Vou morrer com uma “miorinha” boa
Hélverton Baiano
Especial para o Jornal Opção
— E aí, doutor, o que eu tenho?
— Você tem um câncer no intestino.
— Quão grave é ele?
— Toda gravidade inerente ao câncer, mas pode ficar tranquilo que hoje em dia os tratamentos estão bem avançados. Uma cirurgia, seções de quimioterapia e, dependendo das circunstâncias, alguma radioterapia também. Com os seus 73 anos de idade tem condição suficiente de se safar e viver ainda alguns anos — respondeu, tangendo um elefante em minha loja de louça, tentando aliviar um pouco o impacto seco e avassalador da notícia.
— E se eu não fizer a cirurgia?
— Corre o risco de morrer logo e botando fezes pela boca.
Diante de uma postura tão sensível, cordata e um argumento amavelmente escatológico, mas, convenhamos, convincente e sensato, resolvi que morreria com alguma dignidade, sem saber ao certo o que era isso.
Já ouvi muita gente falando que “fulano morreu com dignidade” e eu me perguntava o que era essa coisa, sem nunca entender direito.
Argumentavam que era uma morte assistida, morte boa, sem dor, mesmo vegetando em um hospital por dias, semanas, meses ou anos. Para mim, morrer era algo digno como nascer, com a diferença de que a morte era dolorida, mas só para quem ficava, e o nascimento, justamente o contrário, momento de alegria para todos.
Depois a vida estiolava, mas ao nascer tudo era festa. Passei a observar que dor tem a ver com dignidade ou a falta dela na morte. Portanto, a pessoa que perdeu a cabeça numa batida entre um caminhão e um automóvel, guilhotinada no sopapo do choque, deve ter morrido com dignidade também, pela rapidez e instantaneidade do acontecido.
No interior onde fui criado, em Correntina, sertão da Bahia, há o caso emblemático de um farmacêutico que vendeu um remédio para um senhor da roça, que foi para a cidade em busca de algum conforto aos estertores da esposa que ficara moribunda em casa.

Depois de duas semanas, o farmacêutico viu o mesmo senhor passando em frente a sua farmácia, agora com um distintivo de pano preto amarrado no braço, sinal de luto. Mesmo assim, pra puxar assunto, o farmacêutico perguntou pela esposa e ele informou que ela havia morrido. Sem titubear e querendo mostrar que o remédio que vendia era bom, ele tentou consolar o viúvo:
—Mas morreu com uma miorinha boa, né?!
— Como Deus é servido, senhor.
Eu lutava para morrer com uma miorinha boa, que parece seria uma morte indolor. Quando nasci, não sabia de nada e demorou um tempo para ficar um besta mais sabido. E fui me enchendo de bestagens, vícios, sentimentos vários bons e maus, aprendendo a viver, conhecer algumas coisas, achar que conhecia outras, lutando duro para viver e sobreviver, matando um leão por dia e produzindo esses clichês. Além disso, conviver com gente boa e ruim, desviando de umas e aguentando outras, observando puxação de saco e imbecilidades terríveis e também procurando algum humor, porque ninguém é de ferro e o humano foi feito para errar muito também, ainda bem, propagando e aguçando o egoísmo de querer viver eternamente. E pensa numa gente, como eu, que nasce para ser besta e tenta aprimorar isso o tempo todo!!!
A morte é um lugar indefinido, totalmente inusitado, estranho e do qual ninguém sabe patavina. Deixar de existir na terra é morrer para muitos dos que ficaram, cair no esquecimento, perder status aos poucos, se um dia teve algum, morrer aos poucos com os amigos e parentes que vão morrendo, e aí não ficará ninguém mais para contar a história, lembrar de você, a natureza lhe comendo e acabando com o resto que você deixou, ter a certeza de que seu gado vai morrer, porque não terá mais o olho do dono pra engordar e cuidar.
Eu, com meu câncer no intestino, cacei jeito de pensar em como morrer direito, tentando organizar as coisas, mesmo sendo na vida toda um desorganizado contumaz, provocar a positividade e a esperança nas pessoas que gostam de mim mais de perto e para as quais posso fazer alguma falta com minha falta. Para driblar a mulher da foice, fiz uso de artifícios usados na infância e juventude, meizinhas muitas, raizadas tantas, garrafadas a dar com pau, às vezes tudo isso misturado, na intenção de alongar a longarina da tribuzana matadeira, para ver se ela me esquecia um pouco, me botasse duma banda, até eu ajeitar um jeito de consertar as tripas e me safar do sono eterno. Fiquei uns seis meses nessa labuta de esperança incansável, melhorando um pouco e piorando outro tanto, até que bateu o medo de amanhecer algum dia botando bosta pela boca.
Sem nunca ter quebrado um osso sequer, tirando de letra uma covid e uma gonorreia, usufruindo de doses diárias contra a pressão alta e para controle de colesterol e hipotireoidismo, me exercitando todo dia, sem nunca ter sido internado em hospital e exercendo minha hipocondria controlada com raízes e remédios não muito ofensivos e vitaminas, vivia com a impressão de que não sairia vivo de qualquer cirurgia que fosse fazer. E, nesse caso, seria uma morte digna, digníssima, porque nem saberia se estava morrendo. Achava essa uma morte das melhores, porque estava anestesiado e nem faria força para não morrer, como vi gente fazendo, sem qualquer êxito.
Todo dia eu me preparo para a morte e, aos 73 anos de idade, vou vivendo um dia de cada vez, porque a velhice provoca uma esculhambação com a saúde da pessoa, que do nada aparece uma ziquizira qualquer e você precisa viver se desviando. Tanto é assim que a morte é presença constante de minha criação poética, como nesse excerto que retirei do meu livro “Paraíso Profano”:
Morrer é tão repentino
Às vezes é mais que um século
Morrer é a eternidade
Do que é vento e mistério.
Dos poetas e prosadores que morreram, ficou a dor de saber que eles não mais poderão produzir a poesia e a prosa que tanto os impulsionavam e alegravam. A morte traz em si uma crueldade sincera e sem cura. Vou ao cadafalso da cirurgia que terei de fazer, mesmo a contragosto. Talvez nem faça e fico torcendo para que a metástase abrevie tudo isso. No entanto, a cirurgia chega, os médicos, sacanas bem-intencionados que são, dão esperança, parece que se esquecendo da noção de que ela também morre. Eu tomo a anestesia e não vejo mais nada, a não ser o Corvo, de Edgar Allan Poe.
Hélverton Baiano, jornalista, poeta e prosador, é colaborador do Jornal Opção.
O post Contistas escrevem sobre a própria morte. Conto 4 — de Hélverton Baiano apareceu primeiro em Jornal Opção.