta para a integração de pessoas transexuais, transgêneras e travestis no UFGInclui e explica como foi o processo. Na apresentação realizada durante o evento em janeiro de 2023, foram expostas possibilidades de reconhecimento, em que se destacou o apoio da voz politicamente organizada para a implementação do programa de gênero inclusivo da UFG. O programa, abrangia pessoas indígenas e quilombolas desde 2009, conforme estabelecido pela Resolução 29 de 2008 do Consuni, que criou o programa UFG Inclui.

Posteriormente, em 2012, uma atualização foi realizada para estar em conformidade com a legislação nacional, expandindo a inclusão para pessoas surdas, especialmente no curso de letras-libras. Desde então, não houve mais alterações. Durante o evento, uma das propostas discutidas foi a inclusão de pessoas trans no programa UFG Inclui. Após a apresentação em janeiro, seguiu-se um ano de silêncio institucional, até que neste ano de 2024 a inclusão foi aprovada pelo Conselho Universitário.

“Nós tivemos casos de estudantes travestis sendo desrespeitados em sala de aula, com professores, doutores, desrespeitando no tratamento. Tivemos casos, por exemplo, de seguranças da UFG, que são terceirados, tirando estudantes travestis do banheiro, sondando estudantes travestis e chamando para sair do banheiro feminino. Nesse caso, acho que esse cidadão, que não sei nem de onde saiu, já foi dispensado”.

Um caso recente ocorreu no final do ano passado envolvendo uma estudante trans da UFG. Matriculada no curso de medicina veterinária, a aluna trans causou desconforto a uma mulher cisgênero por usar o banheiro feminino, como previsto por lei. “Ela ligou para uma pessoa externa à faculdade para vir até à universidade constranger essa estudante a não entrar mais no banheiro”, explica Larissa.

Em termos práticos, o programa UFG Inclui implementa uma política de reserva de vagas em cada um dos 108 cursos de graduação oferecidos pela UFG, destinadas a pessoas indígenas, quilombolas e agora também para pessoas trans. O próximo processo seletivo do programa, programado para o ano seguinte, oferece a possibilidade de admitir 108 pessoas trans na UFG, com uma vaga disponível em cada curso.

Embora a reserva de vagas não seja uma solução completa para todas as questões, é considerada um avanço significativo, representando o reconhecimento de marcadores sociais que impactam a dignidade humana e a condição de cidadania. “A gente lembra de Dandara, põe no carrinho, joga pra lá, joga pra cá, dá uma paulada, vai agonizando o corpo e alguém tá lá filmando, do início, como quem tá matando um bicho”, explicou Larissa.

Marte Wirthmann

Marte Wirthmann. | Foto: Arquivo

Marte Wirthmann, de 23 anos, se identifica como uma pessoa transmasculino não binário. Formou em História pela Universidade Federal de Goiás em 2023. Ela expressa uma rejeição ao ideal de hombridade e masculinidade, afirmando que sua essência transcende tais conceitos, mesmo que sua humanidade seja questionada. O movimento de pessoas que se identificam como transmasculinas e não binárias visa desafiar a ideia convencional de que o corpo define rigidamente o gênero. A pessoa utiliza uma linguagem franca e autêntica ao falar sobre o assunto, reconhecendo que o vocabulário utilizado pode parecer pouco convencional, mas é crucial para expressar sua identidade de forma verdadeira.

“É uma masculinidade dissidente, é uma masculinidade considerada transviada porque nós seguimos sendo interpretados como femininos e masculinos ao mesmo tempo, pela nossa história, nosso prejeito. Então a gente nunca vai alcançar a masculinidade de gênero, fisiológico masculino, por mais que algumas pessoas tentem. Mas no meu caso, não é nem o meu objetivo. Eu não quero transicionar nem feminino ou masculino. Eu quero transicionar e me descobrir um  pouco quem eu sou, a forma que eu me sinto mais confortável com o meu corpo, quais processos eu quero fazer nele, a forma que é mais interessante para mim e não sobre as cobranças alheias do que as pessoas esperam que eu performe”.

Durante boa parte de sua vida, Marte conta que se identificou e se reconheceu como uma mulher cisgênera. Desde o nascimento, foi designada do sexo feminino e durante muitos anos adotou essa identidade de gênero. Durante esse período, também explorou sua orientação sexual, inicialmente se identificando como bissexual e mais tarde reconhecendo-se como lésbica. Como lésbica, sentia atração por outras mulheres, independentemente de serem cisgêneras, transgêneras ou gays. Para ela, essa jornada de autodescoberta e aceitação tem sido uma parte significativa de sua trajetória pessoal.

Quando se menciona “performar”, não se trata simplesmente de vestir uma fantasia ou fazer uma piada. O termo tem origem na obra da filósofa de gênero Judith Butler e carrega um significado mais profundo. Refere-se à maneira como uma pessoa se expressa e se apresenta no mundo, abrangendo desde as roupas que veste até o nome que usa, o tom de voz, e a forma como é tratada pelas outras pessoas. É uma performance social, onde as normas e expectativas de gênero desempenham um papel central.

Todos nós estamos inseridos em uma rede de normas sociais que inclui regras de gênero. Desde cedo, as mulheres são ensinadas a seguir determinados padrões de comportamento: devem ser gentis, conciliadoras, e colocar as necessidades dos homens antes das suas próprias, mesmo quando estão desconfortáveis. Essas expectativas são impostas pela sociedade, e muitas pessoas, sejam elas designadas como mulheres ao nascer ou mulheres trans, sentem-se compelidas a segui-las. No entanto, quando desafiam essas normas, muitas vezes são penalizadas. Assim, a performance de gênero acontece em um contexto de imposição social e expectativas preestabelecidas.

“Esse caminhão da sexualidade me assombrava porque as pessoas me cobravam que eu tivesse um saber absoluto sobre a minha sexualidade. É muito cobrado dos LGBTs uma presteza de tudo, de forma que quando a gente erra eles vão pra lá pra falar ‘haha, olha uma incoerência, então não é quem você é’. Acontece porque nós somos pessoas, pessoas que podem descobrir, podem ter processos contraditórios”, pontua Marte.

Caiene Reinier

Caiene Reinier, 29 anos, é uma travesti negra natural do interior de Goiás. Ela deve ser tratada no feminino, conforme sua identidade de gênero. Ingressou na Universidade Federal de Goiás em 2012, onde cursou Matemática na graduação. Entre os anos de 2013 e 2015, realizou um intercâmbio acadêmico na Universidade de Coimbra.

Caiene Reinier. | Foto: Arquivo

“Abandonei a primeira tentativa no final de 2015, devido à transfobia e racismo, violências e crimes sofridos no Instituto de Matemática e Estatística desta mesma UFG, mas também pelo acúmulo de tensões advindas de vivências e moradia prolongada em um país racista. 80% integralizados e um currículo de dar inveja à branquitude supremaCISta-racista à época, não foram suficientes para acreditarem que há potência, ciência e intelectualidade nos corpos como o meu, como o das minhas irmãs travestis e pessoas transvestigeneres, em geral – sobretudo as racializadas (negras e indígenas)”, explicou Caiene.

Caiene compartilha a experiência vivida por muitas pessoas trans e travestis, incluindo o relato de Rafaela Damasceno, que ingressou na mesma Universidade Federal de Goiás na década de 1990. Embora haja avanços, ainda persistem histórias de exclusão naturalizada. A trajetória dessas pessoas na instituição é marcada por obstáculos que não deveriam mais existir, mas continuam presentes. Segundo Caiene relatou, elas seguem combatendo as adversidades, inspiradas por forças ancestrais que também enfrentaram desafios semelhantes em Goiás e na UFG.

Atualmente, ela está em sua terceira tentativa de graduação. Desde 2017, é a única estudante travesti na Escola de Engenharia Civil e Ambiental da UFG. Em breve, Caiene se formará como Engenheira Ambiental e Sanitarista. Além disso, desde 2022, ela atua como estagiária na Divisão de Perícias em Engenharia de Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho em Goiás (PRT18ª região | MPT-GO).

Durante a entrevista, ela relatou algumas dificuldades enfrentadas na vida acadêmica. “Para que discussões tão importantes aconteçam, como é o caso das ações afirmativas para a população trans e travesti, precisamos de engajamento real, sincero, radical – de todes que, despidas de seus privilégios, antipatias, discriminações e interesses individuais conseguem fazer alguma coisa para que crianças de 13 anos de idade não sejam expulsas de casa e da escola por serem, simplesmente, o que são: seres humanos”.

Para ela, há uma evidente negligência, ignorância e reafirmação de privilégios. Muitas vezes, a falta de discussão sobre o problema, juntamente com a ausência de exposição direta a ele, leva à crença de que o problema não existe na prática. Isso acaba por reforçar o lugar de privilégio daqueles que não são diretamente afetados pelos problemas, pois optam por não reconhecê-los ou discuti-los. Essa atitude perpetua a marginalização de certos grupos e impede a conscientização e ação necessárias para promover a igualdade e a inclusão.

“Também antipatia, muita discriminação, assédios e violências. O Brasil não estava e não está, ainda, preparado para ver as pessoas trans e travestis em lugares que não sejam de extrema subalternidade e vulnerabilidade: nos querem nas esquinas prostituídas e assassinadas. Não nos querem nas escolas, nos expulsam delas desde a tenra idade”. A maioria da população trans e travesti não concluiu o ensino fundamental, sendo ainda uma minoria nas instituições de ensino superior.

Ela explica que na UFG havia algumas iniciativas para inclusão dessa população, desde o Coletivo Colcha de Retalhos (1º coletivo de diversidade sexual e de gênero na UFG), eventos e cursos de pós-graduação (sobretudo das Faculdades de História, Ciências Sociais, Antropologia, Políticas Públicas), o Encontro Nacional em Universidades sobre Diversidade Sexual e Gênero – ENUDSG (2015), o cursinho preparatório PREPARATRANS (2017-2018/9). Apesar das conquistas, destaca que ainda há muito para se avançar.

“A academia brasileira, por muitos anos, trata e continua tratando pessoas trans e travestis negras como objeto de suas pesquisas insossas, pouco criativas ou inovadoras; que servem à uma elite econômico-intelectual que, na prática, se vangloria de egos e títulos, mas não avançam na garantia e efetivação de direitos educativos, em particular, de seus aclamados objetos de pesquisa, tão distantes quanto possível”, pontuou Caiene.

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